Imprimir acórdão
Processo n.º 129/2010
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, da sentença do Tribunal Judicial de Peniche, de 19 de Janeiro de 2010, proferida nos autos de processo comum n.º 295/06.6TAPNI, que, com fundamento na inconstitucionalidade do artigo 5.º, alínea l) do Decreto-Lei n.º 237/2005, de 30 de Dezembro, em vigor à data da fiscalização que deu origem aos presentes autos, e dos artigos 3.º, n.º 2, alínea h), e 15.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, de 30 de Julho, por violação do artigo 164.º, alínea u), da Constituição da República Portuguesa, absolveu os arguidos A. e B., Lda., da prática das infracções de que vinham acusados.
2. A sentença recorrida, na parte que importa considerar, é do seguinte teor:
«(…)
A ASAE foi criada pelo DL 237/2005, de 30 de Dezembro, que extinguiu a IGAE e revogou o DL 46/2004, de 3 de Março – cfr. art.º 51.º, n.º 2, al. a) e 53.º, al. e).
Era este (DL 237/2005) o diploma em vigor à data da acção desencadeada pela ASAE que deu origem a estes autos (25/10/2006).
De entre as inúmeras atribuições, o art.º 5.º al. l), atribuiu à ASAE a promoção de acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de infracções contra a qualidade, genuinidade, composição, aditivos alimentares e outras substâncias e rotulagem dos géneros alimentícios e dos alimentos para animais.
Posteriormente, o DL 274/2007, de 30 de Julho, embora revogando o DL 237/2005, manteve, para o que ora importa, a atribuição da ASAE acima transcrita, agora no seu art.º 3º, n.º 2, al. h).
Não há dúvida que a ASAE é um organismo novo, distinto daqueles que se extinguiram com a sua criação – o legislador di-lo, expressamente, e por mais de uma vez, não só no preâmbulo do diploma de 2005, mas também no seu normativo: “Opção pela criação de um novo organismo”; art.º 1.º é criada a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, doravante designada por ASAE.
Por força da alínea u) do art.º 164.° da Constituição da República Portuguesa é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre o regime das forças de segurança.
Esta norma foi introduzida na revisão constitucional de 1997 – o que se assinala porque a IGAE foi criada por diploma anterior (o DL 14/93, de 18.1), sucedendo à Direcção-Geral de Fiscalização Económica prevista no art.º 51.º do DL 28/84 – cfr. art.º 47.º do DL 14/93.
A questão é, pois, saber se à luz das atribuições conferidas à ASAE no art.º 5.º, al. l) esta deverá ser entendida como força de segurança, sabendo-se que, expressamente, apenas com o diploma de 2007 ficou consagrado na letra da lei (art.º 15.º) que a ASAE detém poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal.
Conforme tem sido entendimento do Tribunal Constitucional o conceito constitucional de “forças de segurança” não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla que abranja todos os corpos organizados que tenham por missão, principal ou secundária, garantir a segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos – acórdão n.º 304/2008, de 30/5/2008, www.tribunalconstitucional.pt.
No mesmo aresto, a propósito da norma objecto da decisão, pode ler-se ora, competindo à PJ, (...) além do mais, uma actividade de prevenção e detecção criminal, não pode esta polícia deixar de estar incluída no conceito constitucional de “forças de segurança”.
Retira-se daqui que, no entendimento do Tribunal Constitucional, a prossecução da actividade de prevenção e detecção criminal é própria das forças de segurança – é o que sucede com a ASAE nos termos do art.º 5.º, al. l), em vigor no momento da prática dos factos objecto dos presentes autos: acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de infracções contra a qualidade, genuinidade, composição, aditivos alimentares e outras substâncias e rotulagem dos géneros alimentícios e dos alimentos para animais. Entre estas infracções estão as, criminalmente, previstas e punidas no art.º 24.º do DL 28/84.
Entende-se, pois, que as atribuições conferidas à ASAE a reconduzem a uma força de segurança.
A reserva absoluta da Assembleia da República não abrange toda a regulamentação das forças de segurança, mas apenas as grandes linhas da regulação, a definição dos serviços, organizações ou forças que devem compor as forças de segurança, finalidades e os princípios básicos fundamentais relativos, verbi gratia, à definição do seu sistema global, complexo de poderes, funções, competências e atribuições de cada serviço, força ou organização, inter-relacionação, projecção funcional interna e externa e, ainda, os princípios básicos relativos à interferência das forças de segurança com os direitos fundamentais dos cidadãos.
Está excluído da reserva absoluta a organização interna, suportes logísticos, financeiro e humano, respectivas gestão e corte de direitos e deveres funcionais dos funcionários que as compõem.
Em suma, o “regime das forças de segurança” referido na alínea u) do art.º 164.° deve, pois, ser entendido na acepção de regime geral das forças de segurança, o qual contemplará os fins e os princípios que devem nortear as forças de segurança, a previsão dos corpos que as devem compor, o modo de inter-relacionação entre eles, as grandes linhas de regulação destes corpos e os princípios básicos relativos à interferência das forças de segurança com os direitos fundamentais dos cidadãos – cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 23/2002, de 10/1/2002 e n.º 304/2008, www.tribunalconstitucional.pt.
Como escrevem Jorge Miranda e Rui Medeiros, «à face dos grandes princípios político-constitucionais, deve adoptar-se a interpretação que seja mais adequada ao primado do Parlamento; deve preferir-se, senão uma interpretação extensiva, pelo menos uma interpretação não restritiva; e, na dúvida, deve preferir-se a reserva absoluta e não a relativa, a reserva total, e não a parcial.»
Por outro lado, prosseguem, «a reserva de competência é tanto para a feitura de normas legislativas como para a sua entrada em vigor, interpretação, modificação, suspensão ou revogação. E é tanto para a feitura de novas normas quanto para a decretação, em novas leis, de normas preexistentes» – cfr. “Constituição Portuguesa Anotada”, tomo II, Coimbra Editora, 2006, pp. 517 e 518.
Ponderando o recorte acabado de fazer da reserva absoluta da Assembleia da República com as atribuições da ASAE em análise, é inevitável concluir que a criação de um novo organismo dotado de um vasto leque de atribuições, no qual se inclui o desenvolvimento de acções preventivas e repressivas que contendem, por natureza, com direitos fundamentais dos cidadãos está na exclusiva competência da Assembleia da República.
A criação de organismos/entidades com competência de fiscalização, prevenção e repressão em matéria de infracções criminais (designadamente no âmbito da previsão do art.º 24.º do DL 28/84, objecto destes autos) são da reserva absoluta da Assembleia da República.
Deste modo, a norma do art.º 5.º, al. 1), em vigor à data dos factos e, actualmente, do art.º 3º, n.º 2, al. h) do DL 274/2007, viola a reserva absoluta da Assembleia da República estando, por isso, ferida de inconstitucionalidade, por violação do art.º 164.º, al. u) da Constituição da República Portuguesa. E, por maioria de razão, o artº 15.º do diploma vigente.
Assim sendo, não dispunha a ASAE de competência para proceder à acção inspectiva que deu origem ao auto de notícia de fls. 60-72, realizar apreensões (fls. 2-3), proceder à constituição de arguido (fls. 12 e 13) e demais diligências que constam dos autos, inquinando, deste modo, o procedimento criminal contra os arguidos.
(…)».
3. Notificado para alegar o recorrente resumiu a sua argumentação nas seguintes conclusões:
“1. Não devendo a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) ser considerada, para efeitos constitucionais, “força de segurança”, não está incluído na reserva de competência absoluta da Assembleia da República, legislar nessa matéria (artigo 164.º, alínea u) da Constituição).
2. A reserva de competência absoluta da Assembleia apenas abrange o regime geral das forças de segurança, não estando aí incluída a matéria de organização e competência de cada força de segurança.
3. Deste modo, mesmo que se entenda que a ASAE é uma força de segurança, o Governo, ao editar os Decretos-Leis n.ºs 237/2005, de 30 de Dezembro, e 274/2007, de 30 de Julho, apenas se limitou a transferir para a ASAE as competências que cabiam à IGAE e a definir a sua organização e competência específica, pelo que não invadiu a área de competência legislativa que aquele preceito Constitucional atribui à Assembleia.
4. Deste modo, as normas do artigo 5.º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 237/2005 e dos artigos 3.º, n.º 2, alínea h), e 15.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, não são organicamente inconstitucionais por violação do artigo 164.°, alínea u), da Constituição.
5. Pelo menos desde 1993 (artigo 31.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 14/93, de 18 de Janeiro e até 2004 (artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 46/2004, de 3 de Março) que os Inspectores da Inspecção-Geral das Actividades Económicas (IGAE) eram expressamente considerados autoridade e órgão de polícia criminal.
6. O Decreto-Lei n.º 237/2005, de 30 de Dezembro (que revogou o Decreto-lei n.º 46/2004), criou a ASAE e consubstanciou a concentração num único organismo de diversos serviços de competência e fiscalização, sendo um deles a IGAE, que foi extinta, tendo sido transferidas, sem qualquer alteração, para a ASAE, todas as competências anteriormente cometidas à IGAE.
7. Assim sendo, seja por indicação expressa da lei, ou por transferência de competências, primeiro os inspectores da IGAE e posteriormente os da ASAE, sempre detiveram, ininterruptamente, a qualidade de autoridade e órgão de polícia criminal.
8. O artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, de 30 de Julho, enquanto confere poder de órgão e autoridade de polícia criminal à ASAE, não tem, pois, qualquer carácter inovatório, não sendo, por isso, organicamente inconstitucional, uma vez que não viola qualquer preceito da Constituição, designadamente o seu artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e c).
9. Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
4. Os recorridos contra-alegaram, tendo formulado as seguintes conclusões:
“a) O Conceito constitucional de “forças de segurança” não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla, que abranja todos os corpos organizados, que tenham por missão, principal ou secundária, garantir à segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos “.
b) O que está em causa, agora, é a criação “ex novo” de uma força que, tal como é definida no diploma que a criou, tem funções de força policial e de segurança, e não o que se legisla a propósito da sua organização interna, ou melhor, da “distribuição interna de competências”. Não se questiona a forma como a ASAE foi organizada; o que se questiona é aquele núcleo normativo que, a coberto do seu “Estatuto”, lhe dá vida, enquanto força de segurança
c) E não se diga que a ASAE não é força de segurança porque não consta do artigo 25.º da Lei de Segurança Interna. Com efeito, o n.º 1 desse artigo diz que as forças e os serviços de segurança são organismos públicos, estão exclusivamente ao serviço do povo português, são rigorosamente apartidárias e concorrem para garantir a segurança interna. É este preceito, e não outro que define o conceito de forças ou serviços de segurança.
d) Ao contrário do que alega o M.P., o argumento da constitucionalização do direito infraconstitucional, deve merecer acolhimento. Segundo o M.P., tal argumento não colhe porque é entendimento que parte de interpretação que o próprio Tribunal Constitucional faz do artigo 164.º alínea u) da Constituição. Ou seja, o argumento não colhe, porque o contrário resulta da interpretação que o T.C. faz do artigo 164.º alínea u); e o T.C. deve interpretar o art.º 164.º em função do que diz a Lei de Segurança Interna. Donde se conclui que estamos perante a “pescadinha de rabo na boca”.
e) O Elenco das entidades referidas no n.º 2 do artigo 25.º da L.S.I. não pode considerar-se taxativo, pois deixa de fora todas as forças de segurança de cariz militar, que, não obstante não se encontrarem elencada nessa lei nem por isso podem deixar de incluir-se no conceito de Forças de segurança e serem submetidas, quanto à forma da sua criação, à reserva absoluta da Assembleia da República.
f) A não ser assim estariam abertas as portas à criação, por iniciativa governamental, de exércitos ou milícias privados, com finalidades específicas, mas que, por não estarem no tal elenco da LSI, seriam fonte de perversão do sistema.
g) E, nessa medida, tal interpretação constituiria uma violação do princípio Estado de Direito ínsito no artigo 2.º da Constituição.
h) Uma vez que a ASAE e os seus elementos tem poderes de força de segurança, podendo deter, constituir como arguidos cidadãos e aplicar-lhes medidas de coação, independentemente de despacho de autoridade judiciária, devem obrigatoriamente ser considerados corno forças de segurança nos termos e para os efeitos da al. u) do art.º 164.º da CRP;
i) A reserva de competência absoluta da Assembleia, in casu foi colocada em causa pelo Governo, com a criação dos DL 237/2005 e 274/2007, pois não se tratou nestes diplomas, apenas, de organizar a ASAE, mas sim de lhe atribuir poderes até então de outras forças de segurança;
j) O Governo, nos diplomas citados não se limitou a fixar, definir e organizar as competências da ASAE, antes lhe conferiu poderes que até então não eram da IGAE, podendo a ASAE praticar os actos processuais expressos na al. *) das presentes conclusões.
k) Pelo menos desde 1993 que a IGAE desenvolvia funções de órgãos de policia criminal, contudo sem os poderes ou atribuições conferidos pelos diplomas referidos.
1) O DL 237/2005 não só concentrou num único organismo os poderes de vários serviços de fiscalização, sendo um deles a IGAE, como aditou atribuições à ASAE, até então detidas por verdadeiras forças de segurança, com GNR e PSP;
m) O DL 274/2007 não se limitou a transferir os poderes da IGAE para a ASAE, antes lhe acrescentou outros poderes, podendo os elementos da ASAE, indistintamente, deter cidadãos, constituí-los corno arguidos e aplicar-lhes medidas de coação, independentemente de despacho prévio de autoridade judiciária.
n) Pelo que deve julgar-se improcedente o recurso e declarar-se a inconstitucionalidade orgânica das normas que a sentença recorrida recusou aplicar.”
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
5. O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, tem por objecto a apreciação da constitucionalidade das normas do artigo 5.º, alínea l) do Decreto-Lei n.º 237/2005, de 30 de Dezembro, em vigor à data dos factos, e dos artigos 3.º, n.º 2, alínea h), e 15.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, de 30 de Julho, que a decisão recorrida recusou aplicar com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação do artigo 164º, alínea u), da Constituição da República Portuguesa.
As disposições legais a que se reportam as normas em causa são do seguinte teor:
Decreto-Lei n.º 237/2005, de 30 de Dezembro
«Artigo 5.º
Atribuições
São atribuições da ASAE:
(…)
l) Promover acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de infracções contra a qualidade, genuinidade, composição, aditivos alimentares e outras substâncias e rotulagem dos géneros alimentícios e dos alimentos para animais;
(…)».
Decreto-Lei n.º 274/2007, de 30 de Julho
«Artigo 3.º
Missão e atribuições
1- (…)
2 - A ASAE prossegue as seguintes atribuições:
(…)
h) Promover acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de infracções contra a qualidade, genuinidade, composição, aditivos alimentares e outras substâncias e rotulagem dos géneros alimentícios e dos alimentos para animais;
(…)».
«Artigo 15.º
Órgão de polícia criminal
1 - A ASAE detém poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal.
2 - São autoridades de polícia criminal, nos termos e para os efeitos no Código do Processo Penal:
a) O inspector-geral;
b) Os subinspectores-gerais;
c) Os directores-regionais, designados por inspectores-directores;
d) O director de serviço de planeamento e controlo operacional e os inspectores-chefes;
e) Os chefes de equipas multidisciplinares».
6. A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) foi criada pelo Decreto-Lei n.º 237/2005, de 30 de Dezembro, em concretização do objectivo de relançamento da política de defesa dos consumidores, no que se refere à segurança de produtos e serviços de consumo, com particular relevo para os problemas da alimentação e da saúde pública. O legislador optou por congregar num único organismo a quase totalidade dos serviços relacionados com a fiscalização e com a avaliação e comunicação dos riscos na cadeia alimentar, que se encontravam dispersos por vários serviços e organismos públicos (cerca de quatro dezenas), a maioria dos quais englobados no Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, integrando no novo serviço, entre outras, as atribuições e competências então detidas pela Inspecção-Geral das Actividades Económicas, nos termos do Decreto-Lei n.º 46/2004, de 3 de Março, com significativos ganhos de eficiência e maior eficácia, procedendo a uma avaliação cientifica independente dos riscos na cadeia alimentar e fiscalizando as actividades económicas a partir da produção e em estabelecimentos industriais e comerciais (este desiderato é mencionado no preâmbulo daquele diploma legal).
Pelo Decreto-Lei n.º 274/2007, de 30 de Julho, o Governo, invocando a necessidade de proceder a reajustamentos no que respeita à orgânica interna da ASAE, em cumprimento das orientações definidas pelo Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE), nomeadamente redução de cargos dirigentes e estruturas, aprovou a nova orgânica desta entidade, revogando o Decreto-Lei n.º 237/2005, com excepção dos artigos 32.º, 35.º e 36.º, que se referem ao “regime de duração do trabalho”, à “mobilidade geográfica” do pessoal da ASAE, e ao “subsídio de deslocação e residência”.
Porém, tal como no Decreto-Lei n.º 237/2005, a ASAE continuou a ser um serviço central da administração directa do Estado dotado de autonomia administrativa, especializada no âmbito da segurança alimentar e da fiscalização económica, que tem por missão a avaliação e comunicação dos riscos da cadeia alimentar, bem como a fiscalização e prevenção do cumprimento da legislação reguladora do exercício das actividades económicas nos sectores alimentar e não alimentar, exercendo funções de autoridade nacional de coordenação do controlo oficial dos géneros alimentícios e organismo nacional de ligação com outros Estados membros (cfr. artigos 1.º e 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 274/2007, e 2.º do Decreto-Lei n.º 238/2005).
Entre outras atribuições que lhe estão cometidas, cabe-lhe “[p]romover acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de infracções contra a qualidade, genuinidade, composição, aditivos alimentares e outras substâncias e rotulagem dos géneros alimentícios e dos alimentos para animais” (cfr. artigo 5.º, alínea l), do Decreto-Lei n.º 237/2005, e 3.º, n.º 2, alínea h), do Decreto-Lei n.º 274/2007), “detém poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal”, sendo, o inspector-geral, os subinspectores-gerais, os directores-regionais, designados pelos inspectores-directores, o director de serviço de planeamento e controlo operacional e os inspectores-chefes e os chefes de equipas multidisciplinares, autoridades de polícia criminal, nos termos e para os efeitos do Código de Processo Penal (cfr. artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 274/2007).
Para a decisão recorrida a criação da ASAE com competência de fiscalização, prevenção e repressão em matéria de infracções criminais (designadamente no âmbito da previsão do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 28/84, objecto destes autos), dotada de um vasto leque de atribuições, no qual se inclui o desenvolvimento de acções preventivas e repressivas que contendem, por natureza, com direitos fundamentais dos cidadãos, está na exclusiva competência da Assembleia da República, pelo que a norma do artigo 5.º, alínea 1), do Decreto-Lei n.º 237/2005, em vigor à data dos factos e, actualmente, do artigo 3.º, n.º 2, alínea h) do Decreto-Lei n.º 274/2007, viola a reserva absoluta da Assembleia da República estando, por isso, ferida de inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 164.º, alínea u) da Constituição da República Portuguesa. E, por maioria de razão, o artigo 15.º do diploma vigente. Assim sendo, concluiu-se que não dispunha a ASAE de competência para proceder à acção inspectiva que deu origem ao auto de notícia (de fls. 60-72), realizar apreensões (fls. 2-3), proceder à constituição de arguido (fls. 12 e 13) e demais diligências que constam dos autos, inquinando, deste modo, o procedimento criminal contra os arguidos.
A decisão recorrida tem, pois, por assente que a ASAE é uma força de segurança e que as normas impugnadas, necessariamente, integram o âmbito da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República prevista na alínea u) do artigo 164.º da Constituição, relativa ao regime das forças de segurança.
Nesta perspectiva as normas que constituem o objecto do recurso seriam organicamente inconstitucionais porque, versando sobre matéria de competência legislativa absoluta da Assembleia da República, não podiam ter sido emitidas pelo Governo no uso da sua competência legislativa própria e concorrente com a da Assembleia da República (artigo 198.º, n.º 1, alínea a) da Constituição), como sucedeu em ambos os diplomas.
7. Dispõe o artigo 164.º, alínea u), da Constituição, que:
“É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias:
(…)
u) Regime das forças de segurança;
(…).”
Não nos diz expressamente a Constituição o que se entende por forças de segurança, nem qual o conteúdo e alcance do seu regime abrangido pela tutela constitucional.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre o conceito constitucional de forças de segurança, tendo ponderado a este respeito, no acórdão n.º 304/2008 (disponível, como os demais citados, em: www.tribunalconstitucional.pt), o seguinte:
«(…) o regime das forças de segurança mereceu uma especial atenção do legislador constitucional (artigos 163.º, i), 270.º, 164.º, u), e 272.º, da C.R.P.) devido, por um lado, ao papel fundamental que elas desempenham na garantia de funcionamento da vida em sociedade num Estado de direito e, por outro lado, à possibilidade de afectação dos direitos e liberdades dos cidadãos que pode resultar da sua actividade. Se aquele interesse reclama operacionalidade e eficácia das forças de segurança, o segundo exige que a lei conforme a sua actividade de modo a que não se possam verificar restrições desproporcionadas àqueles direitos e liberdades. Foi a procura da garantia da obtenção de um ponto de equilíbrio entre estes dois interesses, mesmo que cintilante e precário, por força da pressão de temores sociais com sentidos opostos, que motivou o legislador constitucional a consagrar especiais exigências neste domínio, sobretudo ao nível da definição dos órgãos competentes e da forma dos actos normativos necessários à regulamentação de tal matéria.
O legislador constitucional não ignorou que na tensão dialéctica entre os direitos à liberdade e segurança, consagrados no artigo 27.º, n.º 1, da C.R.P., a actividade das forças de segurança interna do Estado desempenha um papel fundamental que justifica especiais preocupações relativamente a outros sectores da Administração Pública.
Sendo esta actividade de elevada importância e risco que está na mira das referidas directrizes constitucionais, o conceito constitucional de “forças de segurança” não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla que abranja todos os corpos organizados que tenham por missão, principal ou secundária, garantir a segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos (artigo 27.º, n.º 1, da C.R.P.)».
Mais recentemente, através do acórdão n.º 84/2010, este Tribunal apreciou questão idêntica à colocada nestes autos, embora a propósito das atribuições constantes das alíneas z), aa) e ab), do n.º 2 do artigo 3.º, e 15.º e 16.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, tendo concluído que estas normas não eram organicamente inconstitucionais, não só porque a ASAE não se integra no conceito de forças de segurança, mas também porque as normas questionadas não integram o regime das forças de segurança objecto de tutela pela norma constitucional.
Quanto à questão da inclusão da ASAE no conceito constitucional de forças de segurança, considerou-se neste aresto o seguinte:
«3.1. Esta visão ampla do conceito constitucional de “forças de segurança” [refere-se ao acórdão 304/2008] não suporta, no entanto, que nele seja incluída a ASAE, diferentemente do sustentado pela decisão recorrida. Diferentemente da Polícia Judiciária, a ASAE não tem por missão secundária garantir a segurança interna, prevenindo crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos.
As atribuições constantes das alíneas z), aa) e ab) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 274/2007 – atribuições secundárias por referência à missão que está legalmente cometida à ASAE no n.º 1 do mesmo artigo e de que as outras alíneas do n.º 2 são expressão – são absolutamente estranhas à prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos, constitucionalmente consagrado no artigo 27.º Até mesmo a atribuição de desenvolver acções de natureza preventiva em matéria de jogo ilícito, promovidas em articulação com o Serviço de Inspecção de Jogos do Turismo de Portugal, já que tal não se traduz numa qualquer acção de protecção contra agressões ou ameaças de outrem, face ao disposto nos artigos 95.º a 101.º do Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro (sobre a “dimensão positiva” do direito à segurança aqui pressuposta, cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 27.º, ponto II.).
Mais genericamente, é de concluir que a ASAE, ao prosseguir aquelas atribuições, não participa na função de garantir a segurança interna, que o artigo 272.º, n.º 1, da CRP comete à polícia (à polícia de segurança, por contraposição à polícia administrativa e à polícia judiciária). “Não podendo afirmar-se que conceito de segurança interna seja um «conceito constitucionalmente vazio», tem de reconhecer-se que a sua caracterização não se alcança por forma directa e definitória no texto constitucional” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 479/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. Sobre as dificuldades do conceito, cf. Catarina Sarmento e Castro, A questão das Polícias Municipais, Coimbra Editora, 2003, p. 294 e ss.). Mas já é alcançável de forma indirecta, ainda que não definitória, a partir do conceito constitucional de “forças de segurança”, uma vez que a função de garantir a segurança interna cabe, no âmbito da polícia, às forças de segurança (assim, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 479/94. Na doutrina, cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, anotação ao artigo 272.º, ponto IV. e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 272.º, pontos VIII e XVIII).
3.2. A introdução da alínea u) no artigo 164.º da CRP, ocorrida por via da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, revela-se decisiva para delimitar o conceito de “forças de segurança” que encontramos em várias normas da Constituição e de que aquela mesma alínea é exemplo. Se “quanto à matéria ínsita na alínea u) daquele artigo, inequivocamente nela se (…) [contém] a definição dos serviços organizações ou forças que devem compor as forças de segurança”, é de concluir, então, que aquele conceito abrange apenas os serviços, organizações ou forças a que lei parlamentar sobre o regime das forças de segurança atribua esta natureza (relativamente àquela alínea, cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2002, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. E no mesmo sentido, cf. o Acórdão n.º 304/2008, infra ponto 4.). Em bom rigor, a delimitação do conceito constitucional de “forças de segurança”, à margem do elenco constante de lei parlamentar sobre o regime das forças de segurança, justifica-se apenas quando seja de apreciar do ponto de vista jurídico-constitucional a atribuição de tal natureza a certos serviços, organizações ou forças.
No momento da emissão do Decreto-Lei n.º 274/2007 a lei parlamentar em matéria de regime das forças de segurança não incluía a ASAE no elenco das forças e serviços de segurança (cf. artigo 14.º da Lei de Segurança Interna, Lei n.º 20/87, de 12 de Junho, cujo elenco está agora no artigo 25.º da Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto, nele não se incluindo a ASAE). Sendo certo que o princípio da reserva de lei contido no artigo 272.º, n.º 4, da CRP obriga a uma enumeração taxativa das forças de segurança (assim, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 557/89), há que concluir que o Governo não invadiu a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República ao emitir aquele Decreto-Lei.
3.3. Diga-se, por último, que é de todo irrelevante para a inclusão da ASAE no conceito constitucional de “forças de segurança” o que se dispõe nos artigos 15.º (Órgão de polícia criminal) e 16.º (Uso e porte de arma) do Decreto-Lei n.º 274/2007.
De acordo com o artigo 1.º, alínea c), do Código de Processo Penal «órgãos de polícia criminal» são todas as entidade ou agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer actos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código. O que significa que se parte “da ideia de que o que define a actividade de um órgão, enquanto órgão de polícia criminal, é, não a sua qualificação orgânica ou institucional, mas sim a qualidade dos actos que pratica” (Damião da Cunha, O Ministério Público e os Órgãos de Polícia Criminal no Novo Código de Processo Penal, Porto, Universidade Católica, 1993, p. 14). Assim se justificando, por exemplo, que alguns funcionários de justiça desempenhem, no âmbito do inquérito, as funções que competem aos órgãos de polícia criminal (cf. artigo 6.º do Estatuto dos Funcionários de Justiça e alínea i) do Mapa I anexo ao Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto).
8. De todo o modo, independentemente da qualificação da ASAE como força de segurança, não há razões para se concluir que as normas objecto da recusa de aplicação pela decisão recorrida integram a reserva da competência parlamentar quanto ao regime das forças de segurança. Este entendimento corresponde àquele a que se chegou no acórdão 84/2010, que seguiu o que a este propósito se disse nos acórdãos 304/2008 e 23/2002 sobre o conteúdo e sentido daquela expressão.
A alínea u) do artigo 164.º foi aditada pela Revisão Constitucional de 1997, com base numa proposta apresentada pelo Partido Socialista com a seguinte redacção: “Base de organização das forças de segurança”.
Após discussão e intervenções várias na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, a alínea em questão passou a comportar a actual redacção, tendo sido aprovada por unanimidade.
Para a compreensão do conteúdo dessa alínea revela-se essencial a consulta do debate havido na referida Comissão Eventual sobre o seu aditamento ao elenco das matérias que integram a reserva absoluta da Assembleia da República.
No acórdão 23/2002 [que procedeu à fiscalização preventiva da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana], após transcrição de algumas intervenções ocorridas na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional de 1997, concluiu-se que:
«(…)
5. Se, como parece resultar das transcrições vindas de fazer, se poderá concluir que o legislador da IV Revisão Constitucional não teve a intenção de abarcar na alínea u) do vigente artigo 164º as matérias atinentes à «organização interna» de cada força de segurança, isso não significa que, em face da prescrição hoje existente, se tenha, e somente, de atender ao desiderato histórico daquele legislador, extraível dos trabalhos levados a cabo na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.
Há, antes, que considerar ainda outros elementos da interpretação jurídica.
Efectivamente se, face a estes outros elementos, se houvesse de considerar a asserção regime utilizada nesta disposição constitucional de molde a nela se dever incluir uma amplíssima ou total regulação da matéria a que o mesmo se reporta, inclusivamente quando se tratasse de questões de pormenor, adjectivas e de mera regulamentação, isso derivaria do entendimento de que, não obstante o intento do legislador daquela Revisão, o intérprete e aplicador do direito constitucional, maxime o juiz constitucional, se não deveria fundar tão só na vontade desse legislador, porque, então, o resultado que adviria de uma interpretação esteada unicamente nessa vontade seria contrária aos próprios cânones interpretativos e prescrições constitucionais.
Há, pois, que prosseguir, com vista a descortinar-se o que deve ser incluído no conceito de regime, para os efeitos da alínea u) do artigo 164º da Constituição.
Vincar-se-á aqui que a conclusão a que se chegar quanto ao alcance da asserção regime não significa a extrapolação da mesma para todas as demais situações em que a Lei Fundamental utilize idêntica expressão, designadamente para efeitos do âmbito da reserva de competência legislativa parlamentar.
O que releva agora é, e tão só, descortinar qual o indicado alcance tendo em mira o preceituado na citada alínea u), pelo que aquilo que este Tribunal concluir quanto a este particular não conduzirá, por si só, a que seja, mutatis mutandis, transponível para outros locais e matérias em que a Constituição se reporte à palavra regime que, desta arte, poderá abarcar sentido diverso daquele que é utilizado na falada alínea.
(…)
7. Transpondo para a situação em apreço os dados que se podem porventura retirar de uma possível parametrização da jurisprudência constitucional sobre o que deva ser entendido por «regime», «regime e âmbito» e «regime geral», dir-se-á que, quanto à matéria ínsita na alínea u) daquele artigo, inequivocamente nela se contêm as regras definidoras daquilo que é comum e geral às forças de segurança, as grandes linhas da regulação, a definição dos serviços, organizações ou forças que devem compor as forças de segurança, finalidades e os princípios básicos fundamentais relativos, verbi gratia, à definição do seu sistema global, complexo de poderes, funções, competências e atribuições de cada serviço, força ou organização, inter-relacionação, projecção funcional interna e externa e, ainda, os princípios básicos relativos à interferência das forças de segurança com os direitos fundamentais dos cidadãos (cfr., quanto a estes últimos aspectos, os princípios fundamentais elencados no art.º 2º e a coordenação e cooperação das forças de segurança estabelecidas no art.º 6º, um e outro da Lei de Segurança Interna - Lei nº 20/87, de 12 de Junho).
É cabido citar aqui Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. citada, 957) que, em anotação ao artigo 272º da Lei Básica, embora numa diversa óptica, entendem que, ao se consagrar o princípio da unidade de organização em todo o território das forças de segurança, 'a Constituição estatui a exclusiva competência dos órgãos de soberania (AR e Governo) quanto à criação, definição de tarefas e direcção orgânica'.
Efectivamente, não poderá sustentar-se que se não inclua no regime das forças de segurança a definição dos «princípios» que - relativamente a cada uma das forças, serviços ou organizações que as compõem - a configurem basicamente o seu modo de funcionamento e relacionamento com as demais entidades públicas e os cidadãos, que definam as linhas básicas da sua organização e da sua natureza (como, verbi gratia, um corpo especial de tropas, um corpo militar ou militarizado, e aqueles pelos quais devem obedecer as suas missões gerais, competências e atribuições).
Mas, se isto é assim, já se antevê como excessivo que - reportadamente a cada um dos concretos serviços, forças ou organizações, que não podem deixar de ser entendidos como estando integrados no domínio do funcionalismo da Administração - da reserva absoluta de competência legislativa parlamentar deva fazer parte a respectiva organização interna, suportes logístico, financeiro e humano, respectivas gestão e corte de direitos e deveres funcionais dos funcionários que as compõem.
Efectivamente, não se pode dizer que qualquer uma destas específicas particularidades de regulação se insira nas grandes linhas de uma definição comum das forças de segurança, na indicação de quais as organizações, forças ou serviços que aquelas devam compor, no elencar das finalidades e princípios básicos ou comuns inerentes a elas, tais como os acima exemplificados, na definição de qual a inter-relacionação e projecção funcional interna e externa que deve ser prosseguida pelas referidas forças.
Mesmo a entender-se que a matéria que se liga ao regime das forças de segurança há-de compreender uma reserva, tanto para o regime material quanto para o regime orgânico (cfr., quanto ao «regime dos serviços de informações e do segredo de Estado» a posição de Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. citada, 676), neste último deverá considerar-se tão só como abarcando as supra indicadas definição, finalidades e princípios básicos organizatórios funcionais, de atribuição, inter-relacionação e projecção.
Vale aqui acentuar que, tal como se pode extrair do debate levado a efeito na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, não será estranho à consideração acima efectuada sustentar-se que a moldagem da organização de serviços e forças que compõem ou comporão as forças de segurança não deixa de estar ligada, de certa forma, à própria estruturação de um dado sector da Administração Pública, com a consequente responsabilização governamental ao nível da gestão dessa matéria, desde que estejam asseguradas as garantias democráticas que se visaram salvaguardar pela intervenção parlamentar exclusiva quanto aos pontos atrás indicados, onde avulta a salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos (…).»
Idêntico entendimento foi seguido no acórdão n.º 304/2008 quanto ao alcance da reserva absoluta de competência da Assembleia da República, constante da alínea u) do artigo 164.º:
«(…), da leitura da discussão parlamentar sobre o aditamento do “regime das forças de segurança” às matérias que exigem uma intervenção legislativa exclusiva da Assembleia da República, resulta, sem margem para equívocos, que o legislador da Revisão Constitucional de 1997 não teve a intenção de abarcar na citada alínea u) os regimes específicos de cada uma das forças de segurança, mas apenas o regime geral aplicável a todas elas, não estando, pois, aí incluídas as regras atinentes à organização interna de cada uma das forças de segurança.
E este propósito revela-se perfeitamente ajustado ao modelo de repartição dos poderes legislativos adoptado pela nossa Constituição.
Se a necessidade de mobilização de meios ofensivos para combater os perigos que mais intensamente põem em causa os bens protegidos pela ordem jurídica justifica que a Constituição procure rodear o enquadramento institucional desse combate de diversas cautelas, conferindo, nomeadamente, competência exclusiva à Assembleia da República para legislar em tal matéria, já seria excessivo que a atribuição desta competência abrangesse a regulamentação do modo de organização interna de cada uma das forças de segurança.
O “regime das forças de segurança” referido na alínea u), do artigo 164.º, da C.R.P., deve, pois, ser entendido apenas na acepção de regime geral das forças de segurança, o qual contemplará os fins e os princípios que devem nortear as forças de segurança, a previsão dos corpos que as devem compor, o modo de inter-relacionação entre eles, as grandes linhas de regulação destes corpos e os princípios básicos relativos à interferência das forças de segurança com os direitos fundamentais dos cidadãos.
Se é defensável que este regime geral deva incluir os princípios básicos organizatórios comuns às forças de segurança, já não se justifica que apenas a Assembleia da República possa legislar sobre a organização interna de cada um dos concretos serviços, forças ou organizações, que não podem deixar de ser entendidos como estando integrados na Administração Pública. Constituindo as forças de segurança, apesar das suas características particulares, um sector da Administração Pública, não faz sentido retirar ao Governo a possibilidade de legislar em matéria de organização interna de cada uma dessas forças, pois é ele que, por natureza, deve ser responsabilizado politicamente pela sua eficácia de funcionamento.
A matéria da distribuição interna de competências entre os diversos módulos que integram uma determinada força policial (…), respeita exclusivamente à sua organização interna, pelo que tal matéria não deve ser considerada como incluída na reserva de lei parlamentar imposta no artigo 164.º, u), da C.R.P. (…)».
Deste modo, à semelhança do que se concluiu no acórdão 84/2010, também as normas impugnadas nos presentes autos não se inserem no âmbito do regime das forças de segurança coberto pela reserva parlamentar, antes se reportam ao regime específico da ASAE: as normas do artigo 5.º, alínea l) do Decreto-Lei n.º 237/2005, e do artigo 3.º, n.º 2, alínea h), do Decreto-Lei n.º 274/2007, regulam as atribuições específicas da ASAE, e a norma do artigo 15.º, deste último diploma, confere a este serviço da administração directa do Estado o estatuto processual penal de órgão de polícia criminal.
9. Deste modo, conclui-se que as normas do artigo 5.º, alínea l), do Decreto-Lei n.º 237/2005, de 30 de Dezembro, e do artigo 3.º, n.º 2, alínea h), do Decreto-Lei n.º 274/2007, de 30 de Julho, enquanto prevêem como atribuições da ASAE promover acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de infracções contra a qualidade, genuinidade, composição, aditivos alimentares e outras substâncias e rotulagem dos géneros alimentícios e dos alimentos para animais, e do artigo 15.º deste último diploma, na parte em que prevê que a ASAE tem poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal, e quais dos seus órgãos têm poderes de autoridade, nos termos e para os efeitos do Código de Processo Penal, não padecem de inconstitucionalidade orgânica, por violação da alínea u) do artigo 164.º da Constituição.
III – Decisão
Em face do exposto, concedendo provimento ao recurso, não se julgam inconstitucionais as normas que dele são objecto e determina-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Não são devidas custas.
Lx., 15/06/2010
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão