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Processo n.º 13/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso com o seguinte fundamento:
[…]
Independentemente de outros possíveis fundamentos de inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade – nomeadamente o ter ele como objecto, não uma norma ou interpretação normativa, mas um acto administrativo, em si mesmo considerado (do que decorre a incompetência do Tribunal Constitucional para o seu conhecimento), compulsados os autos, verifica-se que em lugar algum das alegações de recurso para o Tribunal a quo, a recorrente suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa – em termos de, como dispõe o n.º 2 do artigo 72.º da LTC, este estar obrigado a dela conhecer.
Mesmo na hipótese de se poder considerar ter sido pela recorrente suscitada, no requerimento de fls. 1580-1584, uma questão de constitucionalidade normativa – questão sobre a qual o Tribunal Constitucional não tem aqui que tomar posição – esse seria já um momento processualmente tardio para efeitos de poder considerar-se preenchido o requisito de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de uma questão de constitucionalidade normativa.
Com efeito, tem sido entendimento deste Tribunal que os incidentes pós-decisórios não são já meios idóneos e atempados para suscitar – em vista de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional – a questão de inconstitucionalidade relativa a matéria sobre a qual o poder jurisdicional do juiz a quo se esgotou com a decisão e num momento em que já não lhe é possível tomar posição sobre a mesma, apenas se dispensando o recorrente do ónus de invocar a inconstitucionalidade “durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em que este não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (v. Ac. n.º 366/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o que, além de nem sequer ter sido alegado pela recorrente, manifestamente não se verifica no caso dos autos.
Tanto basta para que se não possa conhecer do recurso de constitucionalidade.
2. Notificada dessa decisão, A. veio requerer a sua reforma, o que, face ao teor do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, só pode entender-se como reclamação para a conferência.
Fê-lo com os seguintes fundamentos:
1.º
A douta decisão assentou em que a arguição da inconstitucionalidade foi feita «em momento processualmente tardio».
2.º
Ora, como resulta dos documentos que constituem os autos, no caso, a matéria de facto relativa à alegada inconstitucionalidade – a intervenção de um relator sem os requisitos legais para o exercício dessa função de juiz-relator – só passou a existir depois da interposição do recurso.
3.º
Era absolutamente impossível arguir uma nulidade que não existia, nem se previa que pudesse existir no momento da interposição do recurso da 1.ª instância. Trata-se de uma nulidade que só foi cometida em 2.ª instância, aplicando-se normas cuja interpretação viola a Constituição.
4.º
Existem, pois, nos autos elementos que, só por si, implicam necessariamente decisão diversa da proferida e que, por lapso manifesto, não foi tomada em consideração.
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu à reclamação dizendo, nomeadamente, o seguinte:
(…)
12º
Alega a ora reclamante, em abono do seu novo requerimento, designadamente o seguinte:
“Ora, como resulta dos documentos que constituem os autos, no caso, a matéria de facto relativa à alegada inconstitucionalidade – a intervenção de um relator sem os requisitos legais para o exercício dessa função de juiz-relator – só passou a existir depois da interposição do recurso.
Era absolutamente impossível arguir uma nulidade que não existia, nem se previa que pudesse existir no momento da interposição do recurso para da [sic] 1ª instância. Trata-se de uma nulidade que só foi cometida em 2ª instância, aplicando-se as normas cuja interpretação viola a Constituição.
Existem, pois, nos autos elementos que, só por si, implicam necessariamente decisão diversa da proferida e que, por lapso manifesto, não foi tomada em consideração.”
Será, então, assim, como a reclamante pretende-
13º
Crê-se que não!
Com efeito, como bem salientado pela Ilustre Conselheira Relatora, tem sido jurisprudência constante deste Tribunal Constitucional, entender que, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência, atribuída ao Tribunal Constitucional, cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa inconstitucional).
Não compete, a este Tribunal, apreciar questões de inconstitucionalidade ou violação de direitos fundamentais imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas (à semelhança do recurso de amparo espanhol ou da queixa constitucional alemã).
A distinção, entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa, daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que, na primeira hipótese, é discernível que o que se pretende confrontar com a Constituição é um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto, na segunda hipótese, está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
14º
Ora, basta atentar no requerimento de interposição de recurso (cfr. fls 1654 a 1658 dos autos) para se poder concluir, sem qualquer margem para dúvidas, que a ora reclamante não suscitou, como muito bem referido pela Ilustre Conselheira Relatora, nenhuma questão de constitucionalidade normativa.
Limitou-se, tão só, a fazer referência a diversas disposições legais que, no seu entender, violavam preceitos constitucionais. Mas não indicou como, nem porquê!
Nessa medida, falece um dos pressupostos essenciais do recurso de constitucionalidade perante este Tribunal, o que, irremediavelmente, compromete o recurso apresentado.
15º
Por outro lado, quando interposto ao abrigo do disposto na alínea b), do nº 1, do artigo 70º, os recursos de constitucionalidade têm de respeitar um conjunto de requisitos específicos, sem os quais deles se não poderá tomar conhecimento.
Assim, é necessária a verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos:
- a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo»,
-«de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e
- a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
16º
Ora, também quanto a este aspecto da sua argumentação, a interessada não tem qualquer razão.
Basta, com efeito, compulsar o seu requerimento, dirigido ao Tribunal da Relação de Guimarães, de 10 de Abril de 2009 (cfr. fls. 1579 a 1584 dos autos), substancialmente idêntico ao seu requerimento de recurso para este Tribunal Constitucional (cfr. fls. 1654 a 1658 dos autos), para perceber que se trata de um incidente pós-decisório que não constitui, normalmente, meio idóneo e atempado para suscitar – perante este Tribunal Constitucional – a questão de inconstitucionalidade relativa a uma matéria sobre a qual o poder jurisdicional do juiz a quo já se esgotou.
17º
É certo que, no presente caso, a reclamante invoca que só depois de proferido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19 de Janeiro de 2009, se deu conta da nulidade existente.
Pelo que só então estava em condições de reagir processualmente.
No entanto, no presente caso, não há nenhuma nulidade a arguir, uma vez que a argumentação de fundo da interessada, sobre a forma de recrutamento do Juiz-Relator da decisão, não faz qualquer sentido.
Isso mesmo foi destacado pelo magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães (cfr. fls. 1622 e 1623 dos autos).
E esse entendimento foi expressamente sufragado pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no seu Acórdão de 2 de Novembro de 2009 /(cfr. fls. 1637 a 1646 dos autos), em que o mesmo tribunal superior concluiu o seguinte (cfr. fls. 1646 dos autos):
“A Relatora da decisão em causa era, na altura, Juíza de Direito destacada nesta Relação (actualmente Juíza Desembargadora e colocada nesta mesma Relação) e a sua decisão e participação não enferma de qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade”.
18º
Deste modo, mesmo que se pudesse entender que tivesse havido suscitação da questão de (in)constitucionalidade em momento adequado – o que se afigura mais do que duvidoso, pelas razões atrás apontadas – faleceria, sempre, o argumento segundo o qual teria havida uma nulidade na prolação do Acórdão impugnado.
19º
Deste modo, em face do exposto, crê-se que a presente reclamação se afigura como manifestamente improcedente.
O relator proferiu então o seguinte despacho:
Perante a eventualidade de o Tribunal Constitucional não deferir a reclamação apresentada com os fundamentos seguintes: (i) não terem sido aplicadas, como ratio decidendi pelo juiz a quo, as normas cuja inconstitucionalidade se pede que o Tribunal aprecie; (ii) ser sempre inútil qualquer juízo que o Tribunal Constitucional emitisse sobre tais normas, por não poder ter o mesmo qualquer efeito sobre o acto de nomeação do magistrado em causa (artigo 80.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional), notifique-se a reclamante para que, querendo, se pronuncie, no prazo de dez dias, sobre as referidas questões.
A reclamante não veio responder ao despacho proferido pelo relator.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
4. Entende a reclamante que, por só se verificar após a intervenção do juiz-relator, a questão de constitucionalidade jamais poderia ter sido suscitada nas alegações de recurso para o Tribunal a quo, devendo, perante a suscitação da mesma no requerimento de arguição de nulidade do acórdão proferido, considerar-se satisfeito o requisito de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de uma questão de constitucionalidade normativa, devendo, consequentemente, o Tribunal Constitucional conhecer do presente recurso.
Embora se deva reconhecer razão à reclamante quanto à improcedência do fundamento oferecido na decisão sumária reclamada para o não conhecimento do recurso – o da falta de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de uma questão de constitucionalidade normativa – entende-se não se poder conhecer do recurso de constitucionalidade com base em um outro fundamento, qual seja o não integrarem as normas cuja constitucionalidade pretende ver apreciada a ratio decidendi da decisão recorrida.
Com efeito, a aplicação de normas que possam ter estado na base da nomeação do juiz-relator do processo não teve qualquer relevância para a resolução da questão jurídica controvertida nos autos, não integrando, portanto, a ratio decidendi da decisão.
Ora, em sede de fiscalização concreta, tratando-se de formular um juízo que tem por objecto uma norma tal como foi aplicada num caso concreto, é um pressuposto de conhecimento do recurso de constitucionalidade que a decisão que o Tribunal Constitucional venha a proferir sobre a questão de constitucionalidade suscitada seja susceptível de produzir algum efeito sobre a decisão de que se recorre (nesse sentido, entre muitos outros, v. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 169/92, 463/94, 366/96 e 687/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
O Tribunal Constitucional apenas haveria de conhecer de recurso que tivesse por objecto a questão de constitucionalidade normativa suscitada de decisão que tivesse por objecto a eventual ilegalidade do acto administrativo de nomeação, pois só então, incidindo sobre a questão jurídica controvertida nesse processo, seria a decisão do Tribunal Constitucional sobre a questão de constitucionalidade suscitada susceptível de produzir algum efeito útil sobre a decisão (sendo que, nessa hipótese, objecto do recurso haveria de ser sempre uma questão de constitucionalidade normativa e jamais o acto administrativo de nomeação do juiz em questão, em si mesmo considerado).
Assim, confirma-se a decisão de não conhecimento do recurso.
III – Decisão
5. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixadas em 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 22 de Setembro de 2010. - Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.