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Processo n.º 128/10
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
Recorrente: Ministério Público
Recorrida: A., S.A.
I - Relatório
1. Por decisão da Autoridade para as Condições do Trabalho, de 14 de Abril de 2009, foi a ora recorrida, A., S.A. condenada como autora material de uma contra-ordenação laboral prevista e punida pelo artigo 7.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 272/89 de 19 de Agosto, com referência ao artigo 7.º do Regulamento CEE n.º 3820/85 (actual artigo 7.º do Regulamento CE n.º 561/2006) e sancionada com uma coima no valor € 2 400.
2. Inconformada com esta decisão, a recorrida apresentou recurso no Tribunal do Trabalho de Faro, que, por sentença de 19 de Maio de 2009, o julgou procedente e, em consequência, revogou a decisão administrativa que lhe havia imposto uma coima.
Concluindo, invocou, designadamente, os seguintes fundamentos:
“No domínio contra-ordenacional valem também os princípios da legalidade, quer das contra-ordenações, quer do processo e, bem assim, da presunção de inocência do arguido (cfr. art.ºs 2.º e 43.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e 32.º, n.º 2 da CRP).
A decisão final deu como provados os factos constantes do auto de notícia mas neste não consta qualquer facto imputando à Recorrente a responsabilidade pelo cometimento da infracção enquanto entidade patronal do condutor daquele veículo. O que, diga-se em abono da verdade, não era exigido pelo precedente regime das contra-ordenações laborais constante da Lei 116/99, de 4 de Agosto, uma vez que, no seu art.º 4.º se prescrevia o seguinte:
«1. São responsáveis pelas contra-ordenações laborais e pelo pagamento das coimas:
a) A entidade patronal, quer seja pessoa singular ou colectiva associação sem personalidade jurídica ou comissão especial;
(…).»
Todavia, conforme refere o Acórdão da Relação de Coimbra, proferido a 04-03-2004, nas Bases Jurídico-Documentais do Ministério da Justiça, em Bases Jurídico-Documentais do Ministério da Justiça, em www.dgsi.pt, com expressa revogação da Lei 116/99, «tem que se entender que o sujeito da referida contra-ordenação é quem pratica (o motorista), apenas podendo também responder a sua entidade patronal desde que no auto de notícia conste a materialidade fáctica que permita a imputação do ilícito penal à entidade empregadora, quer seja a nível da sua exclusiva autoria, quer como co-autora, quer a titulo de cúmplice (art.ºs 614.º do Código do Trabalho e 26.º e 27.º do Código Penal).»
E acrescenta este arresto:
«Não havendo no auto de notícia factos que permitam a imputação directa do referido ilícito à empregadora, impõe-se a respectiva absolvição em processo contra-ordenacional com base nos citados preceitos.»
Nesse sentido, pode ver-se também o Acórdão da Relação de Coimbra, de 26-02-2004, igualmente disponível em Bases Jurídico-Documentais do Ministério da Justiça, em http://www.gde.mj.pt.
Daí que também se tenha entendido no acórdão da Relação do Porto, proferido em 12-07-2004, em Bases Jurídico-Documentais do Ministério da Justiça, em http://www.gde.mj.pt, que «é o condutor-trabalhador, e não a entidade empregadora, o responsável pela infracção traduzida no incumprimento das disposições legais relativas aos tempos de condução e de repouso.» Isto porque, conforme se sustentou no referido Acórdão:
«A imputação ao trabalhador-condutor da infracção só é compreensível pelo facto de estar em causa, conforme já referido, a segurança nas estradas. Na verdade, quando o trabalhador está na estrada, exercendo as funções de condução, é ele que controla essa actividade e mais ninguém, e por isso tem ele de respeitar as interrupções na condução e os tempos de repouso tendo em conta a sua segurança e a dos demais utentes da estrada.
E argumentar-se-á: mas assim fica de fora qualquer responsabilidade da entidade patronal. Mas não, já que à entidade patronal compete organizar o serviço e forma a dar cumprimento à regulamentação social em matéria de segurança rodoviária (art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 272/89, de 19 de Agosto, na redacção dada pela Lei 114/99 e art.º 10.º do Regulamento).
Assim, e tendo em conta a redacção dada pela Lei 114/99 ao art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 272/89, em especial o seu n.º 6, quis o legislador imputar ao condutor/ trabalhador e o não cumprimento de qualquer disposição relativa aos tempos de condução e repouso, assim como as interrupções da condução previstas no Regulamento (CEE) n.º 3820/85 do Conselho de 20.12.85.
Por isso, não pode a recorrente - entidade patronal – ser responsabilizada pela prática da referida infracção na medida em que ela não foi o seu agente, sendo certo que não nos encontramos perante qualquer responsabilidade objectivo ou responsabilidade a título de «culpa in vigilando.»
Ou seja, a existir qualquer infracção foi ela praticada pelo supra identificado condutor, que é trabalhador da Arguida, pelo que, em consonância com o atrás referido, a responsabilidade pela prática da infracção em causa no presente processo e, consequentemente, pelo pagamento da correspondente coima e das custas do processo, não pode recair sobre aquela.
Com efeito, face à entrada em vigor do Código de Trabalho e à consequente revogação da Lei 116/99, tem que se entender que o sujeito da referida contra-ordenação é quem a pratica, ou seja, o motorista. Apenas podendo, também responder a entidade patronal desde que o Auto de Notícia conste a materialidade fáctica que permita a imputação do ilícito à entidade empregadora, quer seja a nível da sua exclusiva autoria, quer, como co-autora, quer a título de cúmplice. Não havendo no Auto de Notícia factos que permitam a imputação directa do referido ilícito à entidade empregadora, impõe-se a respectiva absolvição em processo contra-ordenacional com base nos art.ºs 614.º do Código do Trabalho e 26.º e 27.º do Código Penal. Pelo que assim sendo deverá proceder o recurso.
É certo que entretanto entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho de 2007, o qual, no n.º 1 do seu art.º 1.º esclareceu que «o disposto nos artigos 3.º a 9.º prevalece sobre as disposições correspondentes do Código do Trabalho».
Ora, o n.º 1 do seu art.º 8.º, veio estipular que «o período de trabalho diário dos trabalhadores de duração não inferior a trinta minutos, se o número de horas de trabalho estiver compreendido entre seis e nove, número de horas for superior a nove» e no n.º 2 que «os trabalhadores móveis não podem prestar mais de seis horas de trabalho consecutivo.» E por sua vez, o n.º 2 do art.º 10.º desse diploma estabeleceu que «o empregador é responsável pelas infracções ao disposto no presente decreto-lei.»
Destarte, aparentemente estaria assim estabelecida nova fonte legal de responsabilização contra-ordenacional para os empregadores cujos trabalhadores fossem motoristas de veículos pesados de mercadorias ou de passageiros que tivessem violado o ali estabelecido sobre os tempos máximos de trabalho/de descanso. Mas vejamos mais cuidadosamente se assim será.
Conforme estipula o n.º 2 do art.º 1.º do mencionado diploma legal, «o presente diploma transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2002/15/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Março, relativa à organização do tempo de trabalho das pessoas que exercem actividades móveis de transporte rodoviário.»
Sabemos bem que segundo o n.º 4 do art.º 8.º da Constituição da República, «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.» Ora, sobre essa matéria diz-nos o art.º 249.º do Tratado da Comunidade Europeia diz que «a directiva vincula o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando no entanto às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.» Daí que importe saber se o que sobre isso dispõe a Constituição da República Portuguesa.
Releva, desde logo, o n.º 8 do seu art.º 112.º, segundo o qual «a transposição de actos jurídicos da União Europeia para a ordem jurídica interna assume a forma de lei, decreto-lei ou, nos termos do disposto no n.º 4, decreto legislativo regional.» E também o art.º 165.º, o qual, no que interessa tem o seguinte conteúdo.
«1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
(…)
d) Regime geral … dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo;
(…).»
Ora, o Governo publicou o citado Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho de 2007 desprovido de qualquer autorização legislativa. De resto, nem escondeu que o fazia, uma vez que ali invocou para legitimar a sua tarefa o disposto no art.º 198.º, n.º 1, alínea a) da Constituição, o qual, como é de conhecimento generalizado, versa sobre a competência legislativa própria daquele órgão. Que assim é pode facilmente constatar-se lendo seu conteúdo, que é este:
“1. Compete ao Governo, no exercício de funções legislativas:
a) Fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República;
(…).
Assim sendo as coisas, afigura-se-nos singelamente claro que aquele diploma é inconstitucional e por isso não pode ser aplicado pelos tribunais, sem ofensa da própria Lei Fundamental (cfr. o seu art.º 204.º). O que, não ignoramos, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18-02-2008, publicado nas Bases Jurídico-Documentais do Ministério da Justiça, em http://www.dgsi.pt, não ponderou, tendo aplicado aquele diploma sem qualquer consideração acerca do regime normativo que atrás referimos.
Daí que a solução seja, como atrás se delineou, aplicar o direito em vigor e que mais não é do que o que atrás deixámos referido, tanto bastando para que proceda o recurso.”
3. O Ministério Público interpôs recurso desta sentença, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 e 75.º- A, n.º 1, todos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC), invocando, para tal, a recusa de aplicação do Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Alegando no Tribunal Constitucional, o Ministério Público refere o seguinte:
“1. Delimitação do objecto do recurso
A., SA. impugnou perante o Tribunal de Trabalho de Faro a decisão proferida pela Autoridade para as Condições do Trabalho que lhe aplicou a coima de 2.400 euros.
Segundo a decisão no dia 10-10-2007, pelas 18.00horas, ao km 89,9 da estrada nacional nº 398, em Loulé, um trabalhador da Recorrente conduzia um veículo automóvel pesado de passageiros. Iniciou a jornada do dia 03-10-2007 pelas 04.15 horas e terminou-a pelas 22.00horas do mesmo dia, sem ter beneficiado de um período de repouso de 9 horas consecutivas no período de 24 horas.
No Tribunal de Faro o senhor Juiz entendeu que, face à entrada em vigor do Código do Trabalho e à consequente revogação da Lei 116/99, de 04 de Agosto, o responsável pela infracção era quem a praticava, ou seja, o motorista, apenas podendo responder também a entidade patronal se do Auto de Notícia constasse a materialidade fáctica que permitisse a imputação do ilícito à entidade empregadora, o que, não se verificando, levava à sua absolvição.
Como o Decreto-Lei nº 237/2007, de 19 de Junho e, quanto à infracção em causa, veio estabelecer que o responsável era o empregador, o senhor Juiz recusou aplicar tal norma com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, uma vez que o Governo, no uso da sua competência própria, legislara em matéria de competência da Assembleia da República e, consequentemente, revogou a decisão administrativa condenatória.
É desta decisão que, pelo Ministério Público, vem interposto recurso obrigatório para este Tribunal Constitucional.
1.2. No Processo nº 342/09 da 2ª Secção deste Tribunal, também oriundo do Tribunal de Trabalho de Faro, em que a decisão recorrida é em tudo idêntica, sendo também a mesma a questão de inconstitucionalidade, foi, pelo Exmº Senhor Conselheiro Relator, proferido o seguinte despacho:
“Apesar de no requerimento se referir globalmente o Decreto-Lei nº 237/2007, de 19 de Junho, resulta da fundamentação da sentença recorrida que desse diploma apenas se consideraram susceptíveis de relevar para a decisão as normas dos seus artigos 1º, nº 3 (“O disposto nos artigos 3º a 9º prevalece sobre as disposições correspondentes do Código do Trabalho”), 8º, nº 1 (“1- O período de trabalho diário dos trabalhadores móveis é interrompido por um intervalo de descanso de duração não inferior a trinta minutos, se o número de horas de trabalho estiver compreendido entre seis e nove, ou a quarenta e cinco minutos, se o número de horas for superior a nove, e 10º, nº 2 (“O empregador é responsável pelas infracções ao disposto no presente decreto-lei”), necessariamente conjugados com o disposto no artigo 16º (“Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto nos artigos 8º e 9º”)”.
Deve, assim, entender-se que o objecto do presente recurso consiste na apreciação da constitucionalidade do critério normativo, extraído dos artigos 1º, nº 3, 8º, nºs 1 e 2,e 10º, nº2, do Decreto-Lei nº 237/2007, de 19 de Junho, que determina a responsabilidade do empregador pela contra-ordenação consistente em violação do limite máximo de duração do trabalho diário dos “trabalhadores móveis” (definidos no artigo 2º, alínea d), do mesmo diploma).
2. Apreciação do mérito do recurso.
2.1. Sobre a norma que constitui objecto do recurso já este Tribunal se pronunciou por diversas vezes, sempre no sentido de não inconstitucionalidade (v.g. Acórdãos nºs 598/2009,14/2010 e 23/2010).
Nas alegações então produzidas dissemos o seguinte:
“2.1 Após a edição do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, que instituiu o regime geral das contra-ordenações, foi publicado o Decreto-Lei nº 491/85, de 26 de Novembro que, pela primeira vez, disciplinou a matéria das contra-ordenações laborais.
Neste diploma, e no que respeita às “Disposições Gerais”, não constava qualquer preceito específico no que toca à definição da autoria das contra-ordenações, aplicando-se, por força do artigo 1º, o disposto no Decreto-Lei nº 433/82.
2.2. O Decreto-Lei nº 491/85 foi revogado pela Lei nº 116/99, de 04 de Agosto, que veio aprovar o regime Geral das Contra-Ordenações Laborais.
No artigo 1º surge, pela primeira vez, numa definição de contra-ordenação laboral.
Por sua vez, o artigo 4º desse Regime Geral diz-nos quais são os sujeitos responsáveis pelas contra-ordenações laborais, figurando, logo no nº 1, alínea a), a entidade patronal, quer fosse pessoa singular ou colectiva, associação sem personalidade jurídica ou comissão especial.
Não constando do artigo 4º os trabalhadores mas podendo ser eles abrangidos de acordo com a definição de contra-ordenação constante do artigo 1º, desde logo se suscitaram dúvidas e se constatou alguma contradição entre estes dois preceitos.
Também se gerou grande polémica quer a nível doutrinário, quer jurisprudencial sobre se, face à enumeração taxativa constante do artigo 4º, os trabalhadores podiam ser incluídos naquele elenco. (Cfr. sobre a matéria João Soares Ribeiro Contra-Ordenações Laborais, pag. 336 a 340 e Contra-Ordenação no Código do Trabalho, em “Questões Laborais”, Ano XI – 2004, nº 23, págs. 1 a 15 e António Beça Pereira Contra-Ordenações laborais. Breves reflexões quanto ao seu âmbito e sujeitos, in “Questões Laborais”, Auto VIII-2001, nº 18, págs. 142 a 147).
Concretamente, no que respeita à infracção consistente no desrespeito pelo limite máximo de trabalho por parte dos condutores de veículos de transporte de passageiros e face ao que dispunha o nº 6 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 272/89, de 19 de Agosto, na redacção dada pelo artigo 7º da Lei nº 114/99, de 3 de Agosto, que fixava a coima aplicável aos condutores, a polémica não era menor, (cfr. autores, obras e locais anteriormente referidos).
2.3. A Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho, revogou expressamente a Lei nº 116/99 (artigo 21º, nº 1, alínea aa)) e estabeleceu um novo Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais (artigo 614º a 640º, do Código, no que toca ao Regime Geral).
Neste Código alterou-se a definição de contra-ordenação (artigo 614º) e deixou de existir qualquer preceito onde se estabelecesse quais os sujeitos responsáveis pela infracção.
Face à polémica gerada pelo regime anterior estas alterações foram, de uma forma geral, aplaudidas.
A esse respeito João Soares Ribeiro (Contra-Ordenação no Código do Trabalho, cit., pág. 13):
“Como resolveu o Código do Trabalho o problema- Muito realisticamente alterando a definição e deixando, pura e simplesmente de elencar os sujeitos, permitindo assim que a lei livremente impute a contra-ordenação a quem tenha a seu cargo o dever de praticar ou de se abster da prática da acção ou omissão”.
Segundo o mesmo autor, “cabem agora no âmbito subjectivo do preceito não apenas os sujeitos de relações de trabalho – e diga-se ambos os sujeitos, isto é, não só os empregadores como também os trabalhadores” (Contra-Ordenações Laborais,cit. pág. 220).
2.4. Era, portanto, este o regime geral vigente quando foi aditado o Decreto-Lei nº 237/2007 que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 202/15/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Março, relativa à organização do tempo de trabalho das pessoas que exerçam actividades móveis de transporte rodoviário (artigo 1º, nº 2).
Após estabelecer que as disposições constantes dos artigos 3º a 5º prevaleciam sobre as disposições correspondentes constantes do Código do Trabalho (artigo 1º, nº 3), o artigo 10º vem dispor o seguinte:
“1- O regime geral previsto nos artigos 614º e 640º Código do Trabalho aplica-se às contra-ordenações por violação do presente Decreto-Lei, sem prejuízo do disposto nos artigos 11º e 12º.
2- O empregador é responsável pelas infracções ao disposto no presente Decreto-Lei.
3- (…)
Feita esta digressão pela evolução legislativa referente à matéria, vejamos agora mais concretamente a questão de inconstitucionalidade que vem colocada.
2.5. O Tribunal Constitucional numa jurisprudência que se tem mantido inalterável desde o Acórdão nº 56/84, vem entendendo que em matéria contra-ordenacional a competência legislativa reservada à Assembleia da República (artigo 165º, nº 1, alínea d) da Constituição) situa-se a nível da edição das normas “primárias”, ou seja, que façam parte do regime geral, podendo o Governo, no uso da sua competência legislativa concorrente, e dentro dos limites da “Lei-Quadro”, delinear ilícitos contra-ordenacionais, estabelecer a correspondente punição e moldar as regras secundárias do processo contra-ordenacional (cfr. v.g. Acórdão nº 236/2003).
Também nos parece que não decorre do artigo 165º, nº 1, alínea d), da Constituição, que a Assembleia não possa editar regimes gerais sectoriais tendo em atenção as especificidades das matérias a regular, como é o caso das infracções laborais.
O essencial é que seja o Parlamento a editar as normas básicas desse regime e que o Governo legisle, respeitando-as.
Que a existência de mais do que um regime geral não levanta problemas de constitucionalidade é o que se extrai do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 403/2004. Aqui, poderiam estar em confronto duas noções diferentes de “dimensão de empresa”, uma a prevista no Decreto-Lei nº 433/82 (artigo 18º), outra a prevista no Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais (artigo 7º e 9º da Lei nº 116/99), não tendo tal diferença suscitado qualquer problema ao Tribunal.
É evidente que essa possibilidade de existência de regimes gerais apenas aplicável em determinadas matérias, não conduz à irrelevância do regime geral instituído pelo Decreto-Lei nº 433/82, até porque esse é o regime supletivo aplicável (artigo 615º do Código do Trabalho).
Aplicando agora aquele entendimento jurisprudencial ao caso dos autos, diremos o seguinte:
O Governo, ao editar o Decreto-Lei nº 237/2007, fê-lo nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 198º da Constituição, ou seja, no uso da sua competência legislativa própria e concorrente com a da Assembleia da República.
Ora, face a tudo o que se disse anteriormente, parece-nos evidente, que ao atribuir a responsabilidade pelas infracções ao empregador, o Governo se situou estritamente dentro dos limites fixados pelo regime geral constante do Código do Trabalho.
Efectivamente, a saudada alteração levada a cabo com a revogação da Lei nº 116/99, não levou nem podia levar, atendendo à específica natureza das infracções laborais, a exclusão de responsabilidade do empregador pela prática daquelas contra-ordenações, antes se encontrou uma definição (artigo 614º do Código do Trabalho) onde como sujeitos da infracção, cabe qualquer um daqueles sujeitos de relação laboral – o empregador e o trabalhador.
O Governo, pode, pois, conforme a natureza da infracção laboral e, eventualmente, atendendo a outras circunstâncias, estabelecer quais os sujeitos responsáveis e a medida dessa responsabilidade, sem que com essa actuação contrarie ou sequer se afaste do regime geral.
A norma objecto do recurso não é, pois, organicamente inconstitucional.
2.6. Foi também esse o sentido da decisão da constante do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 359/2001 em que se apreciou a inconstitucionalidade dos artigos 27º, nº 2 e 4 e 29º do Decreto-Lei nº 38/99, de 7 de Fevereiro, que considerava responsável a pessoa colectiva ou singular que efectuasse o transporte, pela contra-ordenação consistente em o condutor do veiculo se escusar a levar o veiculo à pesagem das balanças ao serviço da entidade fiscalizadora, infracção punível com coima equivalente à coima correspondente à carga máxima.
O Tribunal entendeu que o Governo, ao legislar daquela forma, não extravasara os limites impostos pelo regime geral, no caso o Decreto-Lei nº 433/82 e, em especial, o seu artigo 8º.”
3. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1. Apenas se situa no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República o estabelecimento do regime geral do ilícito de mera ordenação social, podendo o Governo legislar em tal matéria, desde que o faça dentro dos limites impostos por esse regime geral.
2. No uso dessa sua competência própria, pode a Assembleia definir regimes gerais sectoriais, tendo em atenção as especificidades das matérias que visa regular, como é o caso das infracções laborais.
3. Face à definição de contra-ordenação laboral constante do artigo 614º do Código do Trabalho de 2003 (norma integrada no Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais), podem estar incluídos entre os sujeitos responsáveis pela infracção tanto as entidades empregadoras como os trabalhadores.
4. Dessa forma, e uma vez que é respeitado aquele o regime geral, o critério normativo, extraído dos artigos 1º, nº 3, 8º, nºs 1 e 2, e 10º, nº 2, do Decreto-Lei nº237/2007, de 19 de Junho, que determina a responsabilidade do empregador pela contra-ordenação consistente em violação do limite máximo de duração do trabalho diário dos “trabalhadores móveis” (definidos no artigo 2º, alínea d), do mesmo diploma), não viola o artigo 165º, nº 1, alínea d), da Constituição, não sendo, por isso, organicamente inconstitucional.
5. Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
4. A recorrida A., S.A. não contra-alegou.
II - Fundamentos
5. A alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC estabelece que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais «que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade». Está em causa, nesta previsão, a impugnação de uma decisão jurisdicional proferida pelo tribunal onde corre o processo-base, que versou uma questão de constitucionalidade ao recusar aplicar uma norma que considerou ser directamente violadora da Constituição, assim proferindo uma decisão positiva de inconstitucionalidade.
6. Delimitando o objecto do recurso, considera-se que, embora a decisão recorrida recuse, na sua totalidade, a aplicação do Decreto-Lei n.º 237/2007, do raciocínio nela efectuado resulta que somente se afastou a aplicação do disposto no artigo 8.º, n.º 1, conjugado com o artigo 10.º, n.º 2, daquele diploma, visto que foi da leitura destes preceitos que o Tribunal a quo entendeu que dos mesmos resultava a imputação de responsabilidade ao empregador pela prática da infracção que aplicou uma coima à recorrida.
Deste modo, apenas cumpre aferir a constitucionalidade dos artigos 8.º, n.º 1 e 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho.
7. A decisão recorrida considerou que o Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2002/15/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Março, relativa à organização do tempo de trabalho das pessoas que exercem actividades móveis de transporte rodoviário, é organicamente inconstitucional, quando prevê a punição do empregador pela infracção ao disposto no artigo 8.º, n.º 1, como contra-ordenação, por alegada violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da C.R.P.
O Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre esta questão em diversos acórdãos (Acórdãos n.º 578/09, n.º 598/09, n.º 599/09, n.º 14/2010, n.º 23/2010, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), tendo concluído unanimemente pela não inconstitucionalidade das normas recusadas, fundamentando do seguinte modo:
“Neste preceito constitucional impõe-se que o regime geral da punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo seja definido pela Assembleia da República, salvo autorização ao Governo.
Mas esta reserva legislativa abrange apenas o regime geral deste direito sancionatório.
Como tem dito este Tribunal (v.g. os Acórdãos n.º 56/84, em ATC, 3.º vol, pág. 153, 158/92, em ATC, 21.º vol., pág. 713, 594/97, em DR, II Série, de 10-12-1997, 236/2003, em ATC 56.º vol., pág. 233, e 324/2003, em www.tribunalconstitucional.pt) tal regime abrange apenas as regras essenciais deste direito sancionatório, ou seja, a definição geral do ilícito contra-ordenacional, do tipo de sanções aplicáveis às contra-ordenações e dos seus limites, e das linhas gerais da tramitação processual a seguir para a aplicação concreta de tais sanções, podendo o Governo, com respeito por este regime geral, criar livremente contra-ordenações concretas, modificar ou eliminar as contra-ordenações já existentes e estabelecer as coimas a elas aplicáveis.
A definição do regime geral pode destinar-se genericamente a todas e quaisquer contra-ordenações, como sucede com o Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, ou ter como objecto apenas as contra-ordenações previstas para um determinado sector (v.g. o regime geral das contra-ordenações laborais, constante do Código de Trabalho, ou o regime geral das contra-ordenações fiscais, constante do Regulamento Geral das Infracções Tributárias), nada impedindo, contudo, que o Governo, desde que respeite o disposto nesses regimes gerais, por razões de economia legislativa, também aprove algumas regras comuns a um determinado conjunto de contra-ordenações, agrupadas tematicamente.
Necessário é que essas regras não invadam o âmbito do regime geral ou essencial das contra-ordenações e, quando nele se insiram, se limitem a reproduzir as soluções que já constam do regime fixado pela Assembleia da República ou por ela autorizado.
O Decreto-lei n.º 237/2007, de 19 de Junho, procedeu à transposição para a ordem jurídica interna da Directiva n.º 2002/15/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Março, relativa à organização do tempo de trabalho das pessoas que exercem actividades móveis de transporte rodoviário, regulando determinados aspectos da duração e organização do tempo de trabalho de trabalhadores móveis que participem em actividades de transporte rodoviário efectuadas em território nacional e abrangidas pelo Regulamento (CEE) n.º 3820/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, ou pelo Acordo Europeu Relativo ao Trabalho das Tripulações dos Veículos Que Efectuam Transportes Internacionais Rodoviários (AETR), aprovado, para ratificação, pelo Decreto n.º 324/73, de 30 de Junho.
No artigo 8.º, n.º 1, impõe-se que o período de trabalho diário dos trabalhadores móveis seja interrompido por um intervalo de descanso de duração não inferior a 30 minutos, se o número de horas de trabalho estiver compreendido entre seis e nove, ou a quarenta e cinco minutos, se o número de horas for superior a nove, e no artigo 16.º tipifica-se a violação deste dever como contra-ordenação.
O artigo 10.º, depois de no n.º 1 determinar que o regime geral previsto nos artigos 614.º a 640.º do Código do Trabalho se aplica às contra-ordenações por violação daquele diploma, no n.º 2 responsabiliza o empregador pela prática das respectivas infracções.
Deste modo, os preceitos sob análise limitam-se a tipificar uma determinada contra-ordenação, submetida ao regime geral das contra-ordenações laborais aprovado pela Assembleia da República.
Note-se que o n.º 2, do artigo 10.º, ao dizer que o empregador é responsável pelas infracções ao disposto naquele diploma, não está a consagrar qualquer regra geral sobre o regime de autoria daquelas contra-ordenações, mas apenas a indicar sobre quem recaem os deveres aí impostos, criando, assim, contra-ordenações específicas.
Estes preceitos, como é evidente, não se integram num regime geral das contra-ordenações, correspondendo apenas à criação de contra-ordenações no domínio da duração e organização do tempo de trabalho de trabalhadores móveis que participem em actividades de transporte rodoviário efectuadas em território nacional, sujeitas ao regime geral das contra-ordenações laborais previsto no Código do Trabalho.
Por isso a sua aprovação pelo Governo não viola a reserva legislativa da Assembleia da República consagrada no artigo 165.º, n.º 1, d), da C.R.P., devendo, assim, ser julgado procedente o presente recurso.”
A solução e os fundamentos constantes deste Acórdão são inteiramente transponíveis para o caso em apreciação.
III - Decisão
8. Pelo exposto, decide-se:
Não julgar organicamente inconstitucionais as normas do n.º 1 do artigo 8.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 10.º, do Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho;
Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com este julgamento.
Sem custas.
Lisboa, 14 de Julho de 2010.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos