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Processo n.º 294/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I Relatório
1. Por despacho proferido em 27 de Fevereiro de 2008 no Tribunal de Trabalho de Setúbal foi decidido não aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, os artigos 2.º e 5.º n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 185/2007 de 10 de Maio, na parte em que se introduz um novo n.º 5 ao artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 142/99 de 30 de Abril, e na parte em que se determina a aplicação do novo regime a acidentes de trabalho ocorridos em data anterior, mesmo quando o direito do sinistrado foi já reconhecido por decisão transitada em julgado. Diz-se na decisão:
«(…) Por sentença de 23.01.2004, a fs. 314 e segs. destes autos, confirmada pelo Ac. da RE de 25.01.2005, transitado em julgado, foi decidido:
«A) Condenar a Ré A., Lda., a pagar à A., B., na sua residência:
a.1) Com efeitos a partir de 03.10.2000, a pensão anual e vitalícia de € 11.917,03, actualizada para os montantes de € 12.011,80, 12.252,04 e 12.356,04 com efeitos a partir de, respectivamente, 01.12.2001, 01.12.2002 e 01.12.2003.
(…)
C) Condenar a Ré, C. Seguros, S.A., a título subsidiário, a pagar à A. B., na sua residência:
D) Com efeitos a partir de 03.10.2000, a pensão anual e vitalícia de € 2.115,90 até perfazer a idade da reforma por velhice e de € 2.821,20 a partir desta idade, pensão aquela actualizada para os montantes anuais de € 2.177,26, € 2.220,81 e de € 2.276,33, com efeitos a partir de, respectivamente, 01.12.2001, 01.12.2002 e 01.12.2003.
(…)
Em requerimento datado de 24.01.2008, veio a beneficiária informar que a entidade patronal não pagou as prestações fixadas na sentença, sendo que moveu contra a mesma execução, a qual foi infrutífera.
O referido requerimento foi notificado à Seguradora e ao FAT, sendo que apenas veio este aos autos, dizendo não responder pelo agravamento das pensões, mas apenas pela quota-parte da pensão calculada em função da remuneração não transferida para a Seguradora.
Decidindo.
Dos elementos já recolhidos nos autos — em especial no processo executivo, em que não foi possível localizar bens bastantes para garantir o pagamento da quantia exequenda — resulta que a entidade patronal não dispõe de bens que permitam a satisfação das — elevadas — prestações em que foi condenada, nem desenvolve já qualquer actividade que permita satisfazê-las, motivo pelo qual se entende dever deferir-se o requerimento da beneficiária, no sentido da Seguradora pagar as prestações em que foi condenada a título subsidiário, suportando o FAT os diferenciais relativos ao salário não seguro.
Porém, o FAT defende que já não lhe assiste a obrigação de proceder ao pagamento das prestações agravadas, devidas por actuação culposa da entidade patronal, invocando para o efeito o art. 1.º n. 5 do DL 142/99, de 30 de Abril, na redacção introduzida pelo DL 185/2007, de 10 de Maio.
Adiantamos desde já que entendemos que o FAT deverá satisfazer as prestações agravadas, pois o acidente data de 02.10.2000 e a sentença condenatória foi proferida em Janeiro de 2004 e confirmada pela Relação de Évora em Janeiro de 2005.
Note-se, quanto às prestações agravadas, que o DL 185/2007 é inovador, porquanto se entendia, no âmbito da redacção original do art. 1.º n.° 1 al. a) do DL 142/99, que as mesmas deveriam ser suportadas pelo FAT, pela diferença das prestações normais, garantidas pela Seguradora. Nesse sentido se pronunciava a jurisprudência, de forma praticamente unânime, (…).
Se, por efeito do agravamento, mais elevadas são as prestações a que a viúva e as filhas do sinistrado têm direito, será o pagamento delas que o FAT tem de garantir nos termos do citado art. 1.º n.º 1 alínea a) do DL 142/99.
E que foi nessa medida que se quis definir a responsabilidade do FAT mostra-o o facto de, no preâmbulo do DL 142/99, se ter consignado, entre o mais, o seguinte:
“...Para prevenir que, em caso algum, os pensionistas de acidentes de trabalho deixem de receber as pensões que lhe são devidas, prevê-se que o FAT garantirá o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável.”
Como são devidas prestações agravadas, é o pagamento delas que o FAT tem de garantir».
Nesta perspectiva, que se reputa correcta, até à entrada em vigor do DL 185/2007, o FAT respondia pelo pagamento das pensões agravadas, na parte não satisfeita pela Seguradora.
Após a entrada em vigor do referido diploma, tem estado a ser defendido (…) que as novas regras são directamente aplicáveis, mesmo a acidentes de trabalho ocorridos anteriormente.
(…)
No entanto, com o respeito devido, que é muito, permitimo-nos discordar de semelhante solução.
Na aplicação da lei, o intérprete não pode chegar a conclusões que estabeleçam situações de desigualdade relativa, sob pena de violação de um princípio essencial do nosso direito, qual seja, o da igualdade, consignado no art. 13.º n.º 1 da Constituição.
(…)
(…) O DL 185/2007, sendo aplicável a acidentes de trabalho ocorridos anteriormente, coloca em situação de desigualdade os sinistrados e demais beneficiários de prestações por acidentes de trabalho, com base em factores puramente aleatórios, desprezando a data do acidente e a expectativa jurídica de manutenção dos mesmos direitos, derivados de acidentes ocorridos na mesma data.
Por outro lado, para além da referida situação de desigualdade, cremos também que é afectado o princípio da confiança inerente ao estado de direito, o qual se traduziria na manutenção dos mesmos direitos dos sinistrados, em caso de responsabilidade agravada da sua entidade patronal, quer esta tivesse capacidade financeira para satisfazer as prestações correspondentes, quer não o tivesse.
Com efeito, pensamos ser perfeitamente aleatório estabelecer direitos diversos para os sinistrados em acidentes de trabalho, consoante a solvabilidade financeira da respectiva entidade patronal. Note-se, ainda, que o art. 59.º n.º 1 al. f) da Constituição estabelece o direito de todos os trabalhadores à justa reparação, quando vítimas de acidentes de trabalho, não fazendo depender tal direito da boa ou má situação financeira da respectiva entidade patronal.
É, pois, nossa convicção, que o art. 2.º (na parte em que introduz um novo n.º 5 ao art. 1.º do DL 142/99, de 30 de Abril, porquanto faz depender os direitos dos sinistrados da boa ou má capacidade financeira da respectiva entidade patronal) e o art. 5.º n.º 1 (na parte em que determina a aplicação do novo regime a acidentes de trabalho ocorridos em data anterior, inclusive quando os direitos dos sinistrados foram já reconhecidos por decisões transitadas em julgado), ambos do DL 185/2007, de 10 de Maio, se revelam inconstitucionais, por violação, quer do art. 59.º n.º 1 al. f) da Constituição, quer dos princípios da confiança inerente ao estado de direito, da igualdade e do acesso ao direito, consagrados nos arts. 2.º, 13.º n.º 1 e 20.º n.º 1 da Constituição.
Motivo pelo qual se recusa a respectiva aplicação. (…)»
2. É desta decisão que o Ministério Público interpõe recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º n.º 1 alínea a) e 72.º n.ºs 1 alínea a) e 3 da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC). Recebido o recurso, em momento oportuno alegou e concluiu:
«(…)1.º A norma constante dos artigos 2º– enquanto introduz um novo n.º 5 ao artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril –, restringindo a responsabilidade subsidiária do FAT, isentando-o da garantia das prestações agravadas, devidas ao sinistrado pelo acidente laboral nos casos de actuação culposa do empregador, conjugada com a do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 185/07, de 10 de Maio – enquanto determina a imediata vigência e aplicação da lei nova, mesmo quanto a indemnizações definitivamente reconhecidas por decisão anterior à edição de tal diploma legal – é materialmente inconstitucional, por violar o princípio da confiança, decorrente do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
2.º Na verdade, a imediata aplicação do novo regime, delimitador da responsabilidade subsidiária do FAT, aos direitos dos sinistrados e em detrimento do âmbito da garantia de que estes beneficiavam face à originária redacção do preceito legal – frustrando a consistência prática de um montante substancial das prestações judicialmente reconhecidas – constitui compressão excessivamente onerosa ao direito à justa indemnização dos danos emergentes do acidente de trabalho.
3.º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida. (…)»
3. O recorrido Fundo de Acidentes de Trabalho apresentou contra-alegação, concluindo:
1. Recusa o Mº Juiz do Tribunal do Trabalho de Setúbal a aplicação dos artigos 2.º (enquanto introduz um novo n.º 5 no art. 1º do Decreto-lei n.º 142/99) e 5.º, n.º 1 do DL. n.º 185/2007 de 10 de Maio, por se revelarem inconstitucionais, por violação quer do art. 59.º, n.º 1, al. f) da Constituição, quer dos princípios da confiança inerente ao Estado de Direito, da igualdade e do acesso ao direito, consagrados nos arts. 2.º, 13.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1 da Constituição.
2. O sinistrado sofreu um acidente de trabalho em 02/1072000, tendo-lhe sido fixadas as prestações devidas por acidente de trabalho, por acórdão de 25/01/2005, proferido pelo Tribunal da Relação de Évora.
3. Por despacho de 27/02/2008, o Tribunal de Trabalho de Setúbal ordenou ao FAT o pagamento da pensão agravada devida ao sinistrado. Nesta data já estava em vigor o n.º 5 do art. 1º do DL. n.º 142/99 de 30 de Abril com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL n.º 185/2007 de 10 de Maio, o qual estabelece que “Verificando-se alguma das situações referidas no n.º 1 do art. 295.º, e sem prejuízo do n.º 3 do artigo 303.º, todos da Lei n.º 99/2003 de 27 de Agosto, o FAT responde apenas pelas prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa.”
4. A aplicação deste normativo ao caso dos autos justifica-se pois, à data da fixação das prestações devidas ao sinistrado pela entidade patronal (e/ou seguradora), 02/10/2000, não existia qualquer expectativa deste relativa à futura e eventual intervenção do FAT, nem tão pouco acerca das prestações que este poderia vir a assegurar.
5. Tal expectativa só surge após ter sido apurada a situação de insolvência ou insuficiência económica da entidade patronal, ou seja, quando é proferido despacho a ordenar a intervenção do FAT e a transferir para este o pagamento pelas prestações devidas ao sinistrado, com as limitações previstas na legislação em vigor àquela data.
6. Logo, o princípio da confiança, estabelecido no art. 2º da Constituição, não foi violado, já que à data em que foi proferido o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora o sinistrado não possuía qualquer expectativa relativa ao FAT, atendendo a que desconhecia em absoluto que num momento futuro, após apuramento da insuficiência económica da entidade patronal, tal entidade seria chamada a intervir nos autos para lhe assegurar o pagamento das prestações emergentes do acidente de trabalho sofrido.
7. Sendo o agravamento da pensão resultado do comportamento doloso ou simplesmente negligente da entidade empregadora, o mesmo não tem carácter compensatório mas sim punitivo. Tal responsabilidade subjectiva ou mesmo criminal do empregador não poderá ser encargo do FAT, fundo público de cariz social.
8. Por outro lado, a maior ou menor abrangência das competências atribuídas ao FAT em cada momento, na medida em que não coloca em causa a “justa reparação” do sinistrado (a cargo da entidade patronal ou seguradora para a qual tenha sido transferida a responsabilidade) não consubstancia qualquer inconstitucionalidade.
9. Logo, também não existe qualquer violação do art. 59.º, n.º 1, al. f) da Constituição, atendendo a que está assegurado pelo Estado um sistema de garantia estatal do pagamento das prestações de acidente de trabalho, o qual se consubstancia na existência do FAT.
II Fundamentação
4. Nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-lei n.º 142/99 de 30 de Abril – na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 185/2007 –, “verificando-se alguma das situações referidas no n.º 1 do artigo 295.º, e sem prejuízo do n.º 3 do artigo 303.º, todos da Lei n.º 99/2003 de 27 de Agosto, o Fundo de Acidentes de Trabalho responde apenas pelas prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa”. O diploma entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação – artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 185/2007 de 10 de Maio. Refere o legislador, no preâmbulo, que se pretendeu limitar a intervenção do Fundo de Acidentes de Trabalho, entre outras situações que agora não relevam, excluindo a sua responsabilidade pelo pagamento da parte correspondente ao agravamento das pensões resultante de actuação culposa por parte da entidade empregadora.
Tal significa que, a partir de 11 de Maio de 2007, o Fundo de Acidentes de Trabalho deixou de responder pelo pagamento das pensões agravadas. Tratou-se de uma reforma do regime jurídico do Fundo de Acidentes de Trabalho, visando excluir a sua intervenção nos casos de agravamento das pensões resultante de actuação culposa por parte da entidade empregadora. É, pois, inquestionável o carácter inovador desta disposição normativa, agora submetida, em razão da sua aplicação no tempo, à apreciação do Tribunal Constitucional.
5. O Fundo de Acidentes de Trabalho invoca, em abono da sua tese, a jurisprudência do Tribunal nesta área, designadamente o Acórdão n.º 599/2004 (DR, II série, de 11 de Dezembro de 2004).
Todavia, deve notar-se que o aresto não tomou conhecimento do recurso na parte relativa ao n.º 3 da Portaria n.º 291/2000, de 25 de Maio, norma que, apresentando algum paralelismo com a situação agora em causa, dispunha assim: “as responsabilidades do Fundo de Garantia e Actualização de Pensões, que transitam para o Fundo de Acidentes de Trabalho, correspondentes a acidentes de trabalho ocorridos até 31 de Dezembro de 1999, ficam limitadas às obrigações legais e regulamentares do anterior fundo.” O aresto pronunciou-se apenas sobre a sucessão de regimes de protecção dos trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho. Entendeu-se, então, que não ocorria um problema de discriminação mas, quando muito, um problema de omissão de garantia, ao não prever o pagamento, pelo Fundo, de indemnização por incapacidades temporárias. Explicando melhor: o acórdão julgou não inconstitucionais as normas do n.º 1 da Base XLV da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, e do artigo 6º do Anexo à Portaria n.º 642/83, de 1 de Junho, na medida em que não abrangiam situações de incapacidade temporária. E, isto, porque se entendeu que a norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, não contém a garantia de um direito a uma prestação obrigatória por parte do Estado em todos os casos de acidentes de trabalho ou doença profissional; o Estado está, sim, vinculado a prever, por via legislativa, a obrigação de reparação e a assistência, nestes casos, por parte da entidade patronal (ou de outra entidade que se lhe substitua), podendo, mesmo, admitir-se que a introdução de um sistema de garantia estatal do pagamento das referidas indemnizações por acidentes de trabalho resulta, ainda, da satisfação deste dever de protecção, mas o âmbito de tal sistema de garantia comporta modelações, podendo ser configurado de formas diversas, em função de factores económicos e sociais, admitindo-se mesmo a exclusão da responsabilidade do Estado no caso de incapacidades temporárias.
6. No Acórdão n.º 467/2003 (DR, II série, de 19 de Novembro de 2003), o Tribunal apreciou o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 210/90, de 27 de Junho, que, no seu teor literal, apenas diz: “é revogado o Decreto-Lei n.º 363/86, de 30 de Outubro”. O citado Decreto-Lei n.º 363/86, de 30 de Outubro, tinha um artigo único, com a seguinte redacção: «a pensão de aposentação prevista no Decreto-Lei n.º 362/78, de 28 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pelos Decretos-Lei n.ºs 23/80 e 118/81, respectivamente de 29 de Fevereiro e de 18 de Maio, pode ser requerida a todo o momento».
Ao revogar o Decreto-Lei 363/86, a norma em questão, que entrou em vigor no dia 1 de Novembro de 1990, extinguiu a possibilidade – introduzida após a criação deste excepcional direito à pensão de aposentação – de a referida pensão, prevista no Decreto-Lei n.º 362/78, de 28 de Novembro, poder ser requerida “a todo o momento”. Na verdade, a pensão de aposentação prevista no Decreto-Lei n.º 362/78, de 28 de Novembro, tinha natureza excepcional, já que fora estabelecida com limitação temporal e com requisitos diferentes das pensões do regime geral. Diz o acórdão:
«(…) Tanto nos casos de retroactividade não previstos no n.º 3 do artigo 18.º da Constituição, como nos de retroactividade inautêntica ou mera retrospectividade, a afectação de expectativas daí resultante só é inaceitável, para utilizar as expressões do acórdão n.º 156/95 (…), “se implicar nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente”.
Como se afirmou no Acórdão n.º 486/97 (…)
“[...] Uma norma retrospectiva é uma norma que prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data (cf. o acórdão n.º 232/91, publicado nos Acórdãos citados, volume 19º, páginas 341 e seguintes).
Uma lei retrospectiva não levanta o problema da retroactividade da lei. Coloca, porém, como se anotou - e semelhantemente ao que acontece com as leis retroactivas que não sejam leis penais, nem leis restritivas de direitos liberdades e garantias - a questão da eventual violação do princípio da confiança, que vai ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição.
Mas essa violação só se verifica, se a lei atingir “de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm que respeitar” (cf. acórdão n.º 365/91, publicado nos Acórdãos citados, volume 19º, páginas 143 e seguintes), ou seja, “a ideia de segurança, de certeza e de previsibilidade da ordem jurídica' (cf. citado acórdão n.º 232/91). E tal sucede, quando os destinatários da norma sejam titulares de direitos ou de expectativas legitimamente fundadas que a lei afecte de forma 'inadmissível, onerosa ou demasiadamente onerosa”.
Nos dizeres do citado acórdão n.º 232/91, “uma norma retrospectiva só deve ser havida por constitucionalmente ilegítima quando a confiança do cidadão na manutenção da situação jurídica com base na qual tomou as suas decisões for violada de forma intolerável, opressiva ou demasiado acentuada [...]”.
E se acrescentou no acórdão 156/95 (…):
“[...] Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrente do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a licitude (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam «tocadas» relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte.
Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será alcançado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta [não]vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos, impor-se-á que actue o sub-princípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma a que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança que todos têm de respeitar.
Como reverso desta proposição, resulta que, sempre que as expectativas não sejam materialmente fundadas, se mostrem de tal modo enfraquecidas 'que a sua cedência, quanto a outros valores, não signifique sacrifício incomportável' (cfr. Acórdão n.º 365/91 no Diário da República, 2ª Série, de 27 de Agosto de 1991), ou se não perspectivem como consistentes, não se justifica a cabida protecção em nome do primado do Estado de direito democrático.[...]
Ora, não parece difícil concluir, no caso dos autos, que o preceito questionado não atingiu, de forma “inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente” as legítimas expectativas daqueles que podiam requerer a pensão de aposentação, de características excepcionais, prevista no Decreto-Lei n.º 362/78.
De facto, por um lado, tendo em atenção a natureza daquela pensão, nada justificaria que os seus potenciais beneficiários adiassem o seu requerimento. Mas mesmo que razão houvesse para tal, o facto é que, por outro lado, o Decreto-Lei n.º 210/90 permitiu que o exercício do direito àquela pensão, “medida de carácter temporário e excepcional”, inicialmente susceptível de ser requerida num prazo máximo de 120 dias a contar da entrada em vigor do diploma que a criou - Decreto-Lei n.º 362/78 – (prazo, posteriormente renovado até ao Decreto-Lei n.º 363/86, de 30 de Outubro que admitiu que ela fosse requerida “a todo o momento”), viesse a ser efectuado até 1 de Novembro de 1990, isto é, quase doze anos após da sua criação. Acresce, ainda, que o Decreto-Lei n.º 210/90 teve uma “vacatio legis” de quatro meses, permitindo, assim, uma derradeira possibilidade a quem, tendo deixado passar todas as sucessivas prorrogações do prazo inicial, ainda não tivesse utilizado a faculdade conferida pelo Decreto-Lei n.º 363/86.
Por tudo quanto já se disse, pode concluir-se que não há qualquer violação dos princípios da segurança e da confiança ínsitos no princípio do estado de direito. Se tal, porém, não bastasse, o facto de, na situação específica dos autos, o requerimento para obtenção da pensão apenas ter dado entrada mais de seis anos após a publicação do Decreto-Lei n.º 210/90, eliminaria, liminarmente, qualquer invocação de uma frustração sequer “demasiado onerosa” da expectativa do possível exercício do direito “a todo o momento”. (…)”
Descontando as ponderações efectuadas acerca do princípio da confiança, o acórdão reporta-se a um caso cuja solução não é transponível para o caso agora em estudo, por nenhuma semelhança ter com ele, visto que se não está perante a eliminação de uma norma excepcional, mas antes face a uma súbita restrição do âmbito da responsabilidade do Fundo de Acidentes de Trabalho, anteriormente estabelecida como regra geral, sem que o legislador tenha previsto qualquer norma de direito transitório.
7. Por seu lado, o Ministério Público invoca a seu favor a doutrina decorrente dos Acórdãos n.ºs 438/2006 (DR, II série, de 31 de Agosto de 2006), 529/2006 e 533/2006 (não publicados, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
No 1.º aresto, estava em causa o artigo 74º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A/99, de 22 de Setembro.
Entendeu-se que impor ao beneficiário de uma pensão atribuída em 1964 a sua substituição por um capital de remição, obrigando-o a providenciar pela respectiva aplicação em termos de garantir, em idêntica medida, a sua subsistência, afectaria de forma inaceitável a expectativa que legitimamente fundou na manutenção de um regime legal que lhe permitiu organizar a vida contando com o pagamento periódico e vitalício daquela quantia. O Tribunal julgou inconstitucional a norma constante do artigo 74º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 382-A/99, de 22 de Setembro), interpretada no sentido de impor a remição obrigatória total de pensões vitalícias atribuídas por morte, opondo-se o titular à remição, pretendida pela seguradora, por violação conjugada do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 59º da Constituição e do princípio da confiança, inerente ao princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição.
Também os Acórdãos n.ºs 529/2006 e 533/2006 consideraram transponíveis para a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 56.º do Decreto-Lei n.º 143/99 os argumentos do citado Acórdão 438/2006, em que igualmente estava em causa a remição obrigatória, mesmo contra a vontade do beneficiário, da pensão atribuída ao cônjuge do trabalhador, vítima de acidente de trabalho mortal, pensão essa fixada em momento anterior ao da entrada em vigor da Lei n.º 100/97 e do Decreto-Lei n.º 143/99.
Em ambos os casos, julgou-se inconstitucional, por violação conjugada do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição e do princípio da confiança, inerente ao princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 56.º do Decreto-Lei n.º 143/99 de 30 de Abril, interpretada no sentido de impor a remição obrigatória de pensões vitalícias de montante anual inicial não superior a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão, atribuídas ao cônjuge do trabalhador sinistrado, por acidente de trabalho de que resultou a morte deste, e fixadas em momento anterior ao da entrada em vigor desta norma. Nestes casos, estava também em causa o princípio da justa reparação previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea f) da Constituição e o princípio da confiança inerente ao princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, lesados com a inovação legislativa.
8. A decisão recorrida invocou os princípios da justa reparação, da igualdade e da confiança como fundamento da solução adoptada.
O princípio da justa reparação previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição foi aditado na revisão constitucional de 1997, habilitando o legislador a adoptar políticas legislativas orientadas em ordem à protecção dos direitos dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional, impondo ao Estado a criação de instrumentos que assegurem adequada assistência e justa remuneração aos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional. O Fundo de Acidentes de Trabalho entende que o agravamento das prestações devidas não pode ser imputado ao conceito de justa reparação já que o agravamento é um “plus”, em relação à medida da justa reparação, e tem carácter sancionatório. O invocado agravamento da responsabilidade implica apenas que o trabalhador, neste caso, tem direito a uma indemnização da totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, como decorre do Código do Trabalho (artigos 295.º e 303.º em vigor por força do artigo 12.º, n.º 3 da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro), enquanto que a indemnização prevista na lei geral respeita apenas às prestações médicas e medicamentosas e indemnizações patrimoniais decorrentes da incapacidade de trabalho ou por morte.
Todavia, a questão de inconstitucionalidade em apreço não envolve a alteração legislativa em si, antes se circunscreve ao direito transitório, cumprindo, por isso, aferir se é compatível com o princípio da confiança a imediata aplicação da lei nova.
9. Como se sabe, o princípio da igualdade postula que se dê tratamento igual a situações essencialmente iguais. Tal princípio proíbe, assim, que situações de igual relevância jurídica sejam tratadas de modo diverso, sem justificação razoável. No essencial, o princípio constante do artigo 13.º da Constituição impõe, sobretudo, uma proibição do arbítrio e da discriminação.
Assim sendo, o princípio da igualdade não impõe absoluta uniformidade de regimes jurídicos, permitindo ao legislador não só a opção por uma diversidade de soluções para situações diversas, mas também a valoração distinta de situações aparentemente idênticas, desde que exista fundamento material bastante, ou justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes de comparação dessas situações.
O legislador não está impedido de, através de uma alteração legislativa, poder operar uma modificação do tratamento jurídico de uma mesma categoria de situações, implicando que realidades substancialmente iguais passem a ter tratamento diferente, pois isso não significa que essa divergência seja incompatível com a Constituição, desde que seja determinada por justificadas razões de política legislativa. Visando a alteração legislativa conferir um tratamento diferenciado a determinada matéria, a ocorrência de situações de desigualdade, resultante da aplicação do novo regime em face do quadro legal revogado, é inerente à liberdade do legislador de alterar as leis em vigor. Daí que, conforme tem referido o Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade não opere diacronicamente (Acórdãos nº 34/86, em AcTC, 7.º vol., pág. 42, n.º 43/88, em AcTC, 11.º vol, pág. 565, n.º 309/93, em AcTC, 24.º vol., pág. 185).
Na determinação do conteúdo das normas que disciplinam a sucessão de leis no tempo é, em suma, reconhecida ao legislador uma apreciável margem de liberdade no que respeita ao estabelecimento do marco temporal relevante para a sucessão de regimes.
Quando se diz que o princípio da igualdade não opera diacronicamente, quer-se significar que apenas através do princípio da protecção da confiança, associado às exigências da proporcionalidade, é que a igualdade tem protecção diacrónica, e que apenas se abrangem as desigualdades resultantes de aplicação do mesmo regime legal durante a sua vigência, mas já não quando, após a entrada em vigor da nova lei, o legislador restringe a sua aplicação a determinadas situações, sem que se vislumbre fundamento razoável para essa distinção. Neste último caso, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, imporá um juízo de censura constitucional sobre essa opção. No caso, todos os beneficiários de pensões naquela situação sofrem na mesma medida através da intervenção legislativa efectuada, não havendo restrição da aplicação da norma apenas a determinadas situações, o que revela que o princípio da igualdade não sai afectado.
10. Contudo, o critério escolhido terá que respeitar também o princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança, de modo a não violar direitos adquiridos ou frustrar expectativas legítimas, sem fundamento bastante. Há, assim, que apreciar a norma à luz da tutela constitucional do princípio da confiança, contido no princípio do Estado de Direito (artigo 2º da Constituição).
Explicou-se no Acórdão n.º 232/91 deste Tribunal (DR, II série, de 17 de Setembro de 1991):
«(…)O princípio do Estado de Direito democrático foi levado ao preâmbulo da versão originária da Constituição.
Após a revisão de 1982, a Constituição passou a definir a República Portuguesa como sendo um Estado de Direito democrático (cfr. artigo 2.º), apontando como tarefa fundamental do Estado justamente a de «garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelo princípio do Estado de direito democrático» [cfr. artigo 9.º, alínea b)]. [Cfr. os mesmos artigos 2.º e 9.º, alínea b), após a revisão de 1989].
No princípio de Estado de Direito vai implicada, antes de mais, uma ideia de protecção ou garantia dos direitos humanos, e implicada, bem assim, uma ideia de vinculação dos poderes públicos ao «direito justo», a um direito que se não deixa identificar com a lei independentemente do seu conteúdo, mas que há-de ser, antes, uma intencionalidade à verdade e à justiça.
É que, o Estado de Direito — um Estado que, do ponto de vista organizatório, se há-de apresentar como uma organização policêntrica de poderes públicos — é pensado, cada vez mais, como um Estado de Direito material ou de justiça, um Estado que tem como objectivo primeiro a criação e a manutenção de uma situação jurídica que seja materialmente justa — uma situação jurídica que, tendo como pedra de toque a salvação da dignidade do homem como pessoa, é dominada por uma ideia de igualdade, não devendo nela haver lugar para a prepotência, nem para o arbítrio [cfr., sobre isto: A. Castanheira Neves (O Instituto dos «Assentos» e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra, 1983, pp. 101 e seg.); R. Ehrardt Soares («A propósito dum projecto legislativo: o chamado Código do Processo Administrativo Gracioso», in Revista da Legislação e de Jurisprudência, ano 115.º, p. 18); e J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, i, Coimbra, 1984, p. 74)].
O princípio do Estado de Direito postula a ideia de que as leis sejam instrumentos de realização do bem comum, entendido este sempre na perspectiva fundamental do respeito incondicional pela dignidade da pessoa humana.(…)»
Também no Acórdão n.º 287/90 (DR, II série, de 20 de Fevereiro de 1991) se refere:
«(…)Não se pode excluir que o princípio do Estado de direito democrático, não obstante a sua função essencialmente aglutinadora e sintetizadora de outras normas constitucionais, produza, de per si, eficácia jurídico normativa. Essa eficácia será produzida quando constituir «consequência imediata e irrecusável daquilo que constitui o cerne do Estado de um direito democrático, a saber, a protecção dos cidadãos contra a prepotência e o arbítrio (especialmente por parte do Estado)» (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. cit., ibid.; o itálico é dos autores).
27 — Nesta matéria, a jurisprudência constante deste Tribunal tem-se pronunciado no sentido de que «apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos, viola o princípio de protecção da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático» (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 11/83, de 12 de Outubro de 1982, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1.º Vol., pp. 11 e segs.; no mesmo sentido se havia já pronunciado a Comissão Constitucional, no Acórdão n.º 463, de 13 de Janeiro de 1983, publicado no Apêndice ao Diário da República de 23 de Agosto de 1983, p. 133 e no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 314, p. 141, e se continuou a pronunciar o Tribunal Constitucional, designadamente através dos Acórdãos n.os 17/84 e 86/84, publicados nos 2.º e 4.º Vols. dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, a pp. 375 e segs. e 81 e segs., respectivamente).
(…)
Em que se traduz esta «inadmissibilidade, arbitrariedade ou onerosidade excessiva»-
A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios:
a) afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão).
Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.
Os dois critérios completam-se, como é, de resto, sugerido pelo regime dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição. Para julgar da existência de excesso na «onerosidade», isto é, na frustração forçada de expectativas, é necessário averiguar se o interesse geral que presidia à mudança do regime legal deve prevalecer sobre o interesse individual sacrificado, na hipótese reforçado pelo interesse na previsibilidade de vida jurídica, também necessariamente sacrificado pela mudança. Na falta de tal interesse do legislador ou da sua suficiente relevância segundo a Constituição, deve considerar-se arbitrário o sacrifício e excessiva a frustração de expectativas.
Não há, com efeito, um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. Ao legislador não está vedado alterar o regime do casamento, do arrendamento, do funcionalismo público ou das pensões, por exemplo, ou a lei por que se regem processos pendentes. Cabe saber se se justifica ou não na hipótese da parte dos sujeitos de direito ou dos agentes, um «investimento na confiança» na manutenção do regime legal — para usar uma expressão da jurisprudência constitucional alemã atrás referida. Valem aqui, por maioria de razão, as considerações que a jurisprudência deste Tribunal, atrás referida, tem feito ao negar uma proibição genérica de retroactividade. Tal é particularmente claro quando o sacrifício das expectativas anteriores resulta de uma imprevisível alteração das circunstâncias: como na doutrina privatística da base negocial, não há então lugar à manutenção das expectativas. Assim, por exemplo, medidas legislativas de política económica conjuntural poderão ser alteradas, com frustração de expectativas, se a conjuntura económica mudar ou se, mesmo sem essa mudança, mudar a orientação geral da política económica em consequência de mudança de governo, constitucionalmente previsível. Nada dispensa a ponderação na hipótese do interesse público na alteração da lei em confronto com as expectativas sacrificadas.
(…)
30 — Considerando-se, como se considera, que é inadmissível, ante o princípio do Estado de direito democrático, uma afectação de expectativas com que se não possa razoavelmente contar — por ser extraordinariamente onerosa e excessiva — deve concluir-se pela inconstitucionalidade do artigo 106.º da Lei n.º 38/87, enquanto aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
(…)
Há que reconhecer aqui uma margem de discricionariedade do legislador, respeitada pela Constituição. Mas deve acentuar-se que a tradição legislativa anterior não era arbitrária e visava proteger interesses que não deixam de ser constitucionalmente relevantes. As partes no processo têm uma posição jurídica que inclui um direito processual à manutenção do valor da causa, uma vez fixado, e a forma do processo daí resultante, que implica a existência de uma série de trâmites futuros com que a parte deve poder contar em cada instância para planear a defesa dos seus interesses e, até, implica a eventual existência de uma instância de recurso, embora esta esteja dependente da verificação de pressupostos futuros. Não é, pois, uma ponderação desrazoável dos interesses em presença aquela que está na base da tradição legislativa.
31 — Deve questionar-se ainda se a afectação de expectativas referida é inadmissível por ser também arbitrária — isto é, por não ter sido ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e que no caso devam considerar-se prevalecentes.
Todavia, no caso presente, a alteração das alçadas não parece ter sido ditada pelas exigências de uma reforma da justiça, mas apenas pela necessidade, resultante da inflação, de manter, actualizando-o, um critério anterior. Ponderar-se-á que também o valor dos processos se desactualizou paralelamente com a mesma inflação.
Da necessidade de uma norma como o artigo 106.º da Lei n.º 38/87 já se pode duvidar, até pela sua rápida revogação. Não está em causa o fundamento da revogação pela Lei n.º 49/88, que nem sequer é explicitado pelo legislador. O certo, porém, é que a entrada em vigor desta sugere a desnecessidade de restringir o acesso a tribunais superiores, mediante o exercício do direito de recurso, através da afectação das expectativas anteriormente firmadas.
Em si mesmo, este indício (da desnecessidade de afectação desfavorável de expectativas) não bastaria para identificar, conclusivamente, uma contradição entre os artigos 106.º da Lei n.º 38/87, na parte em que se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, e 2.º da Constituição. No entanto, constitui um elemento a ponderar que reforça a conclusão anteriormente extraída, nos termos da qual a afectação de expectativas em causa é contrária ao artigo 2.º da Constituição, por ser excessivamente onerosa.
É claro que se justifica plenamente a ressalva, aliás feita também pela Lei n.º 49/88, dos casos julgados e entretanto formados. (…)”
Conforme o que se fez constar do Acórdão n.º 486/97 (DR, II série, de 17 de Outubro de 1997):
«(…) No acórdão nº 95/92 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 21º, páginas 341 e seguintes), 'fora do Direito Penal' (e fora, bem assim, do domínio das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias), 'uma lei retroactiva não é, em si mesma, inconstitucional', embora possa sê-lo 'se essa retroactividade se traduzir na violação de princípios ou de disposições constitucionais autónomas'. E, de facto, o Tribunal já teve ocasião de, por diversas vezes, com fundamento na violação do princípio da confiança, que vai implicado no princípio do Estado de Direito, julgar inconstitucionais normas jurídicas não penais, nem restritivas de direitos, liberdades ou garantias, por serem retroactivas [cf., entre outros, os acórdãos nºs 93/84 (publicado nos Acórdãos citados, volumes 4º, páginas 153 e seguintes) e 71/87 (publicado no Diário da República, II série, de 2 de Maio de 1987)].
O Tribunal também já julgou inconstitucionais normas jurídicas que, embora não sendo retroactivas, não versando matéria penal, nem sendo leis restritivas de direitos, liberdades ou garantias, eram de aplicação imediata a situações jurídicas existentes. Tratou-se de situações de retrospectividade ou de retroactividade imprópria, em que, por ser imediatamente aplicável, a lei afectou de forma 'inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa' expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, desse modo violando aquele mínimo de certeza e de segurança que eles devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito. A este impõe-se, de facto, que organize a 'protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida' - para usar os dizeres do acórdão nº 330/90 (publicado nos Acórdãos citados, volume 17º, páginas 277 e seguintes). Um exemplo disto é o acórdão nº 287/90 (publicado nos Acórdãos citados, volume 17º, páginas 159 e seguintes), que julgou inconstitucional a norma do artigo 106º da Lei nº 37/87, de 23 de Dezembro (conjugado com os artigos 20º, nº 1, e 108º, nº 5, da mesma lei), que suprimiu o direito de recurso nos processos pendentes, por aplicação imediata dos novos valores das alçadas.
(…)
A norma sub iudicio não é retroactiva.
É que, como se disse atrás, ela 'não se aplica às acções pendentes em juízo à data' da entrada em vigor da Lei nº 24/89, de 1 de Agosto. Se alguma acção desse tipo ainda estava pendente no momento da entrada em vigor do mencionado artigo 65º, nº 2, o respectivo prazo de caducidade continuou a contar-se do conhecimento inicial, pelo senhorio, do facto violador do contrato de arrendamento.
A norma questionada aplica-se apenas para o futuro, pois que rege tão-somente para as acções de despejo propostas em momento em que, sendo a causa de pedir constituída por 'facto continuado ou duradouro', o respectivo prazo de caducidade se contava já 'a partir da data em que o facto tiver cessado' (cf. artigo 1094º, nº 2, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 24/89, de 1 de Agosto). Aplica-se, no entanto, a situações de facto que concernem a relações jurídicas não terminadas, ou seja, a situações de violação contratual (continuadas ou duradoiras) vindas de trás, que, constituindo já antes fundamento de resolução do contrato de arrendamento, só são invocadas pelo locador já no domínio desta norma.
A norma aplica-se, assim, às relações jurídicas de locação 'já constituídas' que subsistiam 'à data da sua entrada em vigor', em conformidade com o que se prescreve na parte final do nº 2 do artigo 12º do Código Civil.
Trata-se, por conseguinte, de uma norma retrospectiva - ou, se se preferir, de um caso de retroactividade inautêntica.
Uma norma retrospectiva é uma norma que prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data (cf. o acórdão nº 232/91, publicado nos Acórdãos citados, volume 19º, páginas 341 e seguintes).
Uma lei retrospectiva não levanta o problema da retroactividade da lei. Coloca, porém, como se anotou - e semelhantemente ao que acontece com as leis retroactivas que não sejam leis penais, nem leis restritivas de direitos liberdades e garantias - a questão da eventual violação do princípio da confiança, que vai ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição.
Mas essa violação só se verifica, se a lei atingir 'de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm que respeitar' (cf. acórdão nº 365/91, publicado nos Acórdãos citados, volume 19º, páginas 143 e seguintes), ou seja, 'a ideia de segurança, de certeza e de previsibilidade da ordem jurídica' (cf. citado acórdão nº 232/91). E tal sucede, quando os destinatários da norma sejam titulares de direitos ou de expectativas legitimamente fundadas que a lei afecte de forma 'inadmissível, onerosa ou demasiadamente onerosa'.
Nos dizeres do citado acórdão nº 232/91, 'uma norma retrospectiva só deve ser havida por constitucionalmente ilegítima quando a confiança do cidadão na manutenção da situação jurídica com base na qual tomou as suas decisões for violada de forma intolerável, opressiva ou demasiado acentuada. Num tal caso, com efeito, a confiança na situação jurídica preexistente haverá de prevalecer sobre a medida legislativa que veio agravar a situação do cidadão. E isso porque, tendo tal confiança, nesse caso, maior 'peso' ou 'relevo' constitucional do que o interesse público subjacente à alteração legislativa em causa, é justo que o conflito se resolva daquela maneira'.
Ora, já se viu que a circunstância de os senhorios não terem proposto as acções de despejo no ano subsequente ao conhecimento do facto (continuado ou duradouro) violador do contrato, não faz nascer para os locatários qualquer direito a não mais serem despejados. E nem tão-pouco legitima qualquer expectativa nesse sentido. Essa expectativa só seria legítima, se pudesse considerar-se razoável a renúncia fictiva e antecipada, pelo senhorio, do direito de fazer cessar o contrato. Mas também se viu que não é de admitir essa renúncia fictiva e antecipada do direito de accionar o locatário, pois que ela - para além de se colocar 'em contradição com o sistema de direito português (designadamente com o princípio normativo que inspira os preceitos dos artigos 288º, 809º e 840º do Código Civil)' - traduzir-se-ia 'em violação do direito à tutela judicial por parte do locador'.(…)»
11. No caso em apreço, a lei prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data, pelo que haverá que examiná-la à luz do princípio da protecção da confiança, no qual vai implicada uma ideia de segurança, de certeza e de previsibilidade da ordem jurídica.
Ora, é inevitável concluir que o regime resultante do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 185/2007, conjugado com o artigo 2.º, na parte em que altera o n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 142/99, afecta expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, que na data da sua entrada em vigor já tinham a seu favor decisões jurisdicionais de condenação, definitivas, que legitimamente lhes permitiam confiar numa tutela acrescida do seu direito, jurisdicionalmente constituído, pois, na impossibilidade de pagamento por parte da entidade patronal, sempre poderiam recorrer ao Fundo de Acidentes de Trabalho para obtenção da totalidade do crédito. Na verdade, o regime consagrado pelo Decreto-Lei n.º 142/99 não era excepcional nem transitório, tendo vigorado durante mais de sete anos (entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2000). No preâmbulo do diploma refere-se que o Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) substitui o Fundo de Actualização de Pensões de Acidentes de Trabalho (FUNDAP), representando um leque de garantias mais alargado, designadamente quanto ao pagamento dos prémios de seguro de acidentes de trabalho de empresas que, estando em processo de recuperação, se encontrem impossibilitadas de o fazer, competindo-lhe, ainda, ressegurar e retroceder os riscos recusados de acidentes de trabalho. Para prevenir que, em caso algum, os pensionistas de acidentes de trabalho deixassem de receber as pensões que lhes eram devidas, prevê-se que o FAT garantirá o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável. No exercício desta competência o FAT substitui o Fundo de Garantia e Actualização de Pensões, previsto na base XLV da Lei n.° 2127, de 3 de Agosto de 1965, destinado a assegurar o pagamento das prestações por incapacidade permanente ou morte em caso de acidente de trabalho, da responsabilidade de entidades insolventes.
Os beneficiários dessas prestações, e designadamente aqueles a quem os tribunais já haviam reconhecido o direito, contavam, razoavelmente, que, na impossibilidade de responsabilização das entidades patronais, accionariam o Fundo de Acidentes de Trabalho que assegurava a totalidade das prestações.
A súbita afectação dessas expectativas – com que os interessados não podiam razoavelmente contar – não é justificada por qualquer interesse público declarado, mas, apenas, pela necessidade de clarificação das atribuições do Fundo de Acidentes de Trabalho, explicação que, não permitindo considerar necessária, razoável ou justificada, conduz a que não possa aceitar-se que prevaleça sobre a expectativa legitima do interessado.
III Decisão
12. Assim, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da confiança ínsito ao Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, a norma dos artigos 2.º (quando introduz um novo n.º 5 ao artigo 1.º do Decreto-lei n.º 142/99 de 30 de Abril) e 5.º, n.º 1 (na parte em que determina a aplicação do novo regime a acidentes de trabalho ocorridos em data anterior), ambos do Decreto-lei n.º 185/2007 de 10 de Maio;
b) Julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 29 de Junho de 2010
Carlos Pamplona de Oliveira
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos