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Procº nº 122/90 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório.
1. A. e esposa, B., propuseram no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia uma acção especial de despejo contra C. (entretanto falecido) e esposa, D., com vista a obter a denúncia do contrato de arrendamento relativo ao prédio urbano, de que são donos e legítimos possuidores, sito na ------------------------, nº -----, ----------------, naquela cidade, para nele habitarem.
Por sentença, de 21 de Outubro de 1988, o Mmº Juiz julgou procedente a acção e decretou o despejo do prédio acima identificado, no prazo de nove meses.
2. Não se conformando com esta sentença, recorreu, então a ré - que ficou só nessa posição após a morte, entretanto ocorrida, do marido - para o Tribunal da Relação do Porto, alegando, inter alia, a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1096º,
1097º e 1098º do Código Civil, por violação do artigo 65º da Lei Fundamental.
Sem êxito, porém, dado que aquele Tribunal, por Acórdão de 28 de Novembro de 1989, negou a apelação, confirmando, consequentemente, a sentença recorrida, por considerar que aquelas normas do Código Civil não infringem o artigo 65º da Lei Fundamental.
3. Deste Acórdão interpôs a ré o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo
280º, nº1, alínea b), e nº4, da Constituição e nos artigos 70º, nº1, alínea b), e 72º, nº1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
4. Nas alegações produzidas neste Tribunal, a recorrente diz que 'são inconstitucionais os artigos 1096º, 1097º e
1098º do Código Civil, por violarem o artº. 65º da C.R. Portuguesa', referindo, em síntese, que 'tanto o direito de propriedade, como o direito à habitação - este como direito fundamental de índole social - estão reconhecidos na Constituição Portuguesa' e que há 'um núcleo essencial de direitos, liberdades e garantias que não pode, em caso algum, ser violado'.
Por seu lado, os recorridos não alegaram.
5. Corridos os vistos legais cumpre, então, apreciar e decidir a questão de saber se as normas indicadas pela recorrente são (ou não) inconstitucionais, por violação do artigo 65º da Constituição.
II. Fundamentos.
6. As normas cuja inconstitucionalidade
é suscitada versam sobre a 'denúncia' do contrato de arrendamento urbano e vêm a seguir à norma do artigo 1095º do Código Civil, que consagra o princípio geral de que, nos arrendamentos de prédios urbanos, o senhorio não goza do direito de denúncia, considerando-se o contrato renovado se não for denunciado pelo arrendatário nos termos do artigo 1055º daquele Código.
O seu conteúdo é o seguinte:
Artigo 1096º
(Excepções)
1. O senhorio pode, porém, denunciar o contrato, para o termo do prazo ou da renovação, nos casos seguintes:
a) Quando necessite do prédio para sua habitação ou para nele construir a sua residência;
b) Quando se proponha ampliar o prédio ou construir novos edifícios em termos de aumentar o número de locais arrendáveis.
Artigo 1097º
(Forma e prazo da denúncia) A denúncia do senhorio deve ser feita em acção judicial, com a antecedência mínima de seis meses relativamente ao fim do prazo do contrato, mas não obriga ao despejo enquanto não decorrerem três meses sobre a decisão definitiva.
Artigo 1098º
(Denúncia para habitação)
1. O direito de denúncia para habitação do senhorio depende, em relação a ele, da verificação dos seguintes requisitos:
a) Ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de cinco anos, ou independentemente deste prazo se o tiver adquirido por sucessão;
b) Não ter, na área das comarcas de Lisboa e Porto e suas limítrofes, ou na respectiva localidade quando ao resto do País, casa própria ou arrendada há mais de um ano;
c) Não ter usado ainda desta faculdade.
2. O senhorio que tiver diversos prédios arrendados só pode denunciar o contrato relativamente àquele que, satisfazendo às necessidades de habitação própria e da família, esteja arrendado há menos tempo.
Importa salientar que as disposições transcritas foram substituídas - apenas com ligeiras alterações - pelos artigos
68º a 71º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro. Esta ocorrência não tem, no entanto, qualquer repercussão no caso sub judicio, já que as normas aplicadas na decisão recorrida foram as que constavam do Código Civil.
No caso dos autos, os autores senhorios intentaram uma acção judicial, com a finalidade de obterem a denúncia do contrato de arrendamento, com o fundamento de que necessitavam do prédio arrendado para sua habitação. Para o efeito, alegaram e provaram a real e efectiva necessidade do prédio para sua habitação, bem como o preenchimento dos requisitos constantes do transcrito artigo 1098º do Código Civil. Em consequência, a acção foi julgada procedente e a ré condenada a despejar o prédio arrendado no prazo de nove meses, a contar do trânsito em julgado da sentença.
Verifica-se, assim, que as normas aplicadas tanto pelo Tribunal de 1ª instância, como pelo Tribunal da Relação do Porto foram apenas a constante da primeira parte da alínea a) do nº1 do artigo
1096º do Código Civil, bem como as constantes dos artigos 1097º e 1098º do mesmo Código, pelo que a elas se circunscreve o objecto do presente recurso de constitucionalidade.
O problema de constitucionalidade que vem posto a este Tribunal pode reconduzir-se, ao cabo e ao resto, à seguinte questão mais geral: será inconstitucional, por violação do direito fundamental à habitação, condensado no artigo 65º da Lei Fundamental, a faculdade, reconhecida pelas citadas normas, ao senhorio de denunciar o contrato de arrendamento urbano, para o termo do prazo ou da renovação, mediante acção judicial, quando necessite do prédio para sua habitação, e uma vez verificados os requisitos previstos no artigo 1098º do Código Civil?
Adiantaremos, desde já, que não.
7. O artigo 65º da Constituição dispõe como segue:
1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;
b) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a auto-construção;
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria.
3. O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
4. O Estado e as autarquias locais exercerão efectivo controlo do parque imobiliário, procederão às expropriações dos solos urbanos que se revelem necessárias e definirão o respectivo direito de utilização.
O preceito transcrito da Constituição reconhece a todos os cidadãos o direito a uma morada decente, para si e para a sua família; uma morada que seja adequada ao número dos membros do respectivo agregado familiar, por forma a que seja preservada a intimidade de cada um deles e a privacidade da família no seu conjunto; uma morada que, além disso, permita a todos viver em ambiente fisicamente são e que ofereça os serviços básicos para a vida da família e da comunidade.
Para a efectivação de um tal direito, a Constituição comete ao Estado as seguintes tarefas:
a) 'programar e executar uma política de habitação', devidamente articulada com uma 'adequada rede de transportes e de equipamento social';
b) 'incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações', que visem 'resolver os respectivos problemas habitacionais' e 'fomentar a criação de cooperativas de habitação e a auto-construção';
c) 'estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria [cfr. artigo
65º, nº 2, alíneas a), b) e c)].
O Estado há-de, além disso, 'adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar' (cfr. artigo 65º, nº 3); e, juntamente com as autarquias locais, há-de exercer um 'efectivo controlo do parque imobiliário', procedendo
'às expropriações dos solos que se revelem necessárias' e definindo 'o respectivo regime de utilização' (cfr. artigo 65º, nº 4)
O 'direito à habitação', ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II (direitos e deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos, sociais e culturais) da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos nºs 2 a 4 do artigo 65º da Constituição (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 680 - 682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada 'reserva do possível' (Vorbehalt des Möglichen),em termos políticos, económicos e sociais [cfr. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora,
1982, p. 365,e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - 'Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia' - 1984, Coimbra, 1989, p. 26; J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (Reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, p. 199 ss., 343 ss.].
O direito à habitação, como direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cfr. J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 205,209) ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p.680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo.
O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios - como único sujeito passivo -- e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela lei. Em suma: o direito fundamental à habitação, considerando a sua natureza, não é susceptível de conferir por si mesmo ao arrendatário um direito, jurisdicionalmente exercitável, de impedir que o senhorio denuncie o contrato de arrendamento, quando necessitar do prédio para sua habitação.
Estas considerações são suficientes para demonstrar que a norma da primeira parte da alínea a) do nº 1 do artigo
1096º, bem como as dos artigos 1097º e 1098º, todos do Código Civil, nunca poderão infringir o disposto no artigo 65º da Constituição.
A norma da primeira parte da alínea d) do nº 1 do artigo 1051º do Código Civil não a infringe, pois, o disposto no artigo 65º da Constituição.
Acrescentar-se-á, no entanto, mais uma nota.
9. É certo que o artigo 65º da Constituição implica para o Estado uma obrigação positiva de criação de um regime jurídico do arrendamento para habitação, que discipline o acesso dos cidadãos a uma habitação, pela via do arrendamento, devendo as rendas ser compatíveis com o rendimento familiar (cfr. o artigo 65º, nº 3), dado que o arrendamento habitacional constitui um dos instrumentos de satisfação ou de concretização do direito fundamental à habitação.
Independentemente, porém, de saber qual o grau de liberdade de que o legislador goza, em face do preceituado no artigo
65º da Constituição, na definição do regime jurídico do arrendamento urbano, é indubitável que as normas que reconhecem ao senhorio o direito de denúncia do contrato de arrendamento, quando aquele necessitar do prédio para habitação, desde que se verifiquem os requisitos - bem rigorosos e apertados - indicados no artigo 1098º do Código Civil, não infringem aquele preceito constitucional.
Com efeito, as normas do Código Civil respeitantes à denúncia do contrato de arrendamento para habitação pelo senhorio, com fundamento na necessidade deste em utilizar o prédio para sua habitação, visam resolver um conflito entre o direito à habitação do senhorio e o direito a habitação do inquilino. Em face desse conflito, a lei atribui preferência ao direito à habitação do senhorio - o qual se fundamenta no direito de propriedade sobre o prédio urbano, direito este garantido pelo artigo 62º, nº
1, da Constituição - sobre o direito à habitação do inquilino - o qual se baseia no contrato de arrendamento urbano, que é obrigatoriamente renovável nos termos da lei.
Ora, é perfeitamente legítimo, sob o ponto de vista constitucional, que, na hipótese de colisão entre aqueles dois direitos à habitação - um (o do senhorio) alicerçado no direito fundamental de propriedade privada, com assento na Constituição, e outro (o do arrendatário) baseado no contrato -, o legislador dê primazia ao do senhorio.
Eis como, também por esta razão, a norma da primeira parte da alínea a) do nº 1 do artigo 1096º do Código Civil, bem como as dos artigos 1097º e 1098º, todos do Código Civil, não violam o artigo 65º da Constituição ou qualquer outro preceito constitucional.
III. Decisão.
10. Nos termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se o acórdão recorrido.
Lisboa, 1 de Abril de 1992
Fernando Alves Correia Messias Bento José de Sousa e Brito Bravo Serra Mário de Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19920131.html ]