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Acórdão 150/94ACÓRDÃO Nº 150/94
PROCESSO Nº 603/93
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em exercício neste Tribunal, em representação do MINISTÉRIO PÚBLICO, veio requerer, ao abrigo do disposto nos artigos 281º, nº 3, da Constituição, e 82º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, quando interpretadas no sentido de visarem impedir a aplicação da nova lei, ainda que mais favorável, às infracções que o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo citado decreto-lei, desgraduou em contra-ordenações.
Para fundamentar o pedido, invocou o requerente o facto de tais normas haverem sido julgadas inconstitucionais, em três casos concretos, por este Tribunal, através dos Acórdãos nºs 227/92 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Junho de 1992), 228/92 e 480/93 (por publicar), de que juntou cópias.
2. Notificado o PRIMEIRO-MINISTRO, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 54º da Lei do Tribunal Constitucional, nada veio ele dizer.
3. Cumpre, então, decidir.
II. Fundamentos:
4. Dispõe o artigo 281º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa que 'o Tribunal Constitucional aprecia e declara [...], com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade [...] de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional [...] em três casos concretos'.
No presente caso, o Tribunal julgou, de facto, inconstitucionais - por violação do artigo 29º, nº 4, da Constituição - as normas constantes dos artigos 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, quando interpretados no sentido de visarem impedir a aplicação da nova lei, ainda que mais favorável, às infracções que o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado por aquele decreto-lei, desgraduou em contra-ordenações.
Fê-lo nos citados Acórdãos nºs 227/92, 228/92 e 480/93
(todos da 2ª Secção) e também em muitos outros arestos posteriores, tirados quer pela 1ª Secção, quer pela 2ª Secção, citando-se, aqui, a título de exemplo, os Acórdãos nºs 619/93, 621/93, 623/93 e 771/93 (todos da 1ª Secção e por publicar).
Não se descortinam razões para, aqui, se concluir diferentemente. Por isso, retomando a argumentação que, em tais arestos, se desenvolveu, há, agora, que, tal como vem pedido, declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, daquelas normas, na indicada interpretação.
5. Prosseguindo, então:
As normas aqui sub iudicio dispõem como segue:
Artigo 2º (Início da eficácia temporal) As normas, ainda que de natureza processual, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras só se aplicam a factos praticados posteriormente à entrada em vigor do presente diploma.
Artigo 5º (Âmbito da revogação)
2.- Mantêm-se em vigor as normas de direito contravencional anterior até que haja decisão, com trânsito em julgado, sobre as transgressões praticadas até à data da entrada em vigor do presente diploma.
O Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, de que fazem parte os preceitos acabados de transcrever, aprovou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras.
Adoptando um esquema bipartido das infracções fiscais não aduaneiras (crimes e contra-ordenações), passou este Regime Jurídico a criminalizar certos comportamentos lesivos dos interesses da Fazenda Nacional - são os crimes fiscais, previstos nos artigo 23º a 27º - e desgraduou em contra-ordenações as restantes transgressões fiscais, que, prefigurando, embora, comportamentos ilícitos, o legislador considerou serem axiologicamente neutros - são as contra-ordenações fiscais.
A desgraduação das infracções fiscais menos graves operou-se, nuns casos, pela tipificação das respectivas condutas como contra-ordenação - é o caso das contra-ordenações fiscais, previstas nos artigos
28º a 40º; e, noutros, fez-se pela sua equiparação às contra-ordenações e pela respectiva submissão ao regime que vigora para estas - é o caso das transgressões fiscais tipicamente descritas a que era aplicável o Código das Contribuições e Impostos, cuja factualidade típica não seja subsumível a nenhum dos tipos de ilícito de mera ordenação social previstos nos citados artigos 28º a 40º (cf. o artigo 3º, nº 1, do citado Decreto-Lei nº 20-A/90).
Durante algum tempo, porém - mais precisamente, até que transitem em julgado as decisões proferidas ou a proferir sobre elas - as transgressões fiscais, praticadas até à data da entrada em vigor do citado Decreto-Lei nº 20-A/90 (todas elas, quer as correspondentes condutas tenham passado a ser tipificadas como contra-ordenações fiscais, quer hajam tão-só sido equiparadas a estas nos termos sobreditos), continuaram a subsistir como tais.
Quanto a tais transgressões, de facto, 'mantêm-se em vigor as normas de direito contravencional anterior' (cf. artigo 5º, nº 2, do citado Decreto-Lei nº 20-A/90), uma vez que 'as normas, ainda que de natureza processual, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras só se aplicam a factos praticados posteriormente à entrada em vigor' do dito Decreto-Lei nº 20-A/90 (cf. artigo 2º).
Significa isto que, mesmo que o Regime Jurídico novo seja mais favorável para o arguido do que o anterior, é este - e não aquele - que o legislador, por força dos citados artigos 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº
20-A/90, pretende ver aplicado.
Dizendo de outro modo: os artigos 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 20-A/90 visam impedir a aplicação da nova lei, ainda que mais favorável, às transgressões fiscais entretanto desgraduadas em contra-ordenações pelo novo Regime das Infracções Fiscais não Aduaneiras.
Tais normas assim interpretadas violam, como se disse já, a garantia consagrada no nº 4 do artigo 29º da Constituição.
6. O artigo 29º, nº 4, da Constituição da República dispõe:
4. Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.
Consagra-se aqui o princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido.
Este princípio constitui uma excepção ao princípio da legalidade (nullum crimen sine lege proevia), consagrado no nº 1 do mesmo artigo
29º ('ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão [...]'), segundo o qual a norma penal incriminadora há-de ter sido editada antes do cometimento do facto incriminado e há-de achar-se em vigor nesse momento. (Note-se que alguma doutrina vê neste princípio, antes, uma dimensão do princípio da legalidade penal).
A norma penal não pode, pois, ser retroactiva, nem ultra-activa, o que constitui uma manifestação nuclear da função de garantia do princípio, exigida pela ideia de Estado de Direito, pois se trata de evitar incriminações persecutórias, leis ad hoc - de evitar, em suma, o 'arbítrio ex post'.
A irretroactividade da lei penal é, no entanto, apenas uma irretroactividade in peius ou in malam partem, que não in melius, pois que, se a nova lei for de conteúdo mais favorável ao arguido (lex mitior), já ela se deve aplicar a factos passados (retroactividade in melius).
Bem se compreende este princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, uma vez que o legislador, quando, por exemplo, elimina incriminações, é porque deixou de considerar as respectivas condutas merecedoras de uma sanção de natureza criminal. Seria, por isso, injusto e inútil ir, agora, punir factos que, depois de uma nova ponderação das coisas, deixaram de ser criminalmente ilícitos, só porque antes o eram: injusto, porque não haveria já razões que, substancialmente, justificassem a punição; e inútil, porque nenhuma necessidade de prevenção se faria já sentir (Sobre o princípio da legalidade penal, vide: EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, I, Coimbra, 1963, p. 154; SOUSA E BRITO, 'A Lei Penal na Constituição, in Estudos sobre a Constituição, 2º volume, Lisboa, 1978, p. 202 e segs.; CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito Penal Português, I, Lisboa, 1983, p. 116; e CASTANHEIRA NEVES,
'O princípio da legalidade criminal', in Boletim da Faculdade de Direito, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, Coimbra, 1984, p. 307 e segs.).
7.Como se assinalou no Acórdão nº 227/92, atrás citado, o princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável acha-se formulado expressamente apenas para o domínio penal.
Valerá ele, então, para situações como a dos autos - ou seja: para casos em que um ilícito, que era pela lei qualificado como transgressão fiscal, foi, entretanto, desgraduado em contra-ordenação fiscal?
A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Escreveu-se, a propósito, nesse Acórdão nº 227/92:
De facto, a nova lei (no caso, as normas do citado Regime Jurídico respeitantes a contra-ordenações) - na medida em que deixou de qualificar como transgressões condutas que assim rotulava - é, em certo sentido, uma lei penal de conteúdo mais favorável, pois que 'expulsou' do domínio penal factos que, antes, aí situava. Claro que isto só é assim quando se veja nas infracções fiscais ilícitos de natureza criminal, puníveis, embora, com sanções (criminais) especiais (cf., neste sentido, EDUARDO CORREIA, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano
100º, páginas 289 e seguintes, sp. página 371). Pode, no entanto, argumentar-se que a nova lei não deve ser qualificada como lei penal, uma vez que, as infracções fiscais não integravam o domínio penal (cf., neste sentido, J. M. CARDODO DA COSTA, Curso de Direito Fiscal, Coimbra, 1970, páginas 100 e seguintes); e, depois, em direitas contas, o que ela talvez faz é, nuns casos (nos casos, dos artigos 28º a 40º do citado Regime Jurídico), tipificar como contra-ordenações condutas que, antes, eram tipificadas como transgressões e, noutros (nos casos previstos no artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 20-A/90), equiparar a contra-ordenações outras transgressões, que não converteu em crimes, nem tipificou como ilícitos de mera ordenação social. Se as coisas houverem de ser entendidas como por último se apontou, nem por isso haverá de ter-se o legislador por dispensado de observar o princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei de conteúdo mais favorável, consagrado expressamente, no artigo 29º, nº 4, da Constituição, apenas para as leis penais. Tal princípio - o princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável -, na sua ideia essencial, há-de, com efeito, valer também no domínio do ilícito de mera ordenação social.
8. A doutrina tem, de resto, entendido a citada garantia constitucional da retroactividade da lei mais favorável com esse alcance.
Assim, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 2ª edição, p. 208) escrevem:
É problemático o domínio de aplicação dos princípios consagrados neste artigo. A epígrafe 'aplicação da lei criminal' e o teor textual do preceito parecem restringir a sua aplicação directa apenas ao direito criminal propriamente dito
(crimes e respectivas sanções). Há-de porém entender-se que esses princípios devem, no essencial, valer por analogia para todos os domínios sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social [...].
Também FIGUEIREDO DIAS (Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, p. 330) escreve:
No que toca concretamente ao âmbito de vigência da lei das contra-ordenações, deverá sublinhar-se - dado que em alguns lados, v.g. numa parte da doutrina italiana, se acusa a substituição da categoria penal das contravenções pela categoria extra-penal das contra-ordenações de representar um inconveniente encurtamento dos direitos e garantias dos cidadãos -, deverá sublinhar-se que se transportam para o direito das contra-ordenações as garantias constitucionalmente atribuídas ao direito penal, nomeadamente as resultantes dos princípios da legalidade e da aplicabilidade da lei mais favorável.
9. Concluindo, pois: Os artigos 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro - interpretados no sentido de visarem impedir a aplicação da nova lei, ainda que mais favorável, às infracções fiscais, que, sendo transgressões, o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado por aquele decreto-lei, desgraduou em contra-ordenações - são inconstitucionais, porquanto violam a garantia consagrada no nº 4 do artigo
29º da Constituição.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral - por violação do artigo 29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa - das normas constantes dos artigos 2º e 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, interpretadas no sentido de visarem impedir a aplicação da nova lei, ainda que mais favorável, às infracções fiscais que o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado por aquele decreto-lei, desgraduou em contra-ordenações.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 1994
Messias Bento José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Dinis Fernando Alves Correia António Vitorino Maria da Assunção Esteves Luís Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto que junto). José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à decisão tomada no presente aresto, cumprindo, «brevitatis causa», indicar as razões da minha discordância.
Na verdade, continuo a manter o entendimento (que expressei na declaração de voto apendiculada ao Acórdão nº 227/92 e que repetidamente tenho reiterado em inúmeras decisões proferidas por este Tribunal após a prolação daquele aresto e nas quais tenho tido intervenção), que a garantia, constitucionalmente consagrada, da aplicação retroactiva da lei mais favorável, não tem aplicação senão aos casos expressamente previstos no nº 4 do artigo 29º da Lei Fundamental, ou seja, às leis penais.
A isto acresce que, segundo a minha perspectiva, as infracções fiscais tipicamente previstas antes da vigência do Decreto-Lei nº
20-A/90, de 15 de Janeiro, não se integravam no domínio penal, tendo por inequívoco que aqueloutras não qualificadas como crime por aquele diploma e a que se reportam os preceitos ora declarados inconstitucionais com força obrigatória geral, também não integram tal domínio.
Assim sendo, e na minha visão das coisas, as normas «sub iudicio», que foram editadas no uso de uma autorização legislativa conferida pela Lei nº 89/89, de 11 de Setembro, poderiam, sem ofensa da aludida garantia constitucional, dispôr do modo como o fizeram.
A isto adito que as considerações e referências doutrinais constantes do Acórdão de que a presente declaração é parte integrante, não dão, de um ponto de vista lógico e dotado de suficiente consistência suportado no texto do Diploma Básico, argumentação irrefutável que leve ao entendimento conclusivo segundo o qual, em matéria de direito sancionatório em geral, e para além das leis penais, haverá uma garantia constitucionalmente consagrada de harmonia com o qual ali se imporá o princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável ao sancionando.
(Bravo Serra)