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Proc. nº 583/92
2ª Secção Rel.: Consº Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. A., arguido no processo a que, em recurso para o Supremo Tribunal da Justiça, foi atribuído o nº 40411 (3ª Secção), apresentou, em 12 de Agosto de 1992, naquele Supremo Tribunal, petição de habeas corpus. O arguido - e ora recorrente -, que se encontra preso preventivamente desde 2 de Fevereiro de 1988, alegou, ao abrigo do disposto na alínea c) do nº 2 do Código de Processo Penal, a ilegalidade da prisão, por esta se manter para além dos prazos legalmente prescritos.
Na verdade, estará em causa, no caso vertente, um dos tipos de crimes referidos no artigo 209º do Código de Processo Penal, visto que a alínea d) do nº 2 deste preceito contempla o tráfico ilícito de droga. Assim, revelando o correspondente procedimento especial complexidade, o artigo 215º, nºs 1, alínea d), 3 e 4, do mesmo Código determina que a prisão preventiva se extingue quando tiverem decorrido, desde o seu início, quatro anos sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado, acrescendo a este prazo seis meses se tiver sido interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
Ora, o recorrente alegou, na sua petição de habeas corpus, que não interpôs recurso para o Tribunal Constitucional e sustentou que não pode ser prejudicado pelo facto de algum co-arguido o ter feito. O recorrente concluiu, por conseguinte, que quanto a ele vale o prazo máximo de 4 anos de prisão preventiva (sem o acréscimo de 6 meses), que se esgotou em 8 de Fevereiro de 1992.
Por outro lado, o recorrente salientou que o acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça foi proferido em 3 de Junho de
1992, mas ainda não transitara em julgado à data da apresentação da sua petição, por terem sido arguidas nulidades para cuja decisão foi designado o dia 16 de Setembro de 1992.
2. Por acórdão de 19 de Agosto de 1992, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o pedido de habeas corpus, com dois fundamentos:
a) Tendo, em 3 de Junho de 1992, o Supremo Tribunal de Justiça condenado o ora recorrente em 12 anos de prisão (e em multa) pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes qualificado, previsto e punível nos termos das disposições conjugadas dos artigos 23º, nº 1, e 27º, nº 1, alíneas c) e g), do Decreto-Lei nº 430/83, de 13 de Dezembro, '... o arguido deixa de estar na situação de prisão preventiva, passando a cumprir pena, independentemente do respectivo trânsito em julgado (quer por ter havido, entretanto, pedido de aclaração, arguição de nulidade, quer por ter sido interposto recurso para o Tribunal Constitucional)';
b) Tendo, por despacho do Conselheiro relator do já referido Processo nº 40 411, sido indeferido o pedido de soltura do arguido (em 8 de Agosto de 1992), este não reclamou desse despacho para a conferência - e a providência de habeas corpus só pode ser concedida quando não existir outra possibilidade de reagir contra a prisão.
3. É deste acórdão que vem o presente recurso para o Tribunal Constitucional. O recorrente pretende que seja apreciada a questão da inconstitucionalidade dos artigos 214º, nº 1, alínea e), e 215º, nº 1, do Código de Processo Penal, '... entendidos no sentido de que após a prolação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça o recorrente se encontra em cumprimento de pena independentemente do trânsito em julgado - e não em prisão preventiva', por alegada violação dos artigos 16º, 30º, 31º, 32º, 115º, nº 5, e 205º, nº 2, da Constituição. O recorrente indica o pedido de habeas corpus como peça processual em que teria suscitado tal questão.
Admitido o recurso, o recorrente apresentou no Tribunal Constitucional as suas alegações, assim concluídas:
'a) O entendimento do Supremo Tribunal de Justiça de que após a prolação do acórdão condenatório o arguido se encontra em cumprimento de pena, independentemente do trânsito em julgado, viola o disposto nos artigos
215º, nºs 1 - 4, e 214º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Penal e ainda o disposto nos artigos 32º, 30º, nº 1, e 115º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa;
b) Os artigos 215º, nº 1, e 214º, nº 1, alínea e), ambos do Código de Processo Penal são inconstitucionais quando entendidos no sentido de que após a prolação do acórdão condenatório no Supremo Tribunal de Justiça o arguido se encontra em cumprimento de pena independentemente do trânsito em julgado e não em prisão preventiva;
c) Tais normativos - artigos 214º, nº 1, alínea e), e
215º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal bem como a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que após a prolação do acórdão condenatório o arguido - se encontra em cumprimento de pena independentemente do trânsito em julgado violam os artigos 28º, nº 4, 30º, nº 1, e 205º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.'
4. Por seu turno, o Procurador-Geral Adjunto em exercício no Tribunal Constitucional apresentou contra-alegações em que concluiu que não se deve conhecer o presente recurso, pelas seguintes razões:
'a) Por o recorrente, durante o processo, não ter suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, antes imputando directamente o vício de inconstitucionalidade a uma corrente jurisprudencial, e
b) Por falta de interesse processual, pois, mesmo que fosse julgado inconstitucional o entendimento jurisprudencial impugnado, o indeferimento impugnado, o indeferimento do habeas corpus manter-se-ia com base no segundo fundamento invocado na deliberação impugnada: existência de outros meios de reacção contra a prisão reputada ilegal.'
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II Fundamentação
5. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (embora o recorrente não indique esta norma), visto que está em causa a aplicação, pelo tribunal a quo, de normas cuja inconstitucionalidade terá sido suscitada. Assim, constitui requisito de admissibilidade do recurso ter o recorrente suscitado, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade de uma norma, que, não obstante, veio a ser aplicada na decisão recorrida.
Porém, no seu requerimento de habeas corpus, o ora recorrente não suscitou a questão de inconstitucionalidade de qualquer norma ou de qualquer interpretação normativa. O recorrente invocou apenas, directamente, a ilegalidade e a inconstitucionalidade de uma orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça (por violação dos artigos 215º do Código de Processo Penal e 30º, 31º e 32º da Constituição).
Ora, como a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente, só as normas jurídicas - e não as decisões ou orientações jurisprudenciais em si mesmas - são objecto do sistema de fiscalização de constitucionalidade (cfr., entre muitos outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 203/92 e 218/93, desta secção, inéditos).
Por conseguinte, não se deve conhecer o presente recurso, por não ter sido suscitada, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade de qualquer norma.
III Decisão
6. Ante o exposto, decide-se não conhecer o presente recurso.
Lisboa, 19 de Janeiro de 1994
José de Sousa e Brito Messias Bento Bravo Serra Fernando Alves Correia José Manuel Cardoso da Costa