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Processo n.º 586/09
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, foi interposto recurso pelo Ministério Público, para si obrigatório, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa e n.º 3 e dos artigos 70º, n.º 1, alínea a), e 72º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, da decisão proferida pela 1ª Secção do 1º Juízo de Execução do Porto, em 21 de Maio de 2009 (fls. 467 a 472) que determinou a desaplicação da norma extraída do artigo 238º do CPC, segundo a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, com fundamento na sua inconstitucionalidade material por violação dos artigos 13º, n.º 1 e 20º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa.
2. Notificado para tal pela Relatora, o Ministério Público produziu alegações, das quais consta a seguinte conclusão:
«44º
Em face de todo o exposto, entende-se que se não deverá julgar inconstitucional a norma do art. 238º do Código de Processo Civil., na redacção do Decreto-Lei 329/95, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 183/2000 de 10 de Agosto, por violação dos arts. 13º nº 1, 20º e 2º da Constituição da República Portuguesa.» (fls. 522)
3. Devidamente notificada para o efeito, a recorrida deixou expirar o prazo legal, sem que viesse aos autos apresentar qualquer resposta.
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. De particular relevo para a decisão do presente recurso, foram dados como provados, pela decisão recorrida, os seguintes factos:
«Em Setembro de 2000 foi celebrado um contrato de arrendamento para o exercício do comércio entre A. e B., respectivamente senhorio e inquilino.
A opoente outorgou o referido contrato na qualidade de fiadora e principal pagadora de todas as obrigações emergentes do contrato, incluindo renovações, com renúncia expressa ao benefício da excussão prévia.
Constituía objecto do contrato um estabelecimento comercial sito na Rua ….., nº …, …, no Porto.
Em 15 de Julho de 2003 a senhoria A. (…) propôs acção declarativa contra o inquilino, mulher e contra a opoente pedindo a resolução do contrato de arrendamento, o pagamento das rendas vencidas, o pagamento de juros de mora vencidos e vincendos e a condenação dos réus no pagamento de custas.
A acção foi distribuída em 19 de Setembro de 2003.
Foram enviadas cartas registadas com aviso de recepção para citação da requerente, em 23 de Setembro de 2003, as quais foram devolvidas com fundamento na falta de reclamação, em 10 de Outubro de 2003.
A secretaria realizou buscas nas bases de dados da DGCI, ITIJ, Segurança Social e DGV, das quais constava o nome da requerente, embora com duas moradas distintas.
Em 16 de Outubro de 2003 foram expedidas, para cada uma das moradas conhecidas da opoente, cartas para citação por via postal simples, nos termos do art. 236º-A do CPC.
Foram juntos aos autos de acção ordinária nº 4420/030TVPRT avisos de citação por via postal simples referidos em H) onde consta a menção depositei no receptáculo postal domiciliário da morada acima descrita a notificação-citação a ela referida (C.., 17/10/03 e assinatura ilegível, 17/10/03).
Na sequência da morte do marido, a opoente morou cerca de dois anos após Fevereiro de 2002 na casa do seu filho D., deslocando-se esporadicamente a sua casa na Rua ….
Em 18 de Dezembro de 2003 foi apresentada contestação na acção nº 4420/03.0TVPRT também em nome da opoente.
A contestação foi subscrita pela exma. sra. dra. E., advogada que expressamente indicou como contestante, além de outros, a opoente.
Com a contestação a senhora advogada juntou duas procurações forenses assinadas pelos outros dois réus e protestou juntar a procuração forense em falta relativa à aqui opoente.
Naqueles autos de acção declarativa nunca foi junta procuração forense pela aqui opoente, não tendo sido a exma. sra. dra. E. alguma vez notificada nos termos e para os efeitos do art. 40º do CPC.
Todas as notificações relativas à aqui opoente foram realizadas na pessoa da exma. sra. dra. E..
Por despacho prolatado naqueles autos de acção declarativa em 10 de Maio de 2004 foram admitidos os depoimentos de parte dos réus, incluindo a aqui opoente.
A audiência de discussão e julgamento teve lugar em 22 de Setembro de 2004, constando da acta a presença dos mandatários, não se fazendo qualquer referência à ausência da opoente nem ao facto de não ter sido prestado depoimento de parte da mesma, apesar de requerido.
Não consta do processo declarativo que a opoente tenha sido notificada para prestar depoimento de parte no julgamento referido» (fls. 468 e 469).
No presente recurso, discute-se a decisão de desaplicação, por inconstitucionalidade, do artigo 238º do CPC (na redacção vigente à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto), que determinava o seguinte:
«Artigo 238º
Frustração da citação por via postal
1 — No caso de se frustrar a citação por via postal, a secretaria obterá informação sobre a residência, local de trabalho ou, tratando-se de pessoa colectiva ou sociedade, sobre a sede ou local onde funciona normalmente a administração do citando, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Direcção-Geral dos Impostos e da Direcção-Geral de Viação.
2 — Se a residência, local de trabalho, sede ou local onde funciona normalmente a administração do citando, para o qual se endereçou a carta registada com aviso de recepção, coincidir com o local obtido junto de todos os serviços enumerados no número anterior, procede-se à citação por via postal por meio de carta simples, dirigida ao citando e endereçada para esse local, aplicando-se o disposto nos n.ºs 5 a 7 do artigo 236.º-A.
3 — Se a residência, local de trabalho, sede ou local onde funciona normalmente a administração do citando, para o qual se endereçou a carta registada com aviso de recepção ou a carta simples, não coincidir com o local obtido nas bases de dados de todos os serviços enumerados no n.º 1, ou se nestas constarem várias residências, locais de trabalho ou sedes, será expedida uma carta simples para cada um desses locais.»
Antes de mais, importa delimitar o objecto do presente recurso num duplo sentido.
Em primeiro lugar, apesar de a decisão recorrida afirmar expressamente que desaplica o artigo 238º do CPC, torna-se evidente que a mesma apenas desaplicou a norma extraída da conjugação do n.º 1 e do n.º 3 daquele preceito legal, na medida em que dos factos dados como provados [cfr. §§ G) e H) supra transcritos] consta que a secretaria judicial obteve duas moradas distintas e, como tal, procedeu ao envio da citação por via postal simples, nos termos do artigo 236º-A do CPC (na redacção vigente à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto). Nos termos deste último preceito legal, fixava-se o seguinte:
«Artigo 236º-A
Citação por via postal simples
1 — Nas acções para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito, a citação será efectuada mediante o envio de carta simples, dirigida ao citando e endereçada para o domicílio ou sede que tenha sido inscrito naquele contrato para identificação da parte, excepto se esta tiver expressamente convencionado um outro local onde se deva considerar domiciliada ou sediada para efeitos de realização da citação em caso de litígio.
2 — É inoponível a quem na causa figure como autor qualquer alteração do domicílio ou sede indicados ou convencionados nos termos do número anterior, salvo se o interessado tiver notificado a contraparte dessa alteração, mediante carta registada com aviso de recepção, nos 30 dias subsequentes à respectiva superveniência.
3 — Se a notificação da alteração do domicílio ou da sede referida no número anterior só tiver sido recebida depois de intentada a acção judicial, o autor deverá dar conhecimento desse facto ao tribunal nos 30 dias subsequentes à recepção da comunicação, sob pena de poder ser considerado litigante de má fé, nos termos do artigo 456.º, condenado em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir, sem prejuízo da invocação de falta de citação, nos termos gerais.
4 — Recebida a comunicação prevista no número anterior, observar-se-á o seguinte:
a) Se a citação ainda não tiver sido efectuada, será realizada mediante o envio de carta simples, dirigida ao citando e endereçada para o domicílio ou sede entretanto indicado pelo autor;
b) Se a citação tiver sido realizada em data posterior à alteração do domicílio ou da sede do citando, devidamente comunicada ao abrigo do n.º 2, e o citando não tiver intervindo no processo, o juiz ordenará a repetição da citação nos termos previstos na alínea precedente.
5 — O funcionário judicial deve lavrar uma cota no processo com a indicação expressa da data da expedição da carta simples ao citando e do domicílio ou sede para a qual foi enviada.
6 — O distribuidor do serviço postal procede ao depósito da referida carta na caixa de correio do citando e lavra uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto desse depósito, remetendo-a de imediato ao tribunal.
7 — Se não for possível proceder ao depósito da carta na caixa de correio do citando, o distribuidor do serviço postal lavrará nota do incidente, datando-a e remetendo-a de imediato ao tribunal, excepto no caso do depósito ser inviável em virtude das dimensões da carta, caso em que deixará um aviso nos termos do n.º 5 do artigo anterior.»
Em segundo lugar, a decisão ora recorrida apenas desaplicou o artigo 238º do CPC (na redacção vigente à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto), nunca se referindo à inconstitucionalidade da norma que fixa como devidamente citado o réu que tenha sido alvo de depósito de carta de citação na respectiva caixa de correio – artigos 233º, n.º 2, alínea b) e 238º-A, n.º 2, ambos do CPC (na redacção vigente à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto) – nem sequer à inconstitucionalidade das várias normas reguladoras do procedimento de citação por via postal simples – artigo 236º-A, do CPC. Ora, nos termos do artigo 79º-C da LTC, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da inconstitucionalidade de norma alvo de desaplicação por parte da decisão recorrida, ou seja, o artigo 238º CPC tal como supra delimitado.
5. Fixado o objecto do presente recurso na norma extraída da conjugação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 238º do CPC (na redacção vigente à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto), não se compreende que seja considerada contrária aos artigos 13º, n.º 1 e 20º, n.º 2 (sic, a fls. 471) a previsão legal de consulta de várias bases de dados de serviços públicos. Acresce que, nem sequer a fixação legal de um procedimento de citação por via postal simples para os casos em que sejam obtidas várias moradas, contende quer com o princípio da igualdade, quer com o direito de consulta e de patrocínio judiciário, invocado pela decisão recorrida. Mesmo que se admitisse que a decisão recorrida havia invocado por lapso o n.º 2 do artigo 20º da CRP – quando antes pretendia invocar o respectivo n.º 1 desse artigo – também não se logra deslindar em que medida é que o envio de citação por via postal simples seria apto a violar o direito de acesso aos tribunais.
Quanto ao princípio da igualdade, conforme o Tribunal tem vindo a reiterar na sua jurisprudência (veja-se, entre muitos outros, o Acórdão n.º 232/2003, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), enquanto parâmetro constitucional capaz de limitar as acções do legislador, este tem uma tripla dimensão: a da proibição do arbítrio legislativo, a da proibição de discriminações negativas, não fundadas, entre as pessoas e a eventual imposição de discriminações positivas. Ora, nenhuma das referidas dimensões é colocada em causa pela norma jurídica desaplicada, na medida em que não existe nenhum arbítrio, mas apenas o tratamento diferenciado de situações diferentes. Com efeito, todas as pessoas que não sejam passíveis de citação por correio registado com aviso de recepção ficam sujeitas ao mesmo regime jurídico. Claro está que o facto de alguns réus poderem ficar sujeitos ao regime de citação por via postal simples decorre da especificidade de estes terem celebrado um contrato escrito no qual indicaram como morada aquela que será alvo do envio da citação ou, então, de estes não disporem de uma mesma morada actualizada junto dos vários serviços públicos. Ora, daqui resulta a justificação da sujeição de alguns réus a um especial regime jurídico de citação que visa, precisamente, acautelar outro valor constitucional de relevo, a saber, o direito a obtenção de decisão em prazo razoável – artigo 20º, n.º 4, da CRP (assim, ver Acórdão n.º 20/10, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Em suma, a norma jurídica extraída da conjugação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 238º do CPC (na redacção vigente à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto), não é apta a colocar em crise os artigos 13º e 20º, n.ºs 1 e 2 da CRP, pelo que não padece de qualquer inconstitucionalidade.
6. Aliás ainda que a propósito de outras normas que não fazem parte do objecto deste recurso, existe abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional relativamente ao regime de citações e notificação em processo civil, sempre alicerçada na ideia de que tal regime deve sempre assegurar a possibilidade de defesa efectiva daqueles contra quem são deduzidos pedidos em juízo (cfr., por todos, Acórdão n.º 271/95, disponível in «Acórdãos do Tribunal Constitucional», 31º vol., pp. 359 e segs.). Porém, ainda a propósito da proibição da indefesa, este Tribunal teve igualmente oportunidade de julgar que tal proibição não afasta a possibilidade de fixação de presunções de conhecimento da citação, em virtude de uma necessária concordância prática entre o direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva, na sua vertente de possibilidade de defesa, por parte do réu, e o mesmo direito fundamental, na sua vertente de direito a uma decisão jurisdicional célere, desta feita, pelo prisma do autor. Assim, ver o Acórdão n.º 508/2002 (publicado in «Diário da República», IIª Série, de 26 de Fevereiro de 2003:
“O direito de defesa do réu ou demandado judicialmente, ou o chamado princípio da proibição da indefesa é indiscutivelmente um direito de natureza processual ínsito no direito de acesso aos tribunais, constante do artigo 20º da Constituição, e cuja violação acarretará para o particular prejuízos efectivos, decorrentes de um impedimento ou um efectivo cerceamento ao exercício do seu direito de defesa”.
(...) o legislador tem de prever mecanismos para evitar que o processo fique parado indefinidamente, à espera de que o demandado seja localizado e chamado ao processo». Há que conciliar e equilibrar os vários princípios e interesses em jogo, nomeadamente os do contraditório e da referida proibição da indefesa com aquele outro princípio da celeridade processual e ainda com os princípios da segurança e da paz jurídica, que são valores e princípios de igual relevância e constitucionalmente protegidos“ e não permitir que o processo “se arraste indefinidamente em investigações exaustivas e infindáveis ou que as mesmas se possam reabrir ou efectuar novamente a qualquer momento no decurso do processo, o que poderia ter consequências desestabilizadoras e frustrar assim o alcance da justiça.”
A propósito da citação por correio postal simples, quando se levantava a dúvida quanto à efectiva cognoscibilidade da acção por parte do réu presumidamente citado, este Tribunal também já afirmou, através do Acórdão n.º 182/06 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), que:
(…)
Em causa está, pois, tão-só a fiabilidade da tramitação desta forma de citação. Ora, há que reconhecer que o legislador rodeou a utilização deste modo de comunicação de actos de especiais cautelas: exige que o oficial de justiça lavre cota no processo com a indicação expressa da data da expedição da carta simples ao citando ou ao notificando e do domicílio ou sede para a qual foi enviada (n.º 5 do artigo 236.º-A do CPC e n.º 2.º da Portaria n.º 1178-A/2000, de 15 de Dezembro) e exige que o distribuidor do serviço postal emita duas declarações escritas (uma no verso do sobrescrito depositado e a outra na prova de depósito, que deve destacar do sobrescrito e enviar de imediato ao tribunal remetente) de que efectuou o depósito da carta na caixa de correio do citando ou do notificando, confirmando o local exacto deste depósito, indicando a respectiva data e apondo a sua assinatura de forma legível (n.º 6 do artigo 236.º-A do CPC e n.º 3.º da Portaria n.º 1178-A/2000). A isto acresce que eventual falsa declaração de depósito fará incorrer o distribuidor de serviço postal seu autor em infracção disciplinar e mesmo, caso exista intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, infracção criminal (artigo 256.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal).
Por outro lado, não surge como excessivamente oneroso para os particulares destinatários das comunicações judiciais, no âmbito do dever de colaboração com a administração da justiça, enquanto manifestação de uma cidadania responsável, a manutenção, em condições de segurança, de receptáculos para a correspondência postal que lhes seja dirigida e a consulta regular da mesma. Ao que acresce a previsão, no n.º 3 do artigo 252.º-A do CPC (na redacção do Decreto-Lei n.º 183/2000, alterada pela Lei n.º 30-D/2000, de 20 de Dezembro), de que ao prazo de defesa do citando acresce uma dilação de 30 dias quando a citação haja sido por via postal simples, o que previne situações de eventuais ausências temporárias do citando da sua residência.
(…)
Neste contexto, associando, por um lado, as particulares cautelas previstas pelo legislador para evitar a ocorrência de erros na tramitação deste meio de comunicação, com clara identificação de todos os passos dessa tramitação e respectivos responsáveis, com, por outro lado, a colaboração razoavelmente exigível aos destinatários das comunicações, e ainda, por último, a concessão da aludida dilação, impõe-se a conclusão de que o sistema instituído oferece suficientes garantias de assegurar, pelo menos, que o acto de comunicação foi colocado na área de cognoscibilidade do seu destinatário, em termos de ele poder eficazmente exercitar os seus direitos de defesa, o que é o suficiente para não dar por verificada a violação dos princípios da proibição da indefesa e do processo equitativo”.
Por último, refira-se o Acórdão n.º 91/2004, no qual o Tribunal afirmou:
«De facto, nos presentes autos, como consta da decisão recorrida, “foram encetadas as diligências possíveis junto de autoridades oficiais cuja actividade se relaciona, normalmente, com o dia a dia do cidadão comum. Logo, era previsível que a morada da R fosse encontrada.”. Na verdade, procedeu-se à consulta das bases oficiais previstas na lei e remeteram-se cartas para todas as moradas disponíveis, o que, desde logo, distingue a presente situação da decidida no acórdão n.º 287/2003.
E, sendo a situação diferente, não há qualquer outro motivo que justifique solução semelhante.
Na verdade, é pacífico o entendimento de que a proibição de indefesa se contém no princípio mais vasto de acesso ao direito e aos tribunais, constante do artigo 20º da Lei Fundamental.
No entanto, se é verdade que, como se escreveu no Acórdão n.º 335/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol., págs. 531 e segs.), ainda no âmbito do regime anterior à vigência do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, “em todas as tramitações de natureza declarativa que conduzem à emissão de um julgamento (judicium) por parte de um tribunal, tem de existir um debate ou discussão entre as partes contrapostas, demandante e demandado, havendo o processo jurídico adequado (a due process of law clause, da tradição anglo-americana) de garantir que cada uma dessas partes deva ser chamada a dizer de sua justiça (audiatur et altera pars)”, não é o menos que, em determinadas situações, o tribunal não pode ficar paralisado.
(…)
De acordo com esta jurisprudência, é manifesto que, no caso concreto, em que foram efectuadas todas as diligências previstas na lei – nomeadamente a consulta das bases de dados nela citadas –, remetidas cartas não só para a morada correspondente ao local onde alegadamente foram prestados os serviços de construção civil geradores do crédito reclamado, mas também para todas as outras moradas conhecidas e em que se não vislumbra, no processo, qualquer indicação de que a recorrente tenha um qualquer outro domicílio, ponderando os princípios referidos no acórdão transcrito, a solução legislativa em causa, tal como foi interpretada, não ofende desproporcionadamente os direitos de defesa do demandado.»
Daqui decorre que a jurisprudência consolidada neste Tribunal tem decidido no sentido da não inconstitucionalidade de normas jurídicas que presumam o conhecimento da instauração de acção contra o réu, desde que tais presunções sejam rodeadas das cautelas necessárias a garantir a possibilidade de conhecimento efectivo, por um destinatário normalmente diligente, do conteúdo da citação. Ora, mesmo tendo sido alvo de citação por via postal simples, certo é que foi dado como provado que a recorrida F. vivia com o filho e a nora, co-réus na acção declarativa para despejo que deu, posteriormente, causa aos autos ora recorridos. Para além disso, foi junta contestação aos autos da referida acção declarativa em nome da recorrida, do filho e da nora. Ainda que a procuração forense da recorrida F., que foi protestada juntar pela mandatária, nunca tenha vindo a ser entregue em tribunal, torna-se incontornável que, de acordo com os padrões objectivos de um “bonus pater familiae”, a cognoscibilidade da pendência da acção era suficientemente garantida pelo facto de a recorrida viver na mesma casa que o filho e nora, igualmente réus na referida acção.
Para além disso, estando igualmente dado por provado que a recorrida se deslocava, esporadicamente, às moradas para as quais foram enviadas a citação por via postal simples, não se afigura excessivamente oneroso que a destinatária tivesse adoptado todas as diligências necessárias à boa recepção da correspondência postal a si dirigida, ainda mais quando figurava como fiadora num contrato escrito de arrendamento comercial.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo do artigo 238º do CPC, segundo a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso interposto;
c) Ordenar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para que seja reformulada a decisão alvo do presente recurso em conformidade com o presente julgamento de não inconstitucionalidade, conforme decorre do n.º 2 do artigo 80º da LTC.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 11 de Outubro de 2010.- Ana Maria Guerra Martins – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Vítor Gomes – Gil Galvão.