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Proc. 236/89
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A., recorrente no presente processo, propôs contra B., ora recorrido, uma acção declarativa com processo sumário, ao abrigo do disposto no artigo 16º do Decreto Regional nº 11/77/A, de 20 de Maio, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 8º do Decreto Regional nº 1/82/A, de 28 de Janeiro, no Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada, pedindo que lhe fosse reconhecido o direito de continuar a explorar, como rendeiro, um prédio rústico de que o segundo é proprietário.
A acção foi julgada improcedente por sentença de 14 de Janeiro de 1988. Tal sentença fundamentou-se na ausência de prova dos factos que o autor alegara para se opor à denúncia do contrato de arrendamento.
2. O autor interpôs recurso de apelação desta sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa. Nas respectivas alegações, invocou a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 15º, nº 2, e 16º do Decreto Regional nº 11/77/A, com a redacção que lhes foi dada pelos artigos 6º e
8º, respectivamente, do Decreto Regional nº 1/82/A, sustentando que elas violariam o disposto nos artigos 13º, nº 2, e 277º da Constituição.
O recurso foi julgado improcedente e a sentença recorrida foi confirmada por acórdão de 16 de Maio de 1989. No que respeita à questão de inconstitucionalidade suscitada, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu, em síntese, que o conteúdo das normas em crise se justificaria por especificidades regionais (evidenciadas no preâmbulo do Decreto Regional nº
11/77/A). Observou, por outra parte, que o autor não cumprira a exigência contida no nº 2 do artigo 18º da Lei nº 76/77, de 29 de Setembro, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei nº 76/79, de 2 de Dezembro, segundo a qual deveria ter comunicado ao senhorio, por escrito e no prazo de trinta dias a contar da denúncia, que a cessação do arrendamento poria em risco a subsistência económica de si próprio e do seu agregado familiar; desta sorte, o autor não poderia beneficiar da procedência da acção, por não se haver prevalecido do meio de oposição (extra-judicial) à denúncia do arrendamento previsto na legislação nacional.
3. É deste acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que vem o presente recurso.
Nas suas alegações, o recorrente reafirmou a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 15º, nº 2, e 16º do Decreto Regional nº 11/77/A, com a redacção que lhes foi dada pelos artigos 6º e
8º, respectivamente, do Decreto Regional nº 1/82/A, por entender que elas '... são formal e materialmente inconstitucionais ... por violadoras do consagrado nos artigos 13º, nº 2, 277º e 229º da Constituição.'
Nas contra-alegações, o recorrido contestou este entendimento, manifestando a sua concordância com a fundamentação do acórdão recorrido. Por outro lado, pediu que o recorrente fosse condenado por litigância de má fé (por não poder beneficiar, em qualquer caso, da procedência da acção).
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II Fundamentação
A Delimitação do objecto do recurso
4. O recorrente arguiu a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 15º, nº 2, e 16º do Decreto Regional nº 11/77/A, com a redacção que lhes foi dada pelos artigos 6º e 8º, respectivamente, do Decreto Regional nº 1/82/A, sustentando que elas violam o disposto nos artigos
13º, nº 2, 277º e 229º da Constituição. O recorrente pretende que as citadas normas legais foram aplicadas pelo tribunal a quo, interpondo o recurso ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição e na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro.
Todavia, a norma constante do nº 2 do artigo 15º do citado decreto regional não foi efectivamente aplicada pelo tribunal recorrido, como resulta, claramente, do seu teor:
Artigo 15º
(Denúncia)
1 - ...
2 - A certidão da notificação, ou o duplicado autenticado da comunicação escrita referida na alínea b) do número anterior, é título executivo bastante para a obtenção do mandato de despejo [o legislador pretende referir-se, obviamente, ao mandado de despejo], salvo o disposto no artigo 16º.
O preceito atribui, pois, o valor de título executivo à comunicação de denúncia feita pelo senhorio em certos termos (os da alínea b) do nº 1 do artigo 15º). Ora, a aplicação - ou a recusa de aplicação - desta norma só é possível no âmbito de acção executiva intentada pelo senhorio; já não o é no decurso de acção declarativa de impugnação da denúncia de arrendamento interposta pelo rendeiro.
5. Por seu turno, o artigo 16º do Decreto Regional nº
11/77/A, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 8º do Decreto Regional nº
1/82/A, preceitua:
Artigo 16º
(Oposição à denúncia)
1. - O rendeiro poderá obstar à efectivação da denúncia do contrato pelo senhorio, mediante decisão judicial, nos seguintes casos:
a) Quando a denúncia não satisfaça as condições referidas no nº 1 do artigo anterior;
b) Quando inviabilize a exploração por insuficiência da dimensão;
c) Quando ponha em risco a situação económica do rendeiro e do seu agregado familiar;
d) Quando a pessoa que se destinar a explorar directamente o prédio não vá exercer unicamente a profissão de agricultor.
2. - O rendeiro só pode usar da faculdade referida no número anterior se exercer, em termos de profissão efectiva ou exclusiva, a actividade de agricultor.
3. - A oposição à denúncia deverá ser deduzida no prazo de 180 dias, a contar de
1 de Novembro do ano em que a denúncia tiver sido feita.
4. - A oposição à denúncia prevista no nº 1 não produzirá efeitos caso ponha em risco a subsistência económica do senhorio ou do seu agregado familiar.'.
Estas normas foram efectivamente aplicadas pelo tribunal a quo e constituem o objecto do presente recurso.
B O interesse no conhecimento do objecto do recurso
6. O recorrente concluiu as suas alegações perante este tribunal pedindo a 'declaração de inconstitucionalidade' das normas em crise, a revogação da decisão recorrida e a renovação do contrato de arrendamento.
O primeiro equívoco é patenteado pela referência à declaração de inconstitucionalidade: em sede de fiscalização concreta, está em causa o julgamento da inconstitucionalidade de normas e não a declaração da sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral (artigos 280º e 281º da Constituição); também por isso, não tem sentido sustentar - como faz o recorrido - que as normas em crise não podem ser apreciadas por já haverem sido revogadas.
Por outro lado, não se vê como um eventual julgamento de inconstitucionalidade poderia implicar, como pretende o recorrente, a revogação da decisão recorrida e a renovação do contrato de arrendamento. Com efeito, o recorrente arguiu a inconstitucionalidade das normas ao abrigo das quais impugnou a denúncia do contrato; a ser procedente a sua arguição, o tribunal a quo não deveria sequer ter conhecido do mérito da causa, estando-lhe vedada a declaração de renovação do contrato de arrendamento.
Na verdade, o recorrente pretende, nas suas alegações, que as normas sub judicio são inconstitucionais na medida em que obrigam o '... rendeiro, em caso de denúncia, a ter de desencadear todo o mecanismo judicial... em manifesta oposição ao regime vigente então para o Continente'. Significa isto que, no entender do recorrente, a sua acção não deveria ter sido admitida, por serem inconstitucionais as normas ao abrigo das quais foi intentada. Segundo este entendimento, deveria ser o senhorio a propor uma acção de despejo, com vista à denúncia do contrato de arrendamento, ao abrigo do disposto no artigo 19º da Lei nº 76/77, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei nº 76/79:
Artigo 19º
(Despejo)
Opondo-se o arrendatário ao despejo nos termos do artigo 18º, o senhorio pode obtê-lo se, no prazo de trinta dias após a recepção da declaração do arrendatário, instaurar acção:
a) Em que se não provem os riscos referidos no artigo 18º;
b) Em que o senhorio alegue que pretende a terra para o efeito de a explorar directamente e que seja judicialmente reconhecido que tem uma situação inferior
à do arrendatário e seu agregado familiar ou que a soma de todos os rendimentos não é superior a uma vez e meia o salário mínimo nacional.
7. Porém, a acção de despejo prevista na norma transcrita pressupõe que o arrendatário se haja oposto extra-judicialmente à denúncia do contrato, nos termos do artigo 18º do mesmo diploma legal:
Artigo 18º
(Oposição à denúncia do senhorio)
1. - O arrendatário poderá obstar ao despejo no termo do prazo do arrendamento ou sua renovação desde que ele ponha em risco a sua subsistência económica e do seu agregado familiar ou desde que, tendo habitação no prédio arrendado corra sério risco de não conseguir outra habitação.
2. - O arrendatário que se considere numa das condições do nº 1 deverá comunicá-lo, por escrito, ao senhorio no prazo de trinta dias a partir da data em que for feita a comunicação prevista no artigo 17º.
3. - ...
Ora, no caso em apreço, o arrendatário não se opôs à denúncia, mediante a comunicação efectuada no prazo de trinta dias, a partir da data da comunicação da denúncia. Por isso, o Tribunal da Relação de Lisboa concluiu que o ora recorrente não poderia beneficiar da procedência da acção.
8. Todavia, não se pode inferir do exposto que não há interesse processual no conhecimento do objecto do recurso.
É que a oposição extra-judicial à denúncia do contrato de arrendamento pressupõe que a própria denúncia haja sido feita nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 17º da Lei nº 76/77, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei nº 76/79:
Artigo 17º
1. - Os contratos de arrendamento a que se refere este diploma consideram-se sucessiva e automaticamente renovados se não forem denunciados nos termos seguintes:
a) - ...
b) - O senhorio deverá avisar o arrendatário, também mediante comunicação escrita, com a antecedência mínima de dezoito meses relativamente ao termo do prazo ou da sua renovação; aquela antecedência mínima será reduzida a doze meses no caso de arrendamento ao agricultor autónomo.
2. - ...
Ora, no caso sub judicio não há elementos que permitam concluir se a antecedência devida era de doze ou dezoito meses, por não ter sido provado se o rendeiro era ou não agricultor autónomo. Certo é, apenas, que a denúncia foi feita com mais de doze meses de antecedência (foi efectuada em 16 de Outubro de 1986 e o contrato atingiu o termo do seu prazo em 1 de Novembro de 1987). Ignora-se se tal denúncia deveria ter observado a antecedência mínima de dezoito meses.
Assim, mesmo que se pretenda que o ora recorrente se deveria ter comportado como se as normas cuja inconstitucionalidade arguiu não vigorassem na ordem jurídica antes do julgamento da sua inconstitucionalidade, não se pode concluir que sobre ele recaía o ónus da oposição extra-judicial à denúncia do arrendamento, nos termos da legislação nacional: é que, como se viu, não se sabe se a própria denúncia foi feita nos termos desta legislação.
C A questão de inconstitucionalidade suscitada
9. No presente processo foi suscitada, como se viu, a questão da inconstitucionalidade das normas contidas no artigo 16º do Decreto Regional nº 11/77/A, de 20 de Maio, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo
8º do Decreto Regional nº 1/82/A, de 28 de Janeiro.
Por conseguinte, não importará, por ora, verificar se as referidas normas estão afectadas de ilegalidade, uma vez que lhes foi imputado vício mais grave. Só se este improceder terá sentido, então, analisar a questão da eventual ilegalidade daquelas normas (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 141/90, D.R., II Série, de 7 de Setembro de 1990).
10. Não restam dúvidas de que os artigos 18º e 19º da Lei nº 76/77, com a redacção dada pela Lei nº 76/79, consagravam, à data da denúncia do contrato de arrendamento a que se referem os autos, um regime de denúncia do arrendamento rural diverso daquele que as normas em crise introduziram na Região Autónoma dos Açores.
No Continente, o arrendatário podia obstar extra-judicialmente à denúncia do contrato de arrendamento pelo senhorio
(artigo 18º, nº 1, da Lei nº 76/77) e caberia então ao senhorio instaurar uma acção tendente a obter o despejo (artigo 19º da mesma Lei). Pelo contrário, na Região Autónoma dos Açores, a notificação ou comunicação escrita do despejo pelo senhorio tinha o valor de título executivo (artigo 15º, nº 2, do Decreto Regional nº 11/77/A) e o rendeiro só podia opor-se judicialmente à denúncia
(artigo 16º do mesmo Decreto Regional).
11. A propósito do arrendamento urbano, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 154/88, 257/88, 139/90 (D.R., II Série, de 17 de Setembro de 1988, 11 de Fevereiro de 1989 e 7 de Setembro de 1990, respectivamente), o regime de cessação do contrato de arrendamento, quer se trate de resolução, de denúncia ou de caducidade, integra o regime geral do arrendamento.
Ora, o regime geral do arrendamento rural e urbano é da competência exclusiva da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, por força do disposto na alínea h) do nº 1 do artigo 168º da Constituição
(versão da 1ª Revisão Constitucional, inalterada pela 2ª Revisão Constitucional). E esta competência refere-se, evidentemente, a todo o território nacional (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 257/88, cit.), sem prejuízo da existência de regimes especiais, em função das particularidades regionais.
12. Poderá, desde logo, dizer-se que as normas relativas
à forma da denúncia do arrendamento rural ainda integram o regime geral deste. E, se assim se não entender, poderá, contudo, sustentar-se que, tratando-se de matéria de processo civil, sempre a criação das respectivas normas relevará da competência dos órgãos de soberania. De todo o modo, no caso vertente, não se vislumbrando quaisquer especialidades de relevo que justifiquem um regime específico de denúncia do arrendamento rural na Região Autónoma dos Açores, sempre está afastada a intervenção do legislador regional.
O relatório do Decreto Regional nº 11/77/A, de 20 de Maio, adianta que o regime consagrado em tal diploma legal '... procura assim atender às características inegavelmente específicas da Região quanto às relações entre proprietários da pouca terra existente e aqueles que a exploram, ao mesmo tempo que atenua a imperatividade de outros textos legais, claramente elaborados com o pensamento em diferentes partes de Portugal, com características humanas e naturais absolutamente distintas.'
Esta invocação de especificidades regionais não é, porém, convincente: o que está em causa, como se viu, é a atribuição do ónus da impugnação judicial do despejo ao rendeiro; não se indicam, nem se vislumbram relações específicas entre senhorios e rendeiros que justifiquem esse especial regime.
13. A circunstância de o Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, que revogou as Leis nºs 76/77 e 76/79, ter 'mantido em vigor' a legislação vigente na Região Autónoma dos Açores (artigo 38º, nº 2) não documenta, por seu turno, que existia interesse específico regional à data da entrada em vigor do Decreto Regional nº 11/77/A.
Aliás, o Decreto-Lei nº 385/88 veio consagrar, para o restante território nacional, nos seus artigos 18º e 19º, um regime de denúncia do contrato de arrendamento rural semelhante ao que fora introduzido por aquele Decreto na Região Autónoma dos Açores. Na perspectiva do legislador nacional, a inversão do ónus da impugnação judicial da denúncia do contrato justificou-se, assim, independentemente de especificidades regionais.
14. Desta sorte, a situação locativa aqui em causa não pode ter-se como matéria de interesse específico regional por não respeitar exclusivamente às regiões autónomas, nem aí merecer 'especial tratamento', por assumir uma 'peculiar configuração' (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 141/90, cit.).
Por conseguinte, as normas sub iudicio violaram também os artigos 115º, nº 3, e 229º, alínea a), da Constituição, na versão resultante da 1ª Revisão Constitucional [normas que constam, igualmente, da versão actual - artigos 115º, nº 3, e 229º, nº 1, alínea a)].
III Decisão
15. Ante o exposto, decide-se julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 16º do Decreto Regional nº 11/77/A, de 20 de Maio, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 8º do Decreto Regional nº
1/82/A, de 28 de Janeiro e, por conseguinte, concede-se provimento ao recurso e revoga-se a decisão recorrida, que deve ser reformulada em consonância com o agora decidido sobre a questão de inconstitucionalidade suscitada.
Lisboa, 26 de Janeiro de 1994
José de Sousa e Brito Bravo Serra Fernando Alves Correia Messias Bento Luís Nunes de Almeida