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Proc. nº 447/92 Fiscal. Preventiva Cons. Rel.: A. Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I. O Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 278º, nºs 1 e 3, da Constituição da República e dos artigos 51º, nº1, e 57º, nº1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas do Artigo único do Decreto nº 29/VI da Assembleia da República, de alteração à Lei nº 65/77, de 26 de Agosto, sobre o direito à greve, e que lhe foi enviado para promulgação.
Na fundamentação aduziu os seguintes argumentos:
'1. Da leitura da Acta número trinta e sete da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família, da Assembleia da República, respeitante à sessão realizada no dia 29 de Julho de 1992 - entretanto por mim requerida e que, por isso mesmo, junto em anexo -, resulta que o Plenário da Assembleia da República, na sessão de 17 de Julho de 1992, avocou a votação na especialidade das normas constantes do Artigo único do Decreto já referido, ao abrigo do disposto no nº3 do artigo 171º da Constituição e do artigo 155º do Regimento da Assembleia da República.
Sucede, porém, que na referida sessão do Plenário da Assembleia da República, não teve lugar a votação na especialidade da alínea g) do nº2, assim como dos nºs. 4, 5, 7, 8 e 9 do artigo 8º (Obrigações durante a greve), constantes do Artigo único do Decreto em questão, razão pela qual, na sessão da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família também já referida, não houve unanimidade quanto a estes pontos, o que deu origem a declarações de voto de três dos quatro representantes dos partidos presentes, que contestam a regularidade dos procedimentos adoptados.
Assim, considerando o disposto no nº2 do artigo 171º da Constituição, que determina que a votação em Plenário da Assembleia da República
«compreende uma votação na generalidade, uma votação na especialidade e uma votação final global», e considerando, também, que em nenhum caso se pode concluir, da leitura integral do disposto no artigo 171º, que qualquer das referidas votações pode ser suprimida ou a falta de alguma delas pode ser suprida por qualquer das outras votações previstas no mesmo artigo, parece que as irregularidades referidas configuram uma inconstitucionalidade formal, por vício de procedimento legislativo, a qual não deixará de afectar, de forma derivada ou reflexa, todas as normas contidas no Artigo único do diploma em questão.
2. Para além do que acabo de expor no ponto número 1 do presente requerimento, requeiro também a apreciação da conformidade constitucional das normas contidas nos nºs. 1 e 2 do artigo 5º (Pré-aviso), constantes do Artigo
único do já referido Decreto da Assembleia da República, com o disposto nos artigos 2º, 18º, nº3, e 57º, nºs. 1 e 2, da Constituição.
Com efeito, a alteração que consiste no aumento substancial dos prazos de pré-aviso poderá configurar uma limitação importante ao exercício do direito de greve, pelo menos na medida em que contribui decisivamente para reduzir o impacto das paralisações, limitando «o âmbito de interesses a defender através da greve» e restringindo direitos, liberdades e garantias fundamentais, ao «diminuir a extensão e o alcance» de um direito constitucionalmente consagrado.
3. Por fim, requeiro ainda a apreciação da conformidade constitucional da norma contida no nº6 do artigo 8º (Obrigações durante a greve), constante do Artigo único do já referido Decreto da Assembleia da República, com o disposto nos já citados artigos 2º, 18º, nº3, e 57º, nºs 1 e 2, da Constituição.
Com efeito, na previsão contida na norma em apreço, não são definidos critérios materiais objectivos no que respeita à delimitação dos serviços mínimos a observar durante a greve, caso não haja acordo entre os representantes dos trabalhadores e dos empregadores. Neste caso, a fixação dos serviços mínimos por despacho ministerial conjunto parece conduzir a uma margem de discricionariedade do acto administrativo a praticar, que pode pôr em causa as razões constitucionais que ditam o princípio da reserva de lei. Ora, as razões que justificam a reserva de lei restritiva - da lei como garantia da liberdade - parecem não se compadecer com espaços tão amplos de livre decisão das entidades administrativas. E também aqui parece poder afirmar-se que estamos perante a inexistência de regras de actuação a observar pela Administração, assim como de regras de controlo por parte dos Tribunais, o que conflitua com o princípio da precisão ou determinabilidade das leis.'
E concluiu assim:
'Nestes termos, requeiro a apreciação da constitucionalidade de todas as normas contidas no Artigo único do Decreto da Assembleia da República nº 29/VI, de alteração da Lei nº 65/77, de 26 de Agosto - Direito à Greve, face
às dúvidas colocadas sobre a sua conformidade com o disposto no artigo 171º da Constituição e, também, a apreciação da constitucionalidade do mesmo Artigo
único, na parte em que dá novas redacções ao artigo 5º, nºs. 1 e 2, e ao artigo
8º, nº6, da Lei nº 65/77, de 26 de Agosto (Direito à Greve), face às dúvidas colocadas sobre a sua conformidade com os princípios da precisão ou determinabilidade das leis e da reserva de lei (artigo 2º da Constituição) e, ainda, face ao disposto nos artigos 18º, nº3, e 57º, nºs. 1 e 2, da Constituição.'
Em anexo ao requerimento são juntas uma fotocópia do Decreto nº 29/VI e uma fotocópia da Acta número trinta e sete da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família, da Assembleia da República.
Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º, nº3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República veio afirmar o seguinte:
'1. Embora venha sendo entendido que o direito de pronúncia, previsto naqueles preceitos da Lei nº 28/82, pertence ao órgão de que emanou a norma aprecianda - neste caso o Plenário da Assembleia da República -, julgo, dadas as circunstâncias, que devo pronunciar-me na qualidade de Presidente da Assembleia da República sobre o ponto nº1 do pedido de apreciação preventiva de constitucionalidade em referência.
Na verdade, afirma-se aí que na reunião do Plenário de 17 de Julho
«não teve lugar a votação na especialidade da alínea g) do nº2, assim como dos nºs. 4, 5, 7, 8 e 9 do artigo 8º (obrigações durante a greve), constantes do Artigo Único do Decreto em questão», ao mesmo tempo que se considera, na sequência, que «em nenhum caso se pode concluir, da leitura integral do disposto no artigo 171º (da CRP) que qualquer das referidas votações pode ser suprimida ou a falta de alguma delas pode ser suprida por qualquer das outras votações previstas no mesmo artigo», donde ter-se adiantado a conclusão final de que «as irregularidades referidas configuram uma inconstitucionalidade formal, por vício de procedimento legislativo, a qual não deixará de afectar, de forma derivada ou reflexa, todas (sublinho com surpresa!) as normas contidas no Artigo Único do diploma em questão».
Tal como está formulado, este fundamento do pedido de apreciação da constitucionalidade prende-se imediatamente com dois actos que se inscrevem na competência própria do Presidente da Assembleia da República - o primeiro consiste no acto de pôr à votação do Plenário o Projecto de lei donde nasceu o Decreto da Assembleia da República em apreço (alínea d) do nº1 do artigo 17º do Regimento) e o segundo é o acto de enviar ao Presidente da República, para promulgação, o autógrafo do Decreto que a Assessoria Jurídica da Assembleia da República preparou, como habitualmente, com base no processo que lhe foi enviado pela Mesa do Plenário.
Por isso, a cooperação que o Presidente da Assembleia da República deve ao Tribunal especificamente incumbido de «administrar a justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional» (artº 223º CRP) - ora chamado a pronunciar-se sobre a consistência jurídica daquele fundamento - motiva-o a apresentar, correspondendo à notificação de Vossa Excelência, alguns tópicos que se afiguram relevantes para a correcta avaliação da argumentação desenvolvida no pedido de apreciação preventiva sub judice.
Esses tópicos vão sucintamente enunciados em forma de conclusões nos números que se seguem.
2. A quaestio facti alegadamente subsistente no caso - saber se os referidos preceitos do Artigo Único do Decreto nº 29/VI foram, ou não, submetidos a votação na especialidade - apenas poderá ser resolvida pela apresentação do único meio de prova que a esclarecerá: a acta da reunião do Plenário de 17 de Julho (cfr. artº 120º, nº2, artº 121º e artº 122º, todos do Regimento). Só que, até agora, nada foi aprovado ainda, nos termos do artº 122º do Regimento (cfr. especialmente o nº6), que possa valer como acta da reunião em referência.
Por outro lado, é óbvio também que a acta da reunião de 29 de Julho da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família não é uma acta do Plenário da Assembleia da República... - ao contrário do que, surpreendentemente, vem sugerido no ponto nº1 do pedido de apreciação da constitucionalidade em análise.
3. Quaisquer outros meios de prova devem considerar-se excluídos no processo de fiscalização preventiva de constitucionalidade.
Com efeito, tenho como certo que o Tribunal Constitucional neste tipo de acção não dispõe de poderes para o apuramento de questões-de-facto relativas ao ocorrido nas reuniões dos órgãos colegiais autores da norma aprecianda (Assembleia da República, Conselho de Ministros, assembleia legislativa regional), que não conste do registo oficialmente aprovado como acta da reunião em foco. Tal doutrina, além de corresponder à solução exigida pelo regular funcionamento das instituições democráticas, é a única que se harmoniza com o modo como o processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade vem regulado nos artigos 278º e 279º da Constituição e nos artºs. 51º e seguintes da Lei nº 28/82.
Assim, enquanto não fôr aprovado o Diário da Assembleia da República, I Série, correspondente à reunião do Plenário de 17 de Julho, a matéria de facto invocada no ponto nº1 do pedido de apreciação sub judice terá de ser tratada pelo Tribunal neste processo como res interna do Órgão de Soberania a que presido e como domínio subtraído à possibilidade de qualquer prova por outros meios.
4. Também o Presidente da Assembleia da República, salvo o disposto no nº4 do artº 122º do Regimento, carece de iniciativa e de competência para proceder ao levantamento das incertezas de que, pelos vistos, anda rodeada a votação do Plenário de 17 de Julho do Projecto de lei destinado a introduzir alterações na chamada Lei da Greve. Por isso, ele como tal em nada pode contribuir, por enquanto, para o esclarecimento dessas dúvidas, aliás só formalizadas em 29 de Julho na reunião da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família.
5. A fim de ponderar o melhor possível o problema levantado e discutido na referida reunião da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família, logo que tive conhecimento do sucedido, incumbi o meu Gabinete da elaboração de um parecer jurídico fundamentado sobre o assunto - o qual foi subscrito pelo Assessor Sr. Dr. Montalvão Machado e veio a merecer a minha concordância. Dele junto cópia em anexo.
Partindo dos dados e razões assim reunidos, decidi proceder ao envio do Decreto nº 29/VI a Sua Excelência o Senhor Presidente da República, para efeitos da alínea b) do artigo 137º da Constituição, nos exactos termos em que o determina a alínea a) do artigo 19º do Regimento.
6. A verdade é que ninguém até agora pôs em dúvida que o Projecto de lei em questão haja sido objecto de votação final global pelo Plenário da Assembleia da República.
Ora, na ordem lógico-jurídica, na ordem constitucional e na ordem regimental, a votação final global constitui o acto terminal, conclusivo ou definitivo da fase propriamente deliberativa do procedimento legislativo. As outras duas votações prescritas pela Constituição - a votação na generalidade e a votação na especialidade - configuram-se como actos antecedentes, preliminares ou preparatórios da deliberação parlamentar consubstanciada nessa votação final global.
7. É claro que qualquer das três votações, requeridas pela Constituição para a regular deliberação das leis, constitui e se perfila como acto do Plenário considerado como um todo. No entanto, mesmo os actos de pura ordenação que ao Presidente cabem no decurso da votação (anunciar o diploma a votar, solicitar o voto, contar os votos expressos, proclamar os resultados, etc.), também eles, passam a ser eo ipso juridicamente imputáveis ao Plenário.
É o que se infere directamente do nº2 do artigo 17º do Regimento - no passo onde se garante sempre reclamação e recurso para o Plenário das decisões do Presidente tomadas em reunião plenária.
Isso significa, entre o mais, que qualquer deputado, Grupo Parlamentar e membro da Mesa tem o dever de estar atento às decisões do Presidente no período da votação e de interpelar a Mesa e, sendo necessário, reclamar ou recorrer para o Plenário, nomeadamente, se achar que as votações anunciadas não estão conformes à lógica jurídica, à Constituição ou ao Regimento. Em particular: sendo clara in iure a ordem de precedência das três votações (na generalidade, na especialidade e final global), ninguém pode deixar que se passe a uma votação sucessiva sem que se ache feita a votação antecedente, sob pena de ver precludido o seu direito a reclamar ou recorrer da omissão ou irregularidade assim praticada. Ficar calado e pretender tirar, depois, efeitos de quaisquer desvios do iter procedimental constitucionalmente previsto equivaleria a violar o princípio geral de proibição do venire contra factum proprium, também ele integrante da ideia de Estado-de-Direito Democrático. Isto é: o efeito de preclusão inerente à votação final global assenta, a final, na boa fé ('fidem servando') - um valor sem o qual, impossibilitados o diálogo e a comunicação, inviabilizada fica a prática da democracia.
8. Nesta ordem de ideias, se tivessem faltado - admita-se como hipótese para exercício mental - a votação na especialidade de alguns dos preceitos do Artigo Único do Decreto nº 29/VI, mesmo então, para que a isso se pudesse ligar a consequência jurídica da paralisação do andamento do procedimento legislativo em foco, seria necessário admitir que tal antijuridicidade operaria como causa de nulidade ou inexistência jurídica da votação final global.
E pergunta-se: poderá o intérprete da Constituição concluir, segundo as regras de inferência jurídica, que a falta de votação na especialidade, uma deficiente execução desta, etc. etc., num projecto ou proposta de lei constituam causa de inexistência jurídica ou nulidade da votação final global do mesmo procedimento legislativo - isto é, do acto conclusivo da fase deliberativa?
Tenho por seguro que não. É verdade que a inexistência jurídica ou nulidade dos actos constitucionais (isto é, actos regulados pelo direito constitucional), decorrente da antijuridicidade de qualquer dos seus passos ou fases procedimentais, não é estranha ao direito constitucional vigente. Vejam-se, entre outros, os exemplos dados pelos nº 6 do artº 116º, artº 140º e nº2 do artigo 143º da Constituição. Suponho até que deverá admitir-se, em contrário do velho brocardo «pas de nullité sans texte», que, além dos casos expressamente previstos, os operadores jurídicos da ordem constitucional, em particular os tribunais, dêem como possíveis outras causas de inexistência ou nulidade dos actos constitucionais.
O que claramente se me afigura absurdo e contrário aos mais elementares cânones da hermenêutica jurídica seria partir do princípio segundo o qual o desrespeito das normas procedimentais acarreta, sempre e necessariamente, a nulidade ou inexistência jurídica dos actos subsequentes e do acto conclusivo do procedimento legislativo em foco. No plano da ordem jurídica positiva nem Kelsen pôde admitir como praticável a doutrina (teoreticamente por ele defendida) da inexistência, nulidade ou insusceptibilidade de imputação ao Estado, automáticas dos actos públicos praticados com violação das normas jurídicas disciplinadoras da produção deles.
Em suma: na ausência de texto constitucional expresso, a falta e as deficiências do acto de votação na especialidade de projectos e propostas de lei não podem considerar-se, sem mais ponderação, como causa de nulidade ou inexistência jurídica da votação final global respectiva. A isso se opõem o princípio da proporcionalidade e o princípio da boa fé, ambos essenciais à cultura jurídica ex definitione constitucionalizada e incorporada no Estado Democrático (Cfr, v.g., o nº2 do artº 18º e nº2 do artº 266º CRP e artºs. 5º e
6º do Código do Procedimento Administrativo.'
O Presidente da Assembleia da República concluiu oferecendo o merecimento dos autos quanto aos demais fundamentos invocados no pedido de apreciação preventiva de constitucionalidade e juntou parecer elaborado na assessoria jurídica do seu gabinete.
Também a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses apresentou neste Tribunal um parecer jurídico da autoria dos jurisconsultos Gomes Canotilho, Jorge Leite e Vital Moreira, que foi mandado juntar aos autos.
Entretanto, foi objecto de publicação o Diário da Assembleia da República, que contém o relato da sessão plenária de
17 de Julho de 1992.
II. As normas
1. As normas cuja apreciação vem requerida pelo Presidente da República são as do Artigo único do Decreto nº
29/VI da Assembleia da República, de alteração aos artigos 5º e 8º da Lei nº
65/77, de 26 de Agosto (Lei da Greve).
Sob a epígrafe 'Pré-aviso', dispõe o artigo 5º desta Lei:
'1. As entidades com legitimidade para decidirem do recurso à greve, antes de a iniciarem, terão de fazer por meios idóneos, nomeadamente por escrito ou através dos meios de comunicação social, um pré-aviso, com o prazo mínimo de quarenta e oito horas, dirigido à entidade empregadora, ou à associação patronal, e ao Ministério do Trabalho.
2. Para os casos das alíneas do nº2 do artigo 8º, o prazo de pré-aviso será de cinco dias.'
E, sob a epígrafe 'Obrigações durante a greve', dispõe o artigo 8º:
'1. Nas empresas ou estabelecimentos que se destinem à satisfação de necessidades sociais impreteríveis ficam as associações sindicais e os trabalhadores obrigados a assegurar, durante a greve, a prestação dos serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação daquelas necessidades.
2. Para efeitos do disposto no número anterior, consideram-se empresas ou estabelecimentos que se destinam à satisfação de necessidades sociais impreteríveis os que se integram, nomeadamente, em alguns dos seguintes sectores:
a) Correios e telecomunicações; b) Serviços médicos, hospitalares e medicamentosos; c) Funerários; d) Serviços de energia e minas; e) Abastecimento de águas; f) Bombeiros; g) Transportes, cargas e descargas de animais e géneros alimentares deterioráveis.
3. As associações sindicais e os trabalhadores ficam obrigados a prestar, durante a greve, os serviços necessários à segurança e manutenção do equipamento e instalações.
4. No caso do não cumprimento do disposto neste artigo, o Governo poderá determinar a requisição ou mobilização nos termos da lei aplicável.'
O Artigo único do Decreto nº 29/VI da Assembleia da República determina:
'Os artigos 5º e 8º da Lei nº 65/77, de 26 de Agosto, passam a ter a seguinte redacção:
Artigo 5º Pré-aviso
1. As entidades com legitimidade para decidirem do recurso à greve, antes de a iniciarem, têm de fazer por meios idóneos, nomeadamente por escrito ou através dos meios de comunicação social, um pré-aviso, com o prazo mínimo de cinco dias, dirigido à entidade empregadora ou à associação patronal e ao Ministério do Emprego e da Segurança Social.
2. Para os casos do nº2 do artigo 8º, o prazo de pré-aviso é de dez dias.
Artigo 8º Obrigações durante a greve
1. .......................................................
2. .......................................................
a) .................................................
b) .................................................
c) Salubridade pública, incluindo a realização de funerais;
d) Serviços de energia e minas, incluindo o abastecimento de combustíveis;
e) .................................................
f) .................................................
g) Transportes, incluindo portos, aeroportos, estações de caminho de ferro e de camionagem, relativos a passageiros, animais e géneros alimentares deterioráveis e a bens essenciais à economia nacional, abrangendo as respectivas cargas e descargas;
3. ......................................................
4. Os serviços mínimos previstos no nº1 podem ser definidos por convenção colectiva ou por acordo com os representantes dos trabalhadores.
5. Não havendo acordo anterior ao pré-aviso quanto à definição dos serviços mínimos previstos no nº1, o Ministério do Emprego e da Segurança Social convoca os representantes dos trabalhadores referidos no artigo 3º e os representantes dos empregadores, tendo em vista a negociação de um acordo quanto aos serviços mínimos e quanto aos meios necessários para os assegurar.
6. Na falta de acordo até ao termo do 5º dia posterior ao pré-aviso de greve, a definição dos serviços e dos meios referidos no número anterior é estabelecida por despacho conjunto, devidamente fundamentado, do Ministro do Emprego e da Segurança Social e do Ministro responsável pelo sector de actividade, com observância dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade;
7. O despacho previsto no número anterior produz efeitos imediatamente após a sua notificação aos representantes referidos no nº5 e deve ser afixado nas instalações da empresa ou estabelecimento, nos locais habitualmente destinados à informação dos trabalhadores.
8. Os representantes dos trabalhadores a que se refere o artigo 3º deve designar os trabalhadores que ficam adstritos à prestação dos serviços referidos nos nºs. 1 e 3, até 48 horas antes do início do período de greve, e, se não o fizerem, deve a entidade empregadora proceder a essa designação.
9. No caso de incumprimento das obrigações previstas nos nºs 1, 3 e 8 pode o Governo determinar a requisição ou mobilização, nos termos da lei aplicável.'
O Presidente da República suscitou a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas do artigo 8º, nº2, alínea g), e nºs. 4, 5, 7, 8 e 9, do Artigo único do Decreto nº 29/VI, com referência ao artigo 171º da Constituição. Entendeu que a eventual inconstitucionalidade formal dessas normas se comunicaria a todas as normas do mesmo Decreto. Suscitou também a apreciação das normas de alteração aos artigos
5º, nºs 1 e 2, e 8º, nº6, da Lei nº 65/77, de 26 de Agosto, mas aqui em confronto com as normas constitucionais dos artigos 2º, 18º, nº3, e 57º, nºs 1 e
2.
Indagar-se-á, pois, da conformidade dessas normas à Constituição.
III. A fundamentação
1. As normas do artigo 8º, nº2, alínea g), e nºs. 4, 5, 7, 8 e 9 do Artigo único do Decreto nº 29/VI da Assembleia da República: o problema da regularidade formal do procedimento
1.1. No pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade, o Presidente da República começa por suscitar uma questão de inconstitucionalidade formal: alega que, tendo o Plenário da Assembleia da República avocado a votação na especialidade de todas as normas do Decreto sub judice, não houve lugar à votação na especialidade das normas do artigo 8º, nº2, alínea g), e nºs. 4, 5, 7, 8 e 9, constantes do Artigo Único do mesmo Decreto.
Com referência ao artigo 171º, nº 2, da Constituição, que determina que a votação dos projectos e propostas de lei
'compreende uma votação na generalidade, uma votação na especialidade e uma votação final global', considera o Presidente da República que a ausência de votação na especialidade configurará 'uma inconstitucionalidade formal, por vício de procedimento legislativo, a qual não deixará de afectar, de forma derivada ou reflexa, todas as normas contidas no Artigo único do diploma em questão.'.
Como elemento comprovativo da inexistência de votação na especialidade pelo Plenário da Assembleia da República das normas do artigo 8º, nº2, alínea g), e nºs. 4, 5, 7, 8 e 9, constantes do Artigo Único do Decreto nº 29/VI, o Presidente da República anexa ao seu pedido a Acta número trinta e sete da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família da Assembleia da República.
Para o requerente resulta da leitura dessa Acta 'que o Plenário da Assembleia da República, na sessão de 17 de Julho de 1992, avocou a votação na especialidade das normas constantes do Artigo único do Decreto nº 29/VI' e que não teve lugar a votação na especialidade pelo Plenário da Assembleia da República da alínea g) do nº 2 e dos nºs. 4, 5, 7, 8 e
9 do artigo 8º, constantes do Artigo Único do mesmo Decreto, 'razão pela qual, na sessão da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família (...) não houve unanimidade quanto a estes pontos, o que deu origem a declarações de voto de três dos quatro representantes dos partidos presentes, que contestam a regularidade dos procedimentos adoptados.'.
Convidado a pronunciar-se sobre o pedido, o Presidente da Assembleia da República afirmou, nomeadamente:
'(...) A quaestio facti alegadamente subsistente no caso - saber se os referidos preceitos do Artigo único do Decreto nº 29/VI foram, ou não, submetidos a votação na especialidade- apenas poderá ser resolvida pela apresentação do único meio de prova que a esclarecerá : a acta da reunião do Plenário de 17 de Julho (cfr. artº 120º, nº 2, artº 121º e artº 122º, todos do Regimento). Só que, até agora, nada foi aprovado ainda, nos termos do artº 122º do Regimento (cfr. especialmente nº 6), que possa valer como acta da reunião em referência.
Por outro lado, é óbvio também que a acta da reunião de 29 de Julho da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família não é uma acta do Plenário da Assembleia da República... - ao contrário do que, surpreendentemente, vem sugerido no ponto nº 1 do pedido de apreciação da constitucionalidade em análise.'.
1.2. O Decreto da Assembleia da República nº 29/VI foi enviado ao Presidente da República para efeito de promulgação [C.R.P., art. 137º, alínea b)]. Contém a assinatura do Presidente da Assembleia da República que é a entidade competente para proceder àquele envio [Regimento da Assembleia da República, artigo 19º, alínea a)].
A aparente regularidade que daí advém ao processo de formação do Decreto nº 29/VI, é, no pedido de apreciação preventiva de constitucionalidade, posta em dúvida com o teor da Acta número trinta e sete da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família, da Assembleia da República.
1.3. Porém, esta Acta não certifica o ocorrido no Plenário da Assembleia da República. Nos termos do artigo 122º, nº6, do Regimento da Assembleia da República, apenas o Diário da Assembleia da República, 'depois de aprovado, com as rectificações que tiverem sido deferidas', constitui expressão autêntica do ocorrido na reunião parlamentar a que respeita. Essa aprovação, nos termos dos nºs. 3, 4 e 5 do mesmo preceito, verifica-se após a terceira sessão posterior à distribuição do Diário, por deliberação do Plenário da Assembleia da República.
Ora, o Diário da sessão plenária de
17 de Julho de 1992 ainda não foi aprovado. E enquanto o não for, o processo de formação da vontade parlamentar não é inequivocamente exteriorizado a ponto de o Tribunal poder esclarecer quaisquer dúvidas sobre a sua regularidade.
Com efeito, na falta de aprovação do Diário, e que nos termos do artigo 122º, nº6, do Regimento da Assembleia da República vale como 'expressão autêntica' do ocorrido na sessão plenária, não pode o Tribunal fazer juízos de probabilidade, coligir indícios e examiná-los segundo um princípio de livre apreciação da prova. Não se trata de fazer prevalecer a forma: o que está em causa é a observância das regras relativas à tramitação do processo legislativo, nomeadamente as contidas no Regimento da Assembleia da República. E o Tribunal não pode fazer 'letra morta' desses preceitos, prescindir do único documento com força probatória - o Diário depois de aprovado.
Não terá assim de sufragar-se uma argumentação que, com paralelismo na teoria do negócio jurídico ou do acto administrativo, afirme a possibilidade de sanação da votação na especialidade pela votação final global. O cerne da questão - saber se se configurará ou não uma inconstitucionalidade formal - tem que ver com a observância ou inobservância de normas de procedimento. O funcionamento de uma ordem constitucional democrática assenta precisamente na observância de procedimentos previamente estabelecidos e regulados. Não se pode considerar a votação na generalidade, a votação na especialidade e a votação final global como um iter sucessivo de formação da vontade, em que os momentos posteriores, sem mais, pudessem elidir os anteriores. O que se trata é de saber se o procedimento foi regular, se observou as regras constantes da Constituição.
Mas quanto à dúvida suscitada - a existência ou inexistência de votação na especialidade da alínea g) do nº2, bem como dos nºs. 4, 5, 7, 8 e 9 do artigo 8º, constantes do Decreto em apreço - só o Diário, depois de aprovado, constituirá meio de prova.
Cabe ainda assinalar que o Tribunal Constitucional não poderá, nesta sede de fiscalização preventiva de normas jurídicas, lançar mão do instituto da suspensão da instância, no sentido de se aguardar a aprovação do Diário da Assembleia da República já publicado. Este instituto é, pelo menos no caso, incompatível com o prazo constitucional de vinte e cinco dias estabelecido para esta espécie de fiscalização de constitucionalidade (C.R.P., artigo 278º, nº8).
Pelo que, com os elementos de que dispõe, não pode o Tribunal Constitucional concluir pela existência de irregularidades no processo de aprovação do Decreto nº 29/VI da Assembleia da República.
2. A dimensão constitucional do direito à greve
O direito à greve é um direito fundamental garantido aos trabalhadores pela Constituição. Integra o conjunto de direitos, liberdades e garantias enunciados no Título II e apresenta uma dimensão essencial de defesa ou liberdade negativa: a liberdade de recusar a prestação de trabalho contratualmente devida, postulando a ausência de interferências, estaduais ou privadas, que sejam susceptíveis de a pôr em causa.
Esta caracterização constitucional do direito à greve como posição subjectiva fundamental de natureza defensiva não ilude porém a sua ligação aos fundamentos do Estado Social de direito: a greve
é um instrumento de reivindicação que concorre para a promoção de condições de igualdade real entre indivíduos e grupos sociais.
Apresentando-se como um direito individual de exercício colectivo, orientado à tutela comum de um interesse colectivo, o direito à greve revela, pela própria natureza, a 'imbricação das concepções liberal e social' (G. Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, págs. 105-106), que na ordem constitucional democrática, em regra, vai ligada ao entendimento dos direitos fundamentais. O elemento colectivo participa do próprio conteúdo do direito sem que lhe apague a fisionomia de direito individual de cada trabalhador (A. Monteiro Fernandes,
'Reflexões sobre a Natureza do Direito à Greve', Estudos Sobre a Constituição,
2º vol., pág. 333).
A fundamentalidade material do direito à greve liga-se, pois, aos princípios constitucionais da liberdade e da democracia social. A sua especial inserção no elenco dos direitos, liberdades e garantias confere-lhe uma protecção constitucional acrescida que se traduz no
'reforço de mais valia-normativa' (G. Canotilho) do preceito que o consagra relativamente a outras normas da Constituição. O que significa: (1) aplicabilidade directa, sendo o conteúdo fundamental do direito afirmado já ao nível da Constituição e não dependendo o seu exercício da existência de lei mediadora; (2) vinculação das entidades públicas e privadas, implicando a neutralidade do Estado (proibição de proibir) e a obrigação de a entidade patronal manter os contratos de trabalho, constituindo o direito de greve um momento paradigmático da eficácia geral das estruturas subjectivas fundamentais;
(3) limitação das restrições aos casos em que é necessário assegurar a concordância prática com outros bens ou direitos constitucionalmente protegidos
- sendo certo que a intervenção de lei restritiva está expressamente vedada quanto à definição do âmbito de interesses a defender através da greve (C.R.P., art. 57º, nº2).
3. O pré-aviso e as normas do artigo
5º, nºs 1 e 2, da Lei nº 65/77, de 26 de Agosto, com a redacção do Decreto nº
29/VI da Assembleia da República
O pré-aviso é a notificação da greve.
Anuncia os termos da paralisação ao empregador, aos trabalhadores que eventualmente queiram aderir e ao público em geral. Constituindo a 'notícia da greve', o pré-aviso dá conta, em regra, das circunstâncias de tempo e lugar em que a greve se concretiza. Em relação à opinião pública e às entidades responsáveis pela política de concertação social, o pré-aviso é um dado para a avaliação dos objectivos que com a greve se propõem os trabalhadores.
A justificação do pré-aviso busca-a certa doutrina no princípio geral de boa-fé no exercício dos direitos 'que impõe atempada notícia quando se faz interromper ou cessar uma relação contratual que se protrai no tempo' (Bernardo Lobo Xavier, Direito à Greve, Lisboa, 1984, pág.
160; também Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, 1991, pág.
384: 'o pré-aviso filia-se na boa-fé que manda preservar a confiança da contraparte'; cf., ainda, Parecer nº 168/82, da P.G.R., in: B.M.J., nº 337, Junho/1984, pág. 81: 'a boa fé, a lealdade e a franqueza têm de presidir também ao exercício do direito de greve').
Mais afirmada é a ideia de que o pré-aviso permite aos utentes dos serviços abrangidos pela greve - sobretudo dos serviços públicos - saber com o que contam e tomar as devidas precauções, fazendo com que os danos se mantenham nos limites da própria interrupção do trabalho' (Bernardo Lobo Xavier, ob. cit., págs. 160-161; no mesmo sentido, Menezes Cordeiro, ob. e pág. cits.; Monteiro Fernandes, Noções Fundamentais de Direito do Trabalho, 2, Coimbra, 1983, pág. 296).
Finalmente, o pré-aviso configura-se como 'um dos constituintes essenciais de um processo de conciliação, destinando-se justamente a exprimir um estímulo derradeiro à superação do conflito' (cf. António Monteiro Fernandes, Direito à Greve, Notas e Comentários
à Lei nº 65/77, de 26 de Agosto, Coimbra, 1983, pág. 39, referindo o Parecer nº
48/78 da P.G.R., de 29.6.78).
Retomemos, agora, a formulação das normas do artigo 5º, nºs 1 e 2, contidas no Decreto nº 29/VI da Assembleia da República.
'Artigo 5º
Pré-aviso
'1. As entidades com legitimidade para decidirem do recurso à greve, antes de a iniciarem, têm de fazer por meios idóneos, nomeadamente por escrito ou através dos meios de comunicação social, um pré-aviso, com o prazo mínimo de cinco dias, dirigido à entidade empregadora ou à associação patronal e ao Ministério do Emprego e da Segurança Social.
2. Para os casos das alíneas do nº2 do artigo 8º, o prazo de pré-aviso é de dez dias.'
O pré-aviso configura-se como uma exigência procedimental, uma condição de exercício do direito à greve.
A questão de constitucionalidade é a de saber se ou em que medida as normas transcritas interferem no âmbito de protecção do direito à greve, garantido aos trabalhadores no artigo 57º, nºs 1 e
2, da Constituição. Indagar-se-á se o legislador tem aí uma intervenção conformadora ou uma intervenção restritiva do Tatbestand do direito.
Como afirma Gomes Canotilho, 'a autonomia do legislador sofre uma 'compressão' material inequívoca no âmbito dos direitos fundamentais' (Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 314). Se essa intervenção é susceptível de inibir ou dificultar o exercício do direito, então entra no domínio das restrições e carece de ser constitucionalmente justificada.
Perguntar-se-á se a imposição por lei de um dever de pré-aviso de greve, com o prazo mínimo de cinco dias (artigo
5º, nº1) ou de dez dias, nos casos das empresas ou estabelecimentos que se destinem à satisfação de necessidades sociais impreteríveis (artigo 5º, nº2), diminui os efeitos de pressão visados com a greve até pôr em causa a sua efectividade.
Aquelas normas implicam a desprotecção dos interesses que dão vida ao direito, tornando-o impraticável ou submetendo-o a condições que dificultam a sua realização? A figura do pré-aviso como requisito de regularidade do exercício do direito à greve, com os prazos previstos no Decreto nº 29/VI, virá a constituir uma limitação do direito e a intervenção do legislador a configurar-se aí como intervenção restritiva em matéria de direitos fundamentais?
É necessário, pois, delimitar dogmaticamente a figura da intervenção restritiva de outras intervenções conformadoras (em sentido amplo) do legislador.
A doutrina mostra algumas oscilações nesta matéria, nem sempre distinguindo cabalmente a conformação, em sentido estrito, da figura da restrição. É o caso de Häberle: para Häberle, toda a intervenção legislativa é intervenção conformadora e os contributos constitutivos (Konstitutivebeiträge) do legislador para a determinação do conteúdo dos direitos fundamentais não excluem a sua vinculação a estes. Por outro lado, estende o conceito de conformação ao âmbito da restrição: 'A legislação que limita os direitos fundamentais no interesse de bens jurídicos do mesmo escalão ou de escalão superior não prescinde do momento da conformação. Não apenas os direitos fundamentais, mas também os limites aos direitos fundamentais, são objecto de uma actividade conformadora do legislador' (Die
Wesensgehaltgarantie des Artikel 19, Abs. 2 Grundgesetz, 3ª edição, Heidelberg,
1983, págs. 181 e segs., pág. 191). Häberle estende assim o conceito de conformação a todo o âmbito de intervenção normativa no domínio dos direitos fundamentais.
Na terminologia de Jorge Miranda, a hipótese em apreço seria subsumível na categoria de 'condicionamento'. Por condiciomamento, entende 'um requisito de natureza cautelar de que se faz depender o exercício de algum direito, como a exigência de participação prévia ou de caução ou a autorização vinculada' (Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 'Direitos Fundamentais', Coimbra, 1988, pág. 301).
Vieira de Andrade adverte para a dificuldade de delimitar em abstracto os contornos das duas figuras (restrição e conformação). Afirma que a distinção entre 'leis regula(menta)doras - (leis de organização), que organizam e disciplinam a 'boa execução' dos preceitos constitucionais e que, com essa finalidade, poderão, quando muito, estabelecer condicionamentos ao exercício dos direitos' - e leis restritivas, 'é fundamentalmente prática'. E dá o exemplo: 'uma caução exigida aos organizadores de uma manifestação (para garantir o pagamento de eventuais prejuízos causados pelos manifestantes) pode constituir um mero condicionamento, se, na sociedade concreta, for de um montante acessível, ou uma restrição, se, pelo contrário, dificultar ou impedir o exercício do direito por alguns sectores ou grupos da população'. 'Muitas vezes [afirma o autor] é apenas um problema de grau ou de quantidade'. (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, Coimbra, 1983, pág. 228).
Numa linha semelhante vai a argumentação de Robert Alexy. Só que Alexy procura afinar conceptualmente a distinção, explicitando um critério abstracto. Esse critério é o da não inibição da realização de um direito fundamental (Das Kriterium der Nichthemmung der Realisierung eines Grundrechtlichen Prinzips) - (Theorie der Grundrechte, Baden-Baden, 1985, pág. 306). Claro que este critério não opera em abstracto: tem que ser relacionado com a situação concreta. Somente à luz da situação concreta é possível aferir se estamos ou não perante a inibição da realização do direito. E aqui é clara a convergência das posições de Alexy e Vieira de Andrade que, como vimos no exemplo citado, considera determinante para a distinção o poder-se ou não concluir se a intervenção do legislador 'vem dificultar ou impedir o exercício do direito' (ob. e loc. cits.).
Analisemos, pois, se o legislador, ao regular o modo de exercício do direito à greve nas normas do artigo 5º, nºs 1 e
2, do Decreto nº 29/VI, ainda se move nos quadros de uma actuação conformadora ou se, pelo contrário, está a proceder a uma restrição do direito.
Atente-se, desde logo, nas limitações da liberdade do empregador no âmbito da greve: ao pré-aviso não pode este responder com o lock-out, proibido expressamente pela norma do artigo 57º, nº3, da Constituição. (cf., igualmente, a Lei nº 65/77, artigo 14º). Além disso, são nulos todos os actos que impliquem 'coacção, prejuízo ou discriminação sobre qualquer trabalhador por motivo de adesão ou não à greve' (Lei nº 65/77, artigo
10º). Proibida é também a substituição dos trabalhadores durante a greve 'por pessoas que à data do seu anúncio não trabalhavam no respectivo estabelecimento ou serviço', não podendo a entidade empregadora, desde aquela data, admitir novos trabalhadores (Lei nº 65/77, artigo 6º). A lei previne desse modo as medidas de anulação dos efeitos da greve que eventualmente pudessem ser preparadas a partir do momento do pré-aviso.
Por outro lado, o prazo de dez dias estabelecido pela norma do artigo 5º, nº2, para os casos de greve nas empresas ou estabelecimentos que se destinem à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, não pode deixar de ser compreendido no contexto da alteração prevista no Decreto nº 29/VI para o artigo 8º da Lei nº 65/77, de 26 de Agosto.
As normas dos números 4, 5 e 6 deste preceito estabelecem as competências para a definição dos serviços mínimos. Esta definição é feita por convenção colectiva ou por acordo com os representantes dos trabalhadores (número 4). Não havendo acordo nestes termos, o Ministério do Emprego e da Segurança Social convoca os representantes dos trabalhadores e os representantes dos empregadores, 'tendo em vista a negociação de um acordo quanto aos serviços mínimos e quanto aos meios necessários para os assegurar' (número 5). Finalmente, quando se inviabiliza o consenso, a definição dos serviços mínimos é 'estabelecida por despacho conjunto, devidamente fundamentado, do Ministro do Emprego e da Segurança Social e do Ministro responsável pelo sector de actividade' (número 6).
Ora, o prazo de pré-aviso de 10 dias, previsto no artigo 5º, nº2, não deverá deixar de articular-se com o procedimento instituído no artigo 8º para a definição dos serviços mínimos. Traduz-se afinal em tempo adequado a ensaiar as soluções que ali se prevêem para a obtenção de um acordo.
Finalmente, atente-se na medida da ampliação dos prazos de pré-aviso - de dois dias para cinco (artigo 5º, nº1) e de cinco dias para dez (artigo 5º, nº2). Esta não se afigura como uma ampliação excessiva ou irrazoável.
Com efeito, o pré-aviso, nos termos e com os prazos que estabelecem as normas do artigo 5º, nºs. 1 e 2, de alteração
às disposições correspondentes da Lei nº 65/77, não vem dificultar ou inibir a realização do direito à greve. O legislador organiza o exercício do direito sem reduzir a sua extensão objectiva, deixando imperturbado o âmbito de protecção da norma constitucional que o consagra (cf., C.R.P., artigo 57º). Recorde-se, aliás, que no ordenamento jurídico-constitucional posterior ao 25 de Abril de
1974, o Decreto-Lei nº 392/74, de 27 de Agosto (regulador do exercício do direito à greve e lock-out), previa no artigo 11º um prazo de pré-aviso de pelo menos sete dias, ou seja, um prazo superior ao prazo-regra agora estabelecido.
O pré-aviso faz parte do processo preliminar do exercício do direito de greve. É verdade que o legislador não actua aí nos limites de uma 'estreita liberdade executiva' (G. Canotilho): conforma fins político-sociais que porventura se ligam ao domínio de justificação do pré-aviso e que a doutrina assenta nas ideias de boa-fé, prevenção de danos excessivos, e activação do consenso.
Mas a intervenção legislativa não constitui aí uma ingerência no âmbito de protecção da norma. É uma intervenção conformadora e a conformação em sentido estrito e próprio (como figura contraposta à restrição) tem que ver com a organização de procedimentos: Vieira de Andrade fala de leis de organização (ob. e loc. cits.), Alexy, de normas de competência (ob. cit., pág. 300), Canotilho refere como exemplo de
'concretização' (que na sua terminologia designa a mediação legislativa no
âmbito de direitos que dela não necessitam) a necessidade de participação das manifestações às autoridades policiais (Direito Constitucional, Coimbra, 1991, pág. 648).
Ora é isto que se passa com o pré-aviso. O pré-aviso faz parte do processo preliminar do exercício do direito. O legislador move-se no espaço de conformação, não actua uma restrição.
E não se tratando de uma intervenção restritiva, os requisitos de adequação e proporcionalidade não são aqui convocados, pelo que as normas do artigo 18º, nºs. 1 e 2, da Constituição, não constituem parâmetro de avaliação de constitucionalidade.
Como se afirmou no Acórdão nº 99/88 do Tribunal Constitucional (D.R., IIª série, nº 193, de 22.8.1988), 'uma distinção básica deverá ter-se em conta dentro das intervenções legislativas ou das normas legais respeitantes a direitos fundamentais (...): a que decorre justamente entre as normas restritivas desses direitos (normas que encurtam ou estreitam o seu conteúdo e alcance) e as meramente condicionadoras do respectivo exercício (normas que não visam aquele objectivo da redução das faculdades ou potencialidades integradoras do direito em causa, e se limitam a definir pressupostos ou condições do seu exercício). Com efeito, enquanto as primeiras, para se legitimarem constitucionalmente, haverão de responder ao conjunto de exigências e cautelas a esse respeito consignadas no artigo 18º, nos 2 e 3, da lei fundamental, já tais exigências e cautelas não se põem, por definição, quanto às segundas, as quais, assim, desde logo e designadamente, não necessitam de uma credencial ou provisão constitucional expressa, autorizando ao legislador a sua emissão'. (cf., igualmente, o Acórdão nº 370/91, D.R., IIª Série, nº 78, de 2.4.1992).
No plano da intervenção conformadora não se trata, pois, de proceder a uma ponderação entre diferentes bens jurídico-constitucionalmente protegidos, nem há lugar a juízos de concordância prática. O apelo a um critério de razoabilidade não vem aqui ordenado às estruturas de ponderação do artigo 18º, nºs. 2 e 3, da Constituição: antes serve
à avaliação do modo e intensidade com que as normas em apreço se projectam na realização do direito fundamental, indagando se com elas se causa ou não um impedimento ou inibição do exercício do direito.
À luz desse critério, e em face da anterior ordem de considerações, há que concluir que o instituto do pré-aviso, tal como vem configurado no Decreto nº 29/VI não implica a inibição ou dificultação do exercício do direito à greve, pelo que as normas em apreço não se mostram contrárias à Constituição da República.
E, por maioria de razão, assim haveria de concluir uma tese que, nessas normas, antes reconhecesse a figura da restrição e a necessidade que envolve de convocar os critérios constitucionais de adequação e proporcionalidade.
4. Os serviços mínimos e o conteúdo essencial do direito à greve: a norma do artigo 8º, nº6, no Decreto nº 29/VI da Assembleia da República
1. A admissibilidade constitucional de uma obrigação de serviços mínimos
O Decreto nº 29/VI da Assembleia da República estabelece a obrigatoriedade da prestação de serviços mínimos, para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis (artigo 8º, nº1). Esta obrigação imposta aos trabalhadores em greve de assegurarem a prestação de serviços mínimos não suscita dúvidas de constitucionalidade.
A fundamentação da admissibilidade constitucional da obrigação de serviços mínimos reside na tarefa de concordância prática que incumbe ao legislador e ao intérprete. De um ponto de vista dogmático estamos aqui perante uma justificação distinta da do pré-aviso: naquele caso não se tratava de intervenção restritiva, não havia ingerência no
âmbito de protecção da norma - por isso, não havia que convocar as estruturas de ponderação estabelecidas nos nºs. 1 e 2 do artigo 18º da Constituição. Na justificação da admissibilidade constitucional da obrigação de serviços mínimos confrontamo-nos com uma restrição (ou limitação) do direito e a necessidade da sua justificação.
Não se diga que o direito à greve não está sujeito a restrições: o que não está sujeito a intervenção restritiva do legislador é a delimitação dos interesses a defender através da greve (C.R.P., artigo 57º, nº2); foi esta a decisão do legislador constituinte em termos do programa normativo-constitucional da greve. O direito à greve está sujeito a reserva de lei restritiva, desde que a lei restritiva observe os pressupostos formais e materiais que a Constituição lhe impõe.
Bernardo Lobo Xavier (ob. cit., pág.
187) qualifica esta obrigação de serviços mínimos como 'indubitavelmente uma limitação ao direito à greve' e justifica a limitação pela necessidade de
'tutela de outros valores presentes no ordenamento jurídico, traduzida na genérica expressão de satisfação de necessidades sociais impreteríveis'. A generalidade da doutrina juslaborista oferece uma justificação semelhante para a obrigação legal de serviços mínimos.
Esta justificação também não oferece dúvidas do ponto de vista da dogmática dos direitos fundamentais: Häberle observa que todos os direitos fundamentais estão entre si e com o direito de organização do Estado - e aí, em especial com as determinações constitucionais dos fins do Estado - numa relação de complementaridade funcional (Die
Wesensgehaltgarantie... cit.). Também Friedrich Müller chama a atenção para que
'nenhum direito fundamental é garantido sem restrições' - (Die Positivität der Grundrechte, Fragen einer praktischen Grundrechtsdogmatik, Berlim, 1969, pág.
41) - isto, em virtude da 'reserva de qualidade jurídica dos direitos fundamentais' (Vorbehalt der Rechtsqualität der Grundrechte) decorrente da sua inserção na sistemática da Constituição e no jogo de restrições e complementações implicadas nessa sistemática.
É também o contexto sistemático da Constituição que Gomes Canotilho invoca para justificar limites materiais não escritos, avançando precisamente com o exemplo das restrições (ou limitações) ao direito de greve. Diz: 'Embora a Constituição não admita limites ao direito de greve, justificar-se-iam limites constitucionais não escritos a fim de se salvaguardarem outros direitos ou bens constitucionalmente garantidos (ex.: exigência de garantia de serviços mínimos em hospitais, serviços de segurança, etc.' (cf. Direito Constitucional... cit., pág. 616). De modo semelhante, Bernardo Xavier alude à interconexão sistemática dizendo que o direito de greve não se move 'numa atmosfera rarefeita sem conexão com o ordenamento jurídico'
(ob. cit., pág. 92). Jorge Miranda fala de 'restrições implícitas, derivadas, também elas, da necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos' (Manual... cit., tomo IV, pág. 303).
Certa dogmática dos direitos fundamentais entende estas situações como limitações internas e prévias do direito fundamental, entendimento que vai consubstanciado na doutrina dos
'limites imanentes' - doutrina que, em boa verdade, está correlacionada com uma teoria do Tatbestand restrito. Outro entendimento dogmático é o de considerar os limites como 'externos' e 'a posteriori', resultando da conciliação com outro direito fundamental ou interesse constitucional suficientemente caracterizado e determinado.
Não temos aqui de proceder a opções de construção, nomeadamente pela teoria restrita ou alargada do Tatbestand e pela sua repercussão na problemática dos limites dos direitos fundamentais: qualquer das vias, pese embora a diversidade de perspectivas, conduziria a uma justificação da admissibilidade constitucional de uma obrigação de serviços mínimos.
2. A reserva de lei restritiva e a definição dos serviços mínimos pelo Governo
2.1. O problema não é pois o da admissibilidade da restrição (ou limitação), em abstracto. É antes o de ver se, em concreto, a determinação contida no artigo 8º, nº6, aqui em apreço, colide com os pressupostos materiais e formais da reserva de lei restritiva impostos pelo artigo 18º da Constituição.
Segundo o Decreto nº 29/VI, os serviços mínimos podem ser definidos por convenção colectiva ou por acordo com os representantes dos trabalhadores, antes ou depois do pré-aviso (artigo 8º, nºs 4 e 5). Na falta de acordo - e é aqui que vale a norma do artigo 8º, nº6 -, os serviços mínimos e os meios necessários para os assegurar serão definidos
'por despacho conjunto, devidamente fundamentado, do Ministro do Emprego e da Segurança Social e do Ministro responsável pelo sector de actividade, com observância dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade'.
Trata-se agora de saber se a lei está legitimada a conceder a uma entidade administrativa - neste caso, o Governo - competência para a definição dos serviços mínimos, sabido que a imposição de tais serviços constitui uma restrição ao direito de greve.
Atente-se, desde logo, em que a regra geral estabelecida para a definição dos serviços mínimos pelo Decreto nº 29/VI é a da auto-regulação por convenção colectiva ou por acordo com os representantes dos trabalhadores (artigo 8º, nºs. 4 e 5). No procedimento estabelecido pelo artigo 8º, nºs 4, 5 e 6, a intervenção do Governo funciona como 'ultima ratio' de asseguramento dos serviços mínimos, na falta de acordo.
O enquadramento do problema não prescinde, aqui, de um breve excurso pelas considerações da doutrina àcerca dos juízos implicados na definição dos serviços mínimos. A propósito, afirma Bernardo Xavier: 'O problema todo está em saber quem considerará e decidirá quanto aos estabelecimentos que se destinam a necessidades sociais impreteríveis e avaliará dos serviços mínimos indispensáveis. Tratar-se-á de um juízo concreto de oportunidade que tem de ter em conta os mais altos valores sociais, não perdendo de vista que estes se terão de harmonizar com o direito à greve, sem o sacrificar inteiramente. Supomos que a única entidade competente para proceder a esta avaliação e tomar as necessárias decisões será o Governo ou as entidades públicas que têm a seu cargo a tutela sobre estes serviços. Não se poderá contudo esquecer que, se se trata de defesa dos mais importantes interesses da colectividade (satisfação de necessidades sociais impreteríveis), estes só deverão ser realizados através da prestação de serviços mínimos indispensáveis a tal satisfação.' (ob. cit., pág. 188). Monteiro Fernandes afirma, no respeitante à medida dos serviços indispensáveis, que 'é óbvio que depende de um juízo de conveniência que não suporta nenhum critério rigoroso ou absoluto' (ob. cit., pág. 63).
Por outro lado, pode ler-se na obra colectiva 'Huelga, Cierre Patronal y Conflictos Colectivos', de J. Matia Prim, T. Sala Franco, F. Vardes Dal-re, J. Vida Soria: 'As considerações de que a manutenção dos serviços não pode fazer-se equivaler ao seu funcionamento normal, de que é necessária uma proporcionalidade entre a necessidade de garantir os serviços e as limitações estabelecidas, ou de que devem ter prioridade aquelas medidas que não afectem a greve (...) convertem o problema numa questão individualizada, que impede provavelmente uma determinação apriorística e geral'
(Madrid, 1982, págs. 140-141). Estes considerandos são produzidos em jeito de comentário à jurisprudência do Tribunal Constitucional Espanhol. Este Tribunal, na Sentença nº 51/1986, de 24 de Abril, afirmou: 'A necessidade de preservar os serviços essenciais da comunidade requer, tanto para determinar quais são, como para determinar com que intensidade hão-de ser mantidos, uma actividade que é ao mesmo tempo jurídica e política e que, por natureza, pode e deve ser realizada por autoridade que exerça responsabilidades de Governo.' (Boletin de Jurisprudencia Constitucional, 61, Maio 1986, pág. 578).
Ainda com referência ao modelo constitucional-legal do direito à greve em Espanha, reafirmam-se as considerações de Juan Garcia Blasco, na obra 'El Derecho de Huelga en España: Calificacion y Efectos Juridicos': 'Há-de entender-se que, em virtude das condicionantes que intervêm na delimitação de um serviço como essencial, este constitui um conceito jurídico indeterminado (...). Daí que seja imprescindível atender à constatação do caso concreto, não existindo melhor via que a do necessário exame das circunstâncias e particularidades de cada situação, atendendo aos interesses em jogo e aos possíveis riscos das situações de conflito'. (Barcelona, 1983, pág. 101).
No quadro da Lei nº 65/77, afirmou-se no Parecer da Procuradoria-Geral da República nº 100/89 (D.R., IIª Série, nº
276, de 29.11.1990):
'A especificação dos serviços impostos pela satisfação imediata das necessidades sociais impreteríveis depende da consideração das exigências concretas de cada situação, que, em larga medida, serão condicionantes da adequação do serviço a prestar em concreto, não deixando de figurar, entre essas mesmas circunstâncias, como elementos relevantes, o próprio evoluir do processo grevista que as determina, designadamente a sua extensão e a duração e a existência de actividades sucedâneas.
Quer isto dizer que os serviços mínimos a assegurar pelos trabalhadores grevistas, na pendência da greve, para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, serão aqueles que, em face das circunstâncias concretas de cada caso, forem adequados para que a empresa, estabelecimento ou serviço onde a greve decorre e no âmbito da sua acção não deixe de prestar aos membros da comunidade aquilo que, sendo essencial para a vida individual ou colectiva, careça de imediata utilização ou aproveitamento para que não ocorra irremediável prejuízo.'
E, mais adiante, diz o mesmo Parecer:
'No que respeita a serviços públicos essenciais, como se qualificam directamente os serviços de saúde e hospitalares, os valores essenciais a assegurar situam-se mesmo ao nível da própria protecção imediata de direitos como a vida e a saúde: estão aqui em causa valores implicando considerações ao nível dos direitos fundamentais.
A defesa e protecção de interesses e valores qualificados neste nível é tarefa do Governo, ao qual cabe, nos termos constitucionais, defender a legalidade democrática e praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à satisfação das necessidades colectivas - artigo 202º, alíneas f) e g), da Constituição da República.
Governo, como entidade, em princípio, acima da dimensão directamente conflitual e, consequentemente, como tal, distinto da administração-empregador.
Providências que, relativamente ao funcionamento mínimo dos serviços essenciais em situações de greve, podem consistir na eleição do nível das prestações mínimas durante a greve, respeitando o núcleo fundamental do direito de greve pela composição equilibrada dos interesses em causa - a protecção do interesse geral, a própria dimensão de ordem pública, e a proporcionalidade dos sacrifícios perante os limites imanentes do direito fundamental de greve.
Mas necessariamente, sempre considerando que a determinação do nível de serviços mínimos indispensáveis, em cada caso (das concretas garantias), está condicionada por critérios de acomodação constitucional, adequação e proporcionalidade entre a protecção do interesse da comunidade e a restrição imposta ao exercício do direito de greve.'.
2.2. A reserva de lei, em matéria de direitos fundamentais, leva implicada a exigência de precisão e determinabilidade normativas. (Cf., o Acórdão do Tribunal Constitucional nº
285/92, publicado no D.R., Iª Série, de 17.8.92, que desenvolve amplamente esta temática).
Constituindo um corolário do princípio do Estado de direito (a lei como garantia de liberdade face à administração) e do princípio democrático (a lei como consentimento dos cidadãos e como resultado de um procedimento assente na publicidade, no contraditório e no debate), à reserva de lei não pode corresponder uma escassa densificação normativa, capaz de contornar a distribuição constitucional das tarefas de legislação e administração e de inviabilizar, quanto a estas, um controlo efectivo pelos tribunais.
A ratio da reserva de lei vem, assim, iluminar a apreciação da norma do artigo 8º, nº 6, constante do Decreto da Assembleia da República. Esta norma só será constitucionalmente legítima se se constituir em indirizzo para a Administração e parâmetro de controlo para os tribunais.
E a interpretação haverá ainda de contar com a própria natureza do direito à greve. É à luz desse direito e das estruturas de ponderação que levam à justificação dos serviços mínimos que devem ser compreendidos os parâmetros legais estabelecidos no artigo 8º, nº6, do Decreto nº 29/VI.
2.3. A doutrina vem abordando a necessidade de estabelecer uma relação entre o grau de densidade exigível às normas legais, em razão do princípio da reserva de lei, e a natureza dos direitos e situações que regulam.
Sérvulo Correia analisa precisamente o problema das autorizações (legais) para a prática de actos administrativos
'nos domínios abrangidos por reserva de acto legislativo'. E diz: 'por vezes não depende da vontade do legislador e, portanto, não pode relacionar-se imperativamente à partida com a natureza formal da norma o grau de abertura desta em face das situações da vida que deverão ser conformadas no seu quadro. A sua capacidade de direcção do conteúdo da decisão (Leistungsfähigkeit für die Steuerung von Entscheidungsinhalten) é condicionada pela natureza da situação sobre que incide. O princípio formulável é o de que, em matéria de reserva de acto legislativo, à concessão de discricionariedade deve presidir o critério da densificação da norma na medida do possível e da sua abertura para o mínimo incomprimível de margem de livre decisão' (Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, págs. 339-340).
Vieira de Andrade sublinha 'o carácter específico da protecção dos direitos, liberdades e garantias em face da Administração' e rejeita um método conceitualista de separação entre o que, naquele domínio, é reserva de lei e espaço de actuação administrativa: 'A questão [diz] não é susceptível de ser respondida com um simples 'sim' ou 'não'.
Tudo depende, por um lado, dos direitos em causa e, relativamente a cada um deles, da zona de protecção ameaçada' (ob. cit., págs. 324 e 327).
Também o Tribunal Constitucional Alemão formulou na sentença Lüth (BVerfGE, 7, 198) - no sentido da atenuação dos limites estabelecidos por lei restritiva - que, de acordo com a teoria dos efeitos recíprocos (Wechselwirkungstheorie), a lei que estabelece limites aos direitos fundamentais tem ela própria que ser interpretada à luz dos direitos fundamentais em causa.
Também na norma do artigo 8º, nº6, a ligação entre o direito de greve e os serviços mínimos tem que ver com a própria natureza do direito de greve. A tarefa de concordância prática e de optimização de diferentes bens, já vimos, liga-se aí indissociavelmente à avaliação das circunstâncias de cada caso. A ponderação dos interesses em jogo leva implicados
'juízos concretos de oportunidade' (B. Xavier) que dificultam a previsão legal de todas as situações de compressão do direito.
Na perspectiva deste ineliminável grau de abertura da norma do artigo 8º, nº6, e a sua ligação à natureza do direito, há-de ver-se se dela resultam parâmetros de controlabilidade que a legitimem perante a Constituição.
2.4. A norma do artigo 8º, nº6, determina que, nos casos em que há lugar à definição dos serviços mínimos pelo Governo, essa definição seja 'estabelecida por despacho, devidamente fundamentado, do Ministro do Emprego e da Segurança Social e do Ministro responsável pelo sector de actividade, com observância dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade'.
A formulação da norma afigurar-se-á,
à primeira vista, redundante: o dever de fundamentação expressa dos actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos decorre já do artigo 268º, nº3, da Constituição. Além disso, por força da eficácia geral e da aplicabilidade imediata das normas constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias (C.R.P., artigo 18º), a Administração está directamente vinculada aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
Ora, na norma do artigo 8º, nº6, há-de reconhecer-se algo mais do que isso. A norma traça um indirizzo à autoridade administrativa no sentido de estruturar a fundamentação do despacho de acordo com aqueles princípios. O autor do despacho tem de explicar como e porque está a observar os critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade. A reiteração por lei destes critérios constitui ela própria a fixação de uma directiva ou parâmetro legal do dever de fundamentar, parâmetro este que a natureza das coisas dificilmente permitiria que fosse mais determinado. Ao que acresce, no plano dos pressupostos fácticos, a indicação clara pelo artigo 8º, nº2, das empresas ou estabelecimentos que se destinam à satisfação de necessidades sociais impreteríveis.
A motivação e justificação do acto administrativo haverá assim de explicitar directamente um princípio de concordância prática. A fundamentação é, aqui, fundamentação qualificada por critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade. A expressa imposição legal destes critérios, perfeitamente definidos e delimitados na dogmática jurídico-constitucional, garante a eficácia do controlo contencioso - de anulação ou suspensão - do despacho conjunto de fixação dos serviços mínimos.
A solução em apreço não se desvia, pois, do princípio constitucional da reserva de lei. E não cabe ao Tribunal Constitucional conceber alternativas de escolha política que porventura o legislador pudesse nesta sede consagrar. Do que se trata é tão-só de apreciar a norma do artigo 8º, nº6, à luz do princípio da reserva de lei e de demarcar, neste plano da definição dos serviços mínimos, o espaço de legislação e o espaço de administração.
Ora, convocando a anterior ordem de considerações, há que concluir que a norma do artigo 8º, nº 6, constante do Decreto nº 29/VI da Assembleia da República, não é contrária à Constituição.
IV. A decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas do Artigo único do Decreto nº 29/VI da Assembleia da República, de alteração da Lei nº 65/77, de 26 de Agosto.
Lisboa, 2 de Setembro de 1992
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
José Manuel Cardoso da Costa
Têm voto de conformidade os Ex.mºs Senhores Conselheiros Vítor Nunes de Almeida e António Vitorino, que não assinam por não estares presentes
Maria da Assunção Esteves
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