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Processo n.º 884/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I Relatório
1. Na Relação de Coimbra foi emitido acórdão, em 24 de Junho de 2008, a negar provimento à apelação interposta, assim mantendo a sentença proferida no 3º Juízo Cível de Coimbra que julgou improcedente a acção. Nesse aresto, e quanto à invocada questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 157/2006, concluiu-se que os artigos 1.º, 4.º a 11.º, 24.º a 27.º do diploma não estariam cobertos pela autorização legislativa concedida pela Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro. Ora, constituindo a denúncia deste tipo de contrato matéria da competência reservada da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea h) da Constituição, tais normas padeceriam, por isso, de inconstitucionalidade orgânica. No entanto, ponderou ainda a Relação que não tendo sido alegados factos necessários ao preenchimento dos requisitos do direito de denúncia do senhorio, segundo a legislação aplicável, mesmo admitindo que tais normas eram conformes à Constituição, não se mostrariam preenchidos os requisitos de que a lei faz depender o direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação, em caso de demolição, pelo que a acção sempre deveria improceder. Diz o acórdão:
“(…)
Na decisão apelada, a Mm.ª Juíza considerou que a autorização legislativa apenas contempla o regime jurídico das obras coercivas, com o sentido e extensão assinalados no n.º 2 – designadamente a referida na sua alínea a): “o diploma a aprovar tem como sentido permitir a intervenção em edifícios em mau estado de conservação, assegurando a reabilitação urbana nos casos em que o proprietário não queira ou não possa realizar as obras necessárias” – e a regulamentação atinente às obras da iniciativa do senhorio, designadamente os artigos 1°, alíneas a) e c), 4° a 11° e 24° a 27° e 24° a 27°, não integra o regime jurídico das obras coercivas com o sentido e extensão definidas na lei de autorização legislativa.
Ora, constituindo o regime geral do arrendamento urbano matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165°, alínea h), as normas em causa, estando inseridas unicamente em diploma emanado do Governo e não se encontrando abrangidas pela autorização legislativa contida no artigo 63° da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, (cf. artigos 161°, alínea c), 198.°, n.º 1 alíneas a) e b), e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa) enfermam de inconstitucionalidade orgânica, estando, por isso, vedada a sua aplicação no caso “sub judice” em obediência ao artigo 204° da Constituição da República Portuguesa.
(…)
O Governo veio a legislar sobre esta matéria da denúncia do contrato de arrendamento, através do Decreto-Lei n.º 157/2006 de 8 de Agosto, e essa matéria é da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República Portuguesa (regime geral do arrendamento rural e urbano).
(…)
O Governo veio a legislar sobre aquela matéria sem que estivesse devidamente autorizado e, tratando-se de matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, o Governo só poderia legislar sobre tal matéria nos precisos termos da autorização.
E a desconformidade com a lei de autorização implica directamente uma ofensa à competência da Assembleia da República e, por consequência, uma inconstitucionalidade orgânica.
(…)
Portanto, pode dizer-se que o Tribunal “a quo” fez uma interpretação que nos parece adequada, ao considerar que a denúncia do contrato de arrendamento urbano se integra na matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.°, n.º 1, alínea h) da Constituição da República Portuguesa.
Como estão em causa normas do Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto, emanadas pelo Governo, e que não se encontram abrangidas pela autorização legislativa concedida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, nomeadamente, os seus artigos 1.°, 4.° a 11.° e 24.° a 27.° enfermam de inconstitucionalidade orgânica, e, por isso, encontra-se vedada a sua aplicação ao caso vertente, por força do artigo 204.°. da Constituição da República, nos termos do qual “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”
Com efeito, na autorização legislativa nada consta quanto ao regime de obras de remodelação ou de restauro profundos, a efectuar em imóveis arrendados, bem como quanto à demolição destes, nem relativamente à denúncia do contrato de arrendamento, por parte do senhorio, com alguma dessas finalidades, e essas matérias vieram a ser reguladas pelo Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto, o qual também regula as obras coercivas a realizar pelos municípios em prédios total ou parcialmente arrendados.
É certo que o artigo 64.° da mencionada Lei prescreve que o Governo deveria aprovar, por decretos-leis, legislação complementar do NRAU, mas nenhuma das matérias aí referidas tem a ver com a denúncia do arrendamento urbano.
(…)
Tratando-se de uma obra de demolição, competia à Autora alegar os factos constitutivos do direito invocado, nos termos do artigo 342.°, n.º 1 do C. Civil.
Ou seja, deveria ter alegado que a demolição era necessária por virtude da degradação do médio, incompatível tecnicamente com a sua reabilitação e geradora de risco para os seus ocupantes, tendo essa situação sido atestada pelo município, ouvida a comissão arbitral municipal, ou que a demolição fora considerada pelo município como a solução tecnicamente mais adequada e necessária à execução do plano municipal de ordenamento do território.
É certo que a Autora invocou a degradação dos prédios em causa e que alguns se encontram devolutos e em ruínas, representando um perigo para pessoas e bens e para a segurança e salubridade públicas (artigos 7° e 8° da p. inicial).
No entanto, não fez alusão quanto à impossibilidade de reabilitação motivada pela degradação (inviabilidade técnica de reabilitação), nem invocou que a situação descrita tivesse sido atestada pelo Município, juntando parecer da Câmara Municipal nesse sentido.
A Autora deveria ter alegado os factos constitutivos e necessários ao direito de denúncia do senhorio, pressupondo que se trate de normas que estejam em harmonia com a Constituição da República Portuguesa.
(…)
Considerando as provas já constantes nos autos, e não tendo sido alegados pela Autora os factos necessários para o preenchimento do direito de denúncia do senhorio, segundo a legislação aplicável, o Tribunal “a quo” dispunha já dos elementos necessários para decidir do mérito da causa no despacho saneador.
(…)
Pretendendo a Recorrente a demolição do prédio onde habita a Ré, para aí construir um novo edifício, a Autora teria de alegar e provar os factos que são constitutivos do direito de denúncia invocado:
a. Ser a demolição necessária por força da degradação do prédio arrendado;
b. Ser essa degradação incompatível tecnicamente com a sua reabilitação;
c. E geradora de risco para os respectivos ocupantes;
d. Apresentar o parecer da Câmara Municipal, ouvida a comissão arbitral municipal, que atestasse esses pressupostos relativos ao estado de degradação do imóvel, conforme preceitua o artigo 7.º, n.º 2, alínea b) do Decreto-Lei. n.º 157/2006, de 8 de Agosto, em conjugação com o artigo 24.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
Mesmo que se defenda o entendimento de que o Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto, na parte em que edita normas que se afigura não estarem abrangidas pela autorização legislativa concedida pela Lei n.º 6/2006, de 27de Fevereiro, nomeadamente os seus artigos 1.º, 4.º a 11.º e 24.º a 27.º, não enferma de inconstitucionalidade orgânica, podendo, pois, aquelas normas ser aplicadas ao caso vertente, cremos ser de concordar com o entendimento da Mmª Juíza, subjacente à sentença apelada, no sentido de que, não tendo sido alegados pela ora Recorrente, sobre a qual impende o ónus de alegação e de prova, os factos constitutivos e indispensáveis ao reconhecimento do direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação, não se mostram preenchidos os pressupostos de que a lei faz depender a atribuição ao senhorio do direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação, em caso de demolição.
(…)
Não tendo sido alegados os factos constitutivos e indispensáveis para que fosse reconhecido o direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação, não se podem considerar preenchidos os pressupostos de que a lei faz depender a atribuição ao senhorio desse direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação, em caso de demolição.
Consequentemente, é nosso entendimento, salvo sempre melhor opinião, que mesmo a provar-se o facto constante do artigo 14.º da petição inicial, no contexto em que esse facto foi articulado, não seria suficiente para alterar o sentido da decisão que recaísse sobre o mérito da causa, nomeadamente, quanto à verificação dos requisitos de que a lei faz depender a atribuição ao senhorio do referido direito de denúncia.
(…)
Em suma:
A. Quanto à questão da inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 157/2006:
Estão em causa normas do Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto, editadas pelo Governo, e que não se encontram abrangidas pela autorização legislativa concedida pela Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro, nomeadamente, os seus artigos 1.°, 4.° a 11.° e 24.° a 27.°. Na autorização legislativa nada consta quanto ao regime de obras de remodelação ou de restauro profundos, a efectuar em imóveis arrendados, bem quanto à demolição destes, nem relativamente à denúncia do contrato de arrendamento, por parte do senhorio, com alguma dessas finalidades, e essas matérias vieram a ser reguladas pelo Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto. Ora, a denúncia do contrato de arrendamento integra-se na matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º n.º 1, alínea h) da Constituição da República Portuguesa.
O Governo veio a legislar sobre aquela matéria sem que estivesse devidamente autorizado e, tratando-se de matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, o Governo só poderia legislar sobre tal matéria nos precisos termos da autorização.
A desconformidade com a lei de autorização implica directamente uma ofensa à competência da Assembleia da República.
Constituindo o regime geral do arrendamento urbano matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.°, n.º 1, alínea h) da Constituição da República Portuguesa, as normas em causa estando inseridas unicamente em diploma emanado do Governo e não se encontrando abrangidas pela autorização legislativa contida no artigo 63.º da Lei n.º 6/2006, de 27-02, enfermam de inconstitucionalidade orgânica.
(…)
B. (…)
C.(…)
Mesmo que se defenda o entendimento de que o Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto, na parte em que edita normas que se afigura não estarem abrangidas pela autorização legislativa concedida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, nomeadamente, os seus artigos 1.°, 4.° a 11.° e 24.° a 27.°, não enferma de inconstitucionalidade orgânica, podendo, pois, aquelas normas ser susceptíveis de aplicação ao caso vertente, ainda assim, a Autora, sobre a qual impende o ónus de alegação e de prova, não alegou os factos constitutivos e necessário ao reconhecimento do direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação, pelo que não se mostram preenchidos os requisitos de que a lei faz depender a atribuição ao senhorio do direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação, em caso de demolição.
Consequentemente, mesmo a provar-se o facto constante do artigo 14.º da petição inicial, no contexto em que esse facto foi articulado, tal não seria suficiente para alterar o sentido da decisão que recaísse sobre o mérito da causa, nomeadamente, quanto à verificação dos pressupostos de que a lei faz depender a atribuição ao senhorio do referido direito de denúncia.
(…)”
2. É desta decisão que o Ministério Público interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 71.º, n.º 1 e 72.º, n.ºs 1, alínea b) e 2 da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), nos seguintes termos:
“No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24 de Junho de 2008, (…) decidiu-se que as normas do Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto, emanadas pelo Governo, e que não se encontram abrangidas pela autorização legislativa concedida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, nomeadamente, os seus artigos 1°, 4° a 11°, 24° a 27°, enfermam de inconstitucionalidade orgânica e, por isso, encontra-se vedada a sua aplicação ao caso vertente, por força do artigo 204° da Constituição da República.
Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de Novembro), cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
O Ministério Público tem legitimidade para recorrer para o Tribunal Constitucional, sendo para ele obrigatório o recurso (artigo 72°, na 1, alínea a) e na 3 do mesmo diploma).
Porque está em tempo (artigo 75°), o Ministério Público vem, na sequência da notificação que lhe foi efectuada, interpor para o Tribunal Constitucional recurso limitado à questão da inconstitucionalidade do diploma e normas indicadas no acórdão recorrido acima referidas. (…)”
3. O recurso foi admitido. O Ministério Público recorrente apresentou alegação e concluiu:
1. Inclui-se no âmbito da “reserva de parlamento”, estabelecida no artigo 165°, na 1, alínea h), da Constituição da República Portuguesa, a definição dos pressupostos materiais que condicionam, num arrendamento “vincunlístico”, a faculdade de denúncia pelo senhorio, nomeadamente com fundamento na demolição do prédio arrendado ou na realização neste de obras de restauro ou remodelação profunda.
2. Tais pressupostos – que se não mostram minimamente definidos nos artigos 1101° e 1103° do Código Civil, na redacção emergente da Lei na 6/2006 – são estabelecidos, em termos constitutivos e inovatórios, pelo Decreto-Lei na 157/06, em particular pelas disposições conjugadas dos artigos 5°, 6°, 7° e 24° e 25° deste último diploma legal.
3. Não estando o Governo, ao editar o Decreto-Lei nº 157/06, legitimado, face ao objecto e extensão da respectiva lei de autorização legislativa, constante do artigo 63° Ia Lei nº 6/2006, para regular os aspectos substantivos da extinção do arrendamento urbano, na sequência do exercício pelo senhorio do direito de denúncia, com base na pretendida demolição ou restauro profundo do locado, são organicamente inconstitucionais as normas que integram o objecto do presente recurso.
4. Não há contra-alegação. O Ministério Público recorrente foi, depois, convidado a pronunciar-se sobre a eventualidade de o Tribunal não conhecer do recurso, com fundamento na falta de utilidade processual. Respondeu à questão manifestando a opinião de que o tribunal recorrido não desaplicara verdadeiramente as normas que seriam organicamente inconstitucionais, por ter, afinal, julgado a causa com base nesse regime; por esse motivo, diz, o fundamento do não conhecimento do recurso deverá procurar-se na não desaplicação do regime tido por inconstitucional, em vez do julgamento de inutilidade do seu conhecimento.
II Fundamentação
5. Conforme este Tribunal tem repetidamente afirmado, o recurso de inconstitucionalidade desempenha uma função instrumental, razão pela qual o interesse processual em apreciar a questão de constitucionalidade reside na potencialidade de o seu julgamento se repercutir, de forma útil, na decisão recorrida, de modo a alterar, no todo ou em parte, a solução jurídica obtida no caso concreto.
Isso significa, como se afirmou no Acórdão n.º 498/96, “que o interesse no conhecimento de tal recurso há-de depender da repercussão da respectiva decisão na decisão final a proferir na causa. Não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso”.
Em suma, o conhecimento do recurso será inútil quando o julgamento a dar pelo Tribunal Constitucional à questão de inconstitucionalidade for insusceptível de se projectar na solução concreta do caso, ou seja, sempre que a decisão do caso se mantiver inalterada qualquer que venha a ser o juízo formulado pelo Tribunal Constitucional sobre a questão jurídico-constitucional que lhe é submetida.
E é este inequivocamente o caso dos autos.
Na verdade, a Relação de Coimbra afirmou, na sua decisão, que mesmo que se entenda que o Decreto-Lei n.º 157/2006 de 8 de Agosto, na parte em que edita normas não abrangidas pela autorização legislativa, não enferma de inconstitucionalidade orgânica, ainda assim a autora, sobre quem impendia o respectivo ónus de alegação e prova, não alegara os factos constitutivos necessários ao reconhecimento do direito de denúncia do contrato de arrendamento, pelo que não se mostravam preenchidos os requisitos de que a lei faz depender a atribuição ao senhorio do direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação, em caso de demolição.
Este juízo revela que, independentemente da eventual confirmação do juízo de inconstitucionalidade proferido, e antes mesmo de poder apurar-se se ocorreu uma verdadeira desaplicação da norma inconstitucional – como propõe o Ministério Público – sempre se impõe concluir que a acção é improcedente.
Inexiste, por isso, qualquer utilidade na apreciação do recurso, já que uma eventual decisão de procedência à questão de inconstitucionalidade é insusceptível de se projectar na solução dada ao caso concreto.
III Decisão
6. Nestes termos, o Tribunal decide não conhecer do objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 5 de Julho de 2010. – Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos