Imprimir acórdão
Processo n.º 108/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito do processo de expropriação por utilidade pública promovido pela “A., S.A.” relativamente à parcela n.º 117, correspondente à totalidade do prédio denominado “…, sito na freguesia de Alcochete, concelho de Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob a ficha n.º 1732, pertencente à “Sociedade B., Lda.”, o Tribunal da Relação de Lisboa, mediante acórdão datado de 15 de Maio de 2007, julgou procedente o agravo interposto pela expropriada e revogou o despacho de adjudicação da propriedade do referido prédio a favor da entidade expropriante.
Na sequência de recurso de agravo interposto pela entidade expropriante, o Supremo Tribunal de Justiça, mediante acórdão datado de 15 de Janeiro de 2009, manteve a decisão de revogação do despacho de adjudicação da propriedade.
A entidade expropriante arguiu então a nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, alegando para tanto que fora omitida uma formalidade processual essencial por parte do Conselheiro Relator que consistiu na falta de sugestão do julgamento ampliado do agravo – previsto no n.º 2 do artigo 732.º-A, do Código de Processo Civil, aplicável por força do n.º 3 do artigo 762.º - quando era manifesto que se estava na eminência de prolação de decisão contrária à jurisprudência até então produzida pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
O Supremo Tribunal de Justiça, mediante acórdão datado de 14 de Janeiro de 2010, indeferiu a arguição de nulidade, com a seguinte fundamentação (na parte que ora releva):
«[...]
Salvo o devido respeito, à requerente não assiste razão. A faculdade de o relator sugerir o julgamento ampliado não acarreta pelo seu não exercício qualquer nulidade.
Porque é mesmo de uma faculdade que se trata e, nem sequer, de uma faculdade vinculada, como é jurisprudência, pelo menos, maioritária do S.T.J. (V. Ac. do STJ de 7-2-2002 e de 5-1-2004).
E bem se compreende que assim seja dado que aquele poder de sugerir o julgamento ampliado é, também, privilégio das partes que o podem usar, se analisados os elementos do caso concreto, assim o entenderem.
Ademais à requerente não é lícito que ignore que a requerida, nas suas contra-alegações de recurso para o S.T.J., chegou mesmo a sugerir o julgamento alargado para a questão prévia posta (não admissão do recurso de agravo), de que a requerente foi notificada.
Não pode deixar de concluir-se que a agravante foi suficientemente alertada para o julgamento ampliado, tendo, então, ocasião para, ela própria, peticionar o que agora peticiona.
Não se verifica, pois, qualquer nulidade.
[...]».
A requerente interpôs então recurso desta última decisão do Supremo Tribunal de Justiça para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), suscitando a inconstitucionalidade da norma constante do art. 732.º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, quando interpretada no sentido de não impor ao Tribunal o dever de sugerir o julgamento ampliado do agravo numa situação em que é certo que o mesmo Tribunal irá adoptar solução jurídica em oposição com jurisprudência anteriormente firmada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, por violação dos princípios da igualdade e da confiança, consagrados nos artigos 13.º e 2.º da Constituição.
Tendo avançado a tramitação do recurso de constitucionalidade, a recorrente apresentou alegações de recurso e concluiu nos seguintes termos:
“1.ª O Acórdão do STJ de 14 de Janeiro de 2010 indeferiu a arguição, pela ora Recorrente, da nulidade do Acórdão de 15 de Janeiro de 2009 do mesmo Tribunal, que negara provimento ao recurso de agravo que a expropriante, A., S.A., havia interposto do Acórdão da Relação de Lisboa de 15 de Maio de 2007, confirmando, consequentemente, este Acórdão.
2.ª A questão central debatida no Acórdão cuja nulidade a Recorrente arguiu consistia em saber se a expropriação de determinado prédio podia ser abrangida por uma DUP emitida relativamente a outros prédios a expropriar nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 168/94 e na Resolução do Conselho de Ministros n.º 121-A/94, uma vez que a própria expropriada havia requerido, ao abrigo do artigo 3.º, n.º 2, do Código das Expropriações de 1991, a expropriação de todos os prédios de que era proprietária abrangidos na previsão dos daqueles diplomas.
3.ª Quanto a este problema, defendeu a ora Recorrente que, face à validade, legalidade e procedência do pedido de expropriação total formulado pela expropriada, no qual se inseria o prédio que constitui a Parcela 117 em causa, não se impunha emissão de nova DUP, estendendo-se antes a essa parcela a DUP contida no despacho MOPTC.
4.ª O STJ tomou, porém, posição oposta, exigindo que a DUP preveja expressamente o prédio em questão e recusando, portanto, a interpretação dada pela ora Recorrente ao artigo 3.º, n.º 2 do Código das Expropriações de 1991, segundo a qual este normativo permite a expropriação total sobre prédios distintos daquele sobre o qual incidiu DUP, desde que se verifiquem os pressupostos elencados nas respectivas alíneas a) e b).
5.ª No entanto, a jurisprudência maioritária do STJ tem-se pronunciado no sentido da tese sustentada pela ora Recorrente, isto é, pela desnecessidade de obtenção de uma nova DUP para legitimar a expropriação de prédios nos termos do art. 3.º, n.º 2 do Código das Expropriações de 1991.
6.ª A ora Recorrente arguiu a nulidade do citado Acórdão de 15 de Janeiro de 2009 com fundamento na preterição da formalidade prevista no art. 732.º-A, n.º 2, do CPC que impunha ao relator, a qualquer dos adjuntos e aos presidentes das secções cíveis o dever de, até à prolação do acórdão, sugerir o julgamento ampliado da revista quando se verifique a possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência anteriormente firmada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
7.ª Não obstante, o Acórdão do STJ de 14 de Janeiro de 2010, ora recorrido, interpretou a norma do artigo 732.º-A, n.º 2, do CPC no sentido de não impor ao Tribunal o dever de sugerir o julgamento ampliado da revista mesmo sendo certo que o Tribunal iria adoptar solução jurídica em oposição com jurisprudência anterior.
8.ª Foi essa norma interpretada no sentido aludido que a ora Recorrente considerou violadora dos artigos 13.º e 2.º da CRP e que é objecto do presente recurso de constitucionalidade.
9.ª O Decreto-Lei n.º 329-A/95, do mesmo passo que revogou o artigo 2.º do Código Civil que consagrava o instituto dos assentos, bem como os artigos 763.º a 770.º do CPC, criou como mecanismo destinado à uniformização da jurisprudência o julgamento ampliado de revista, aditando ao CPC os artigos 732.º-A e 732.º-B posteriormente alterados pelo Decreto-Lei n.º 303/2007.
10.ª Ora, tanto na redacção actual destes artigos, como naquela que antecedeu o Decreto-Lei n.º 303/2007, existe uma obrigação de propor o julgamento alargado do recurso quando se torne evidente que a solução a dar ao recurso está em oposição com jurisprudência anteriormente firmada do STJ.
11.ª Esta interpretação é imposta pela CRP e é a única que se afigura compatível com o propósito, assumido pelo legislador, de alcançar um nível adequado de uniformização de jurisprudência.
12.ª E não se argumente, em sentido contrário, com a doutrina do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 261/02 de 18 de Junho que se pronunciou sobre a conformidade de uma interpretação do artigo 732.º-A, n.º 2, do CPC com o disposto no artigo 20.º, n.º 1, da CRP na perspectiva da existência de um direito constitucionalmente garantido à existência de um recurso para uniformização de jurisprudência, uma vez que essa questão é alheia ao caso dos autos.
13.ª Do que aqui se trata não é da existência de um direito ao recurso para uniformização, mas apenas de saber quais as exigências que os princípios constitucionais da igualdade e da confiança colocam à configuração legal de um mecanismo de uniformização da jurisprudência.
14.ª O Tribunal Constitucional ainda não se pronunciou quanto ao princípio da igualdade ou quanto ao princípio da confiança na perspectiva da sua aplicação ao preciso caso dos autos, não obstante á ter reconhecido a importância de tais princípios no quadro da configuração legal do sistema de uniformização de jurisprudência (Acórdãos n.ºs 574/98 e 575/98).
15.ª Ora, o princípio da confiança encontra aqui plena aplicação porquanto a eficácia que era assegurada ao sistema de uniformização anterior à reforma de 1995 através do instituto dos assentos e da previsão de um recurso ordinário para o tribunal pleno, no contexto actual é agora apenas garantida através de um julgamento alargado do recurso se este for obrigatoriamente suscitado pelo relator e outros magistrados quando seja previsível que a decisão do mesmo recurso venha contrariar jurisprudência anterior.
16.ª Só assim se poderá imprimir a desejada celeridade ao sistema de uniformização de jurisprudência e, sobretudo, só assim se poderá assegurar que os cidadãos possam confiar na previsibilidade das decisões judiciais e obter a imprescindível certeza e segurança jurídicas.
17.ª A interpretação do artigo 732.º-A, n.º 2 feita pelo tribunal recorrido viola também o princípio constitucional da igualdade na medida em que restringe a possibilidade de dois cidadãos obterem a mesma solução em casos idênticos submetidos a tribunal no contexto da mesma legislação.
18.ª Na verdade, essa interpretação, diminuindo os obstáculos à prolação de acórdãos divergentes, favorece os desencontros jurisprudenciais que assolam a nossa ordem jurídica e ofendem o princípio da igualdade – soluções jurídicas diferentes tomadas no contexto da mesma legislação relativamente a situações de facto muito semelhantes (desigualdade sincrónica).
19.ª Do exposto, resulta claro que a norma do artigo 732.º-A, n.º 2, do CPC quando interpretada no sentido de não impor aos magistrados nela referidos o dever de propor o julgamento ampliado da revista quando seja certo que Tribunal irá adoptar solução jurídica em oposição com jurisprudência anterior, viola os princípios da confiança e da igualdade consagrados nos artigos 13.º e 2.º da CRP.”
Por seu turno, a recorrida contra-alegou nos seguintes termos:
“3. A recorrente interpôs o presente recurso ao abrigo da al. b) do n.º 1 daquele art.70.º, arguindo a violação, por parte do Supremo Tribunal de Justiça, dos artigos 13.º e 2.º da Constituição da República Portuguesa. Este, ao decidir, por Acórdão de 14 de Janeiro de 2010, no sentido de que o n.º 2 do art. 732.º-A do Código de Processo Civil não configura um dever mas antes uma faculdade aos intervenientes processuais ali referido, e ao não ter julgado procedente o agravo, no mesmo sentido em que fora julgado em casos ditos idênticos, teria adoptado solução contrária a jurisprudência anterior.
4. No entender da recorrida, salvo o muito respeito, o Tribunal Constitucional não pode conhecer o recurso ora interposto por, in casu, não se verificarem, desde logo, os pressupostos exigidos por aquela al. b) do n.º 1 do art. 70 da LTC, e nem se colocar a hipótese de a decisão do Tribunal Constitucional sobre o mérito do recurso alterar a decisão de fundo em causa, tal como passa a demonstrar.
5. Como é sabido, nos termos conjugados do n.º 3 do art.º 684.º conjugado e do n.º 2 do art. 660.º, ambos do CPC, o âmbito do recurso encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelos recorrentes nas conclusões extraídas da respectiva alegação.
A recorrente interpôs recurso de agravo do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Maio de 2007, que deu provimento ao recurso de agravo interposto pela expropriada, ora recorrida, do despacho de adjudicação da parcela expropriada, substituindo-o por decisão que julgou extinta a instância por ausência dos pressupostos necessários para adjudicação da propriedade, com fundamento na inexistência da declaração de utilidade pública (doravante “DUP”).
No supra referido recurso de agravo, a ora recorrente delimitou o âmbito do mesmo pelas seguintes questões:
a) Vício de violação de lei de processo, por erro de interpretação do artigo 50.º do Código das Expropriações (doravante “CE”);
b) Vicio de violação de lei substantiva, por erro de interpretação e aplicação do artigo 3.º do CE e,
c) Errada interpretação dos factos e respectiva subsunção das normas jurídicas aplicáveis, quais sejam, os artigos 3.º e 53.º do CE.
Ou seja, a recorrente não arguiu a questão da eventual inconstitucionalidade que ora suscita, nem durante o processo, e nem no requerimento do recurso de agravo e respectiva alegação, que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça.
Por outro lado, o Acórdão do STJ que julgou o agravo não conheceu tal questão de inconstitucionalidade. Portanto, não tendo sido esta questão apreciada e julgada naquela instância, fica agora precludida a possibilidade de o Tribunal Constitucional conhecer do recurso ora interposto, pela simples razão de que, ao abrigo do imposto pela al. b) do n.º 1 do art. 70.º da LCT, a arguição da inconstitucionalidade se mostra intempestiva.
Com efeito, por Acórdão proferido em 15 de Janeiro de 2009 pelo Supremo Tribunal de Justiça foi negado provimento ao agravo interposto, vindo a recorrente arguir, então, a coberto do disposto pelo n.º 1 do art.º 201.º do CPC, a nulidade daquele acórdão, por omissão da formalidade prevista pelo n.º 2 do art. 732.º-A do CPC, ou seja, por os magistrados previstos naquele n.º 2, não terem proposto, como seria seu dever, o julgamento ampliado de revista nos termos do referido artigo, tudo conforme consta nos pontos 61 e 77 daquelas alegações.
Só aí arguiu a recorrente a questão da inconstitucionalidade, por violação dos arts. 13.º e 2.º da Constituição, face ao sentido dada à norma do n.º 2 do art. 732.º-A do CPC.
A referida arguição de nulidade, e no aqui relevante, foi julgada do modo seguinte:
“Quanto à alegada inconstitucionalidade, é necessário não esquecer que estamos, em sede de incidente após a prolação do acórdão e que o poder jurisdicional se esgotou, apenas persistindo com a finalidade específica contido no art. 666.º n.º 2 do CPC. Assim, esta questão é nova e não pode ser apreciada.”
Ora, é desta decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2010, que a recorrente interpõe recurso para esse Tribunal Constitucional, concluindo, nomeadamente, que:
“7. Não obstante, o Acórdão do STJ de 14 de Janeiro de 2010, ora recorrido) interpretou a norma do artigo 732.º-A, n.º 2, do CPC no sentido de não impor ao Tribunal o dever de sugerir o julgamento ampliado de revista mesmo sendo certo que o Tribunal iria adoptar solução jurídica em oposição com jurisprudência anterior.
8. Foi essa norma interpretada no sentido aludido que a ora Recorrente considerou violadora dos artigos 13.º e 2.º da CRP e que é objecto do presente de constitucionalidade.”
6. Sendo como se demonstra, nos termos do disposto na al. b) do n,º 1 do art. 70.º da LTC, a recorrida entende que não se encontra verificado um requisito fundamental para que esse Tribunal Constitucional possa conhecer do recurso ora interposto, na medida em que a recorrente está a suscitar perante esse Tribunal uma questão de inconstitucionalidade que nunca foi apreciada antes, pelo que, a sua arguição é, agora, intempestiva.
Com efeito, teria sido necessário que tivesse sido colocado durante o processo ou, mormente até à apreciação do agravo pelo Tribunal a quo, a questão da inconstitucionalidade e que, essa apreciação, tivesse ocorrido enquanto a causa ali se encontrasse pendente ou até às alegações de recurso de agravo, como é exigido legalmente, o que, no caso não ocorreu.
7. E, nem se diga que o entendimento perfilhado, ou pressuposto no Acórdão cuja nulidade foi arguida, seria de todo imprevisto ou/e inesperado, de modo a dispensar a recorrente da exigência de prever tal desfecho, sendo-lhe como tal impossível admitir a aplicação do preceito no sentido em que fez o tribunal recorrido.
A interpretação com que a norma é aplicada surge com o perfeitamente razoável e previsível, mostrando-se compatível com o teor literal do preceituo e, ainda que o não fosse, o certo é que o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça tem-se mostrado uniforme e unânime, reiterando a adopção da mesma interpretação tida no acórdão recorrido quanto a esta matéria. A título meramente exemplificativo, veja-se, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2130/08, de 14 de Janeiro de 2010.
Aliás, a reiteração do entendimento assumido pelo Supremo Tribunal de Justiça, já foi reconhecida, inclusive, pelo próprio Tribunal Constitucional no seu recente Acórdão n.º 167/2010 de 28 de Abril de 2010.
Com efeito, com o art. 732.º-A do CPC, faculta-se às partes, de forma clara, a faculdade de intervirem activamente na detecção e prevenção dos possíveis conflitos jurisprudenciais, sendo certo que tal intervenção será possibilitada e incrementada pelo indispensável cumprimento do contraditório e pela necessidade da sua prévia audição, de modo a prevenir a prolação de decisões-surpresa.
No sentido da obrigatoriedade de previsão, por parte da recorrente, do sentido dado à norma ora em análise, face à constante unanimidade das decisões tomadas que vão ao encontro do sentido assumido pelo Tribunal a quo (cf, Tribunal Constitucional, Acórdão n.º 167/2010 de 28 de Abril de 2010).
Ademais, tal como foi esclarecido no próprio acórdão recorrido, tal questão já se mostra inviável, até porque, como ali é referido, na sua contra-alegação para o STJ, a ali recorrida “chegou, mesmo a sugerir o julgamento alargado para a questão prévia (não admissão do recurso de agravo), de que a requerente foi notificada. Não pode deixar de concluir-se que a requerente foi suficientemente alertada para o julgamento ampliado sendo, então ocasião para, ela própria, peticionar o que agora peticiona.” (cf. pag. 19 do acórdão sobre a arguição de nulidade, de 14.1.2010).
III - Quanto às questões trazidas em recurso - violação dos princípios da confiança e da igualdade
8. Sem prescindir e apenas por mera cautela, sempre se dirá que não assiste igualmente razão à recorrente quanto a decisão recorrida, viola os princípios constitucionais de segurança e igualdade mencionados.
8.1. No que toca ao princípio da confiança, não se pode afirmar que a interpretação dada pelo Tribunal a quo importa a violação da confiança no sistema de uniformização.
Antes de mais, não existe regra constitucional da imposição, no processo civil, da existência de um recurso para uniformização de jurisprudência.
Com efeito, não está coberto pela Constituição, em geral, uma garantia generalizada ou genérica do direito ao recurso das decisões judiciais e nem esse facto, vai em contradição ou é parte integrante do princípio geral do direito e garantia de acesso à justiça e ao direito, tal como consagrado pelo art. 20.º da Lei Fundamental.
8.2. No que respeita à violação do princípio da igualdade, este também não ficou ferido pela decisão recorrida: a recorrente não alega os termos factuais concretos que permitam a conclusão que adianta.
Sucede apenas que, a recorrente, numa tentativa de obter uma decisão que lhe seja favorável quanto à relação material controvertida discutida em 1ª Instância – que venha a considerar válido o despacho de adjudicação da propriedade da parcela exproprianda –, tenta confundir o verdadeiro objecto do recurso interposto, visando obter uma declaração de inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Tribunal a quo no que concerne à necessidade de obtenção de Declaração de Utilidade Pública para legitimar a expropriação de prédios nos termos do n.º 2 do art. 3.º do Código das Expropriações de 1991.
Mas tal tentação é-lhe proibida por esta via.
[…]».
As partes foram notificadas para se pronunciar sobre a eventualidade do recurso não ser conhecido com o fundamento da interpretação normativa questionada não integrar a ratio decidendi da decisão recorrida, tendo-se pronunciado apenas a recorrente no sentido do conhecimento do mérito do recurso interposto.
Fundamentação
Do conhecimento do recurso
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
A exigência deste último requisito tem em atenção a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, apenas tendo um efeito útil o conhecimento do recurso cuja decisão possa obrigar a uma reformulação da decisão recorrida.
Olhando para o conteúdo do excerto acima transcrito do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 14 de Janeiro de 2010, proferido no âmbito dos presentes autos, que apreciou o aludido incidente de arguição de nulidade, é possível verificar que o tribunal a quo não aplicou expressamente, como ratio decidendi, o disposto no artigo 732.º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, com o sentido que este preceito não impõe ao Tribunal o dever de sugerir o julgamento ampliado do agravo numa situação em que é certo que o mesmo Tribunal irá adoptar solução jurídica em oposição com jurisprudência anteriormente firmada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
Nessa decisão, o tribunal a quo limitou-se a afirmar, em termos genéricos, que “a faculdade de o relator sugerir o julgamento não ampliado não acarreta pelo seu não exercício qualquer nulidade”, não tendo chegado a confirmar se tinha anteriormente julgado o agravo através da adopção de uma solução jurídica em oposição com jurisprudência anteriormente firmada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
Sendo possível entender que essa declaração pressupõe implicitamente a admissão da situação prevista no artigo 732.º - A, n.º 2, do CPC, esta não corresponde à que foi enunciada no critério normativo cuja fiscalização de constitucionalidade se solicitou no requerimento de interposição de recurso.
Como bem diz o Recorrente no seu último requerimento apresentado, “assumir que se está perante uma situação em que o tribunal irá adoptar solução jurídica em oposição com jurisprudência firmada é algo substancialmente diferente de verificar a possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência anteriormente firmada. No primeiro caso, estamos perante um critério de verificação essencialmente subjectivo, impossível de verificar externamente; no segundo, verificar a possibilidade de vencimento de solução jurídica em oposição com jurisprudência anterior é algo que se apresenta pela natureza das coisas como passível de ser objectivamente controlado”.
Tendo sido o Recorrente quem no seu requerimento de interposição de recurso, o qual define o seu objecto, pediu a fiscalização de constitucionalidade da interpretação do artigo 732.º A, n.º 2, do C.P.C., no sentido de “não impor ao Tribunal o dever de sugerir o julgamento ampliado do agravo numa situação em que é certo que o mesmo Tribunal irá adoptar solução jurídica em oposição com jurisprudência anteriormente firmada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”, esta não é coincidente com uma admissão implícita da situação prevista nesse artigo que é a mera “possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência anteriormente firmada”.
Não se verificando que a interpretação normativa questionada tenha sido assumida pela decisão recorrida explícita ou implicitamente como sua ratio decidendi, não pode ser conhecido o mérito do recurso interposto, ficando prejudicada a apreciação da arguição pela recorrida da falta de suscitação atempada da questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido.
Decisão
Pelo exposto, não se conhece do recurso interposto para o Tribunal Constitucional por A., S.A. do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, preferido nestes autos em 14 de Janeiro de 2010.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 3, do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.