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Processo n.º 431/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, nos seguintes termos:
«[….]5 – Ora, no caso sub judice, verifica-se que o recorrente nunca problematizou qualquer questão de validade constitucional, concretamente definida, de qualquer norma de direito infraconstitucional/dimensão normativa/critério de decisão, nem a suscitou perante o tribunal recorrido.
Na verdade, nem no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade acima transcrito, nem nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o ora recorrente invocou que qualquer norma de direito infraconstitucional, nomeadamente, qualquer dimensão normativa/critério de decisão extraído dos normativos constantes do artigo 147.º, n.ºs 1, 2 e 7, do Código de Processo Penal, violasse normas ou princípios constitucionais como os artigos 32.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, e 204.º da CRP.
O recorrente limitou-se a controverter o juízo de aplicação, às circunstâncias concretas do caso, feito pelos tribunais de instância dos artigos 147.º, n.ºs 2, 3 e 7.º, 202.º e 204.º, todos do Código de Processo Penal, apodando a decisão recorrida de violar directamente, “de forma multímoda, o preceituado nos artigos 27.º, n.º 1, 28.º, n.º 2, e 32.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa”.
Com efeito, naquelas alegações para o Tribunal da Relação do Porto, o ora recorrente discursou do seguinte jeito:
“(…)
Segundo o recorrente e sintetizando, a decisão recorrida teria feito uma errada aplicação do disposto nos artigos 147.º, n.ºs 2, 3 e 7.º, 202.º e 204.º, todos do Código de Processo Penal, ao considerar válido o concreto acto do reconhecimento presencial do arguido efectuado como prova nos autos, por as pessoas ajuntadas ao arguido aparentarem idade muito diferente deste e se apresentarem diferentemente cuidados e vestidos, bem como ao aplicar, ao arguido, de modo desnecessário e desproporcionado, a medida de coacção de prisão preventiva.
Verifica-se, assim, não só a falta de objecto idóneo do recurso de constitucionalidade, como a satisfação do pressuposto específico desse recurso, de prévia, atempada e idónea suscitação da questão de constitucionalidade.
Deste modo, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do recurso.[…]»
2. Notificado da decisão, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«[…]1.º
Da leitura da Decisão Sumária proferida, com o n.° 269/2010, alcança-se que o fundamento para não se tomar conhecimento do recurso interposto, resulta do facto de o Recorrente, em momento anterior e perante as outras Instâncias não ter suscitado, de tal forma, a questão da apreciação da inconstitucionalidade que “obrigasse” as mesmas a pronunciarem-se sobre tal questão.
2.°
Refere-se ainda que ao Recorrente cabe o ónus de explicar em que sentido ocorre incompatibilidade entre a aplicação da lei processual penal (aqui o art.° 147.° e o princípio da livre apreciação da prova, art.° 126.°, ambos do CPP) e as garantias de defesa do Arguido,
que merecem consagração directa e jacente na Constituição da República Portuguesa, no seu art.° 32.°.
3.º
Cuida-se de evidenciar que o suscitar de tal questão, junto do órgão jurisdicional não deve ser meramente formal, mas “num sentido funcional”...
4.º
Por último, ainda na Decisão Sumária, na sua página sete, escreve-se que no caso em apreço o Recorrente nunca invocou qualquer norma de direito infraconstitucional que violasse normas ou princípios constitucionais.
5.º
Contudo, em plena diligência de Interrogatório Judicial do Arguido, dia seguinte à realização da diligência de prova por reconhecimento, já se questionara a validade da prova por reconhecimento, nos termos em que foi efectuada.
6°
Tais palavras constam da acta de Primeiro Interrogatório Judicial do Arguido.
7.º
Nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, diligentemente transcritas na Decisão Sumária, na alínea d) das Conclusões, está revelada a violação das garantias constitucionais, logo a violação, com que sentido e alcance ocorre a violação das normas e princípios constitucionais de garantia de defesa do Arguido.
8.º
Percebe-se que, neste caso, considerar válida a prova por reconhecimento é assassinar as garantias de defesa, já que nessa diligência não foi observado o requisito da mínima semelhança possível entre o Arguido e demais pessoas atrás da linha.
9.º
Verifica-se hoje, é certo, uma inversão no que outrora foram as lógicas processuais civil e penal.
10.º
No processo civil, ao Tribunal são cada vez mais consagrados poderes de investigação do objecto da lide, mitigando o princípio do dispositivo;
11.º
e, no processo penal, a busca da verdade material e o princípio da oficiosidade, consagrado no art.° 340.° do CPP são instrumentos que o Tribunal usa muito moderadamente.
12.º
Ao recorrente, em singelo alvitre jurídico, os pressupostos de admissibilidade do Recurso, neste Venerando Tribunal Constitucional, estão verificados.
13.º
Ao Tribunal Constitucional cumpre conhecer os recursos interpostos de decisões dos Tribunais, que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
14.º
Ora, em causa está uma Decisão do Tribunal da Relação do Porto.
15.º
O referido Tribunal corroborou entendimento do Tribunal de 1.ª Instância, indeferindo a arguição de invalidade da prova por reconhecimento.
16.º
Para considerar válida tal prova, o Tribunal da Relação do Porto entendeu que se respeitava, no caso sub judice; os requisitos do art.° 147.° do CPP;
17.º
e, reitere-se, corroborou tal entendimento, apesar do alerta manifesto do Recorrente, para que tal sentido implicaria aplicação de norma infraconstitucional em sentido violador dos princípios elementares de defesa do Arguido (e, portanto, suscitou-se em dois momentos a inconstitucionalidade).
18.°
Se as instâncias, Tribunal Judicial de Gondomar e Tribunal da Relação do Porto, não se pronunciaram explicitamente, afirmando a não inconstitucionalidade do art.° 147.° do CPP, tal omissão (e, sequentemente, nulidade por omissão de pronúncia) não é da responsabilidade do Recorrente;
19.°
que, licita e insistentemente, pugna pela declaração de não validade da prova por reconhecimento.
20.°
Não conhecer este recurso é, na perspectiva do Recorrente, não aplicar a alínea b) do n.° 1 do art.° 70.° da LTC e 280.°, n.° 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa.
21.º
Se em processo civil, a qualificação jurídica é questão menor, face ao poder atribuído ao Juiz para a corrigir;
22.°
em processo penal, tal poder é ainda mais vasto e essencial à boa administração da justiça e alcance da verdade material.
23.°
Por mera cautela de patrocínio se diga que, qualquer eventual imprecisão, na forma como o Recorrente, ao longo do processo, suscitou a questão da inconstitucionalidade do art.° 147.° do CPP, quando aplicado à prova por reconhecimento em causa, deveria ter sido objecto de convite para aperfeiçoamento;
24.°
o que não aconteceu, tendo inclusive sido admitido o recurso para este Tribunal, por Despacho do Exmo. Sr. Juiz Relator Desembargador a quo, junto do Tribunal da Relação do Porto.
III
REQUER
que V.ªs Ex.as se dignem:
a) atenta a argumentação supra aduzida, no sentido da verificação dos pressupostos da alínea b) do n.° 1 do art.° 70.° da LTC, admitir e julgar o presente recurso;
b) e, sempre, com o Douto Suprimento de V.ªs Exas., no salutar uso do poder dever de, oficiosamente, suprirem as eventuais omissões do recorrente.
ASSIM SE FAZENDO MELHOR JUSTIÇA!.»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou resposta nos termos seguintes:
«[…]1º
A. interpôs recurso para a Relação do Porto da decisão do Senhor Juiz de Instrução Criminal que, entre o mais, considerou que não se verificava qualquer irregularidade (invocada pelo arguido) que pusesse em causa a validade formal e substancial dos reconhecimentos pessoais realizados (artigo 147.º do CPP) e que decretou a prisão preventiva do arguido.
2º
Tendo a Relação negado provimento ao recurso, o arguido interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, (requerimento de fls. 342 a 347), recurso que foi admitido pelo despacho de fls. 352.
3.º
Nesse requerimento o recorrente refere a violação dos artigos 32.º, n.º 1, 20.º, n.º 1 e 204.º da Constituição, relacionada com o artigo 147.º, n.ºs 1, 2 e 7 do CPP, ou seja, com o acto de reconhecimento do arguido e a sua validade.
4.º
Parece-nos evidente que no requerimento não vem enunciada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, limitando-se o recorrente a tecer considerações genéricas sobre as garantias de defesa e a importância e rigor de que “o acto de reconhecimento do arguido” se deve revestir.
5º
Também no momento processual próprio – a motivação do recurso para a Relação – o recorrente, após dar conta da sua discordância em relação à decisão do Senhor Juiz de Instrução Criminal, diz o seguinte:
“(…)
Em síntese, a decisão ora atacada viola, de forma multímoda, o preceituado nos art.ºs 27.º, n.º 1, 28.º, n.º2 e 32.º, n.º1, todos da Constituição da República Portuguesa, designadamente quando lhe aplica medida de coacção privativa da liberdade, quando existem outras medidas cautelares mais adequadas, privando-o do Direito à Liberdade;
(…)
bem como os normativos constantes do CPP, art.ºs 147.º, n.ºs 2, 3 e 7, 202.º e 204.º, todos do CPP.”
6.º
Parece-nos óbvio, pois, que também não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
7.º
Foi precisamente por se ter entendido que o recorrente nunca invocara que qualquer norma de direito infraconstitucional – designadamente o artigo 147.º do CPP – violava normas ou preceitos constitucionais que, pela Decisão Sumária de fls. 494 a 503, se não conheceu do recurso.
8.º
Certamente por lapso, nessa Decisão, quando se transcreve o requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, transcreve-se o de fls. 471 a 479 (irrelevante para o caso) e não o de fls. 342 a 347, como já anteriormente se mencionou (artigo 2.º).
9.º
Na verdade, resulta inequivocamente da transcrição de outras peças processuais e do teor da decisão, ter sido o requerimento de fls. 342 a 347,o que foi levado em consideração na decisão.
10.º
Na reclamação, o arguido continua a tecer considerações gerais nada dizendo que possa abalar o bem fundado da decisão.
11.º
Resta acrescentar (porque vem referido na reclamação) que, como não se está perante meras deficiências formais do requerimento de interposição do recurso, passíveis de serem supridas, não tem aplicação o disposto no artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6, da LTC.
12.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Ocorrida mudança de relator por o primitivo relator ter cessado funções neste Tribunal Constitucional, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária ora reclamada pronunciou-se pelo não conhecimento do objecto do recurso com base, fundamentalmente, no facto de o recorrente não ter problematizado qualquer questão de validade constitucional de uma norma de direito infraconstitucional, não a tendo suscitado perante o tribunal recorrido.
Na presente reclamação, o reclamante insiste que suscitou a questão da inconstitucionalidade do artigo 147.º do Código de Processo Penal (CPP) ao longo do processo.
Sem razão, porém.
Como bem refere o Ministério Público na sua resposta, o reclamante não enunciou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade (constante de fls. 342/347 dos autos, e não de fls. 471/479, como, por lapso, foi transcrito na decisão sumária reclamada), limitando-se a tecer considerações genéricas sobre as garantias de defesa e a importância do “auto de reconhecimento do arguido”.
E embora nesse requerimento afirme que suscitou a questão de inconstitucionalidade, além do mais, na motivação do recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o certo é que aí se limitou a discordar da decisão recorrida em si mesma considerada. Mas em momento algum o reclamante enunciou, perante o tribunal recorrido, uma dimensão normativa do artigo 147.º do CPP, para depois a confrontar com as normas e preceitos constitucionais.
Conclui-se, assim, pela falta de suscitação, perante o tribunal recorrido, de uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, que o reclamante, aliás, continua a não saber enunciar, pelo que deve ser mantida a decisão sumária reclamada.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 5 de Julho de 2010
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos