Imprimir acórdão
Procº nº 314/92.
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. Do acórdão proferido em 14 de Fevereiro de 1992 pelo Tribunal da Relação de Lisboa recorreram para o Tribunal Constitucional o Ministério Público, por dever de ofício, e a caixa económica A., em liquidação.
2. Nesse acórdão, proferido em autos de reclamação de créditos apensos aos autos de execução ditos 9.808, pendentes pelo 8º Juízo do Tribunal Cível de Lisboa, o Tribunal 'a quo' entendeu que o disposto nos artigos
1º, §§ 1º e 2º, 11º, 12º, 20º e 23º, todos do Decreto-Lei nº 30.689, de 27 de Agosto de 1940, 'foram revogados, por incompatibilidade de princípios, com a entrada em vigor da actual Constituição da República, pois a declaração de falência e subsequente liquidação dependem de uma sentença judicial', e daí que fosse 'irregular a representação da A. pela Comissão Liquidatária, visto que esta unicamente poderia 'ser legitimamente representada pelo seu Conselho de administração', tendo, por isso, concluído existir incapacidade judiciária da aí reclamante, uma vez que foi 'representada por entidade diversa daquela a quem a representação' competia.
Fundamentando um tal entendimento, referiu-se, em dados passos, no aresto recorrido:
'........................................
-----Conforme se vê da procuração junta a fls. 40 e 41, o Ex.mo Advogado B. foi constituído mandatário forense por duas pessoas que intervieram no acto na qualidade de membros da Comissão Liquidatária da A.-----
-----Esta comissão liquidatária tem ou não poderes para representar validamente a reclamante? É este o cerne da questão que se levanta nos presentes autos.------------------..............................................
-----Temos assim que, a entidade que autoriza a constituição da Caixa Económica tem também competência para revogar a autorização, desde que se verifique o legal condicionalismo.-----
-----Dizia-se no art. 12º do Decreto-Lei nº 30.689 que a portaria que determina a liquidação do estabelecimento bancário constitui para todos os efeitos a declaração de falência do mesmo estabelecimento e não admite impugnação ou recurso. Este dispositivo deve considerar--se revogado uma vez que o nº 3 do art. 11º do Decreto-Lei nº 23/86 permite a interposição de recurso contencioso de decisão, nos termos gerais, para o Supremo Tribunal Administrativo.
-----Mas esta admissão do recurso não inviabiliza a tese dos recorrentes.------------------
-----Não estão em causa os preceitos constitucionais que conferem ao Governo a condução da política geral do país ou que determinam que o sistema financeiro é estruturado por lei. A questão é outra: é a de saber se o Governo tem competência para decretar falências.----------
-----Já vimos que a portaria que determina a liquidação do estabelecimento bancário constitui para todos os efeitos declaração de falência do mesmo estabelecimento. No caso concreto, não pode dizer-se que o acto de revogação da autorização para o exercício do comércio bancário é um puro acto que se insere na função administrativa, ele constitui um verda- deiro acto jurisdicional.---------------------
-----Com efeito, face ao disposto nos arts. 205º e 206º da Constituição, os Tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo. Na administração da justiça incumbe aos Tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.------------------------------------------
-----Face ao disposto no art. 293º da Constituição, o direito anterior à sua entrada em vigor, manteve-se, desde que não contrário à Constituição ou aos princípios nela consigna- dos.------------------------------------------
-----O processo de falência é de jurisdição contenciosa pelo que tem aquela de ser declarada por sentença judicial.-------------------
-----Se atentarmos nas disposições dos arts. 21º, 34º e 40º do Decreto-Lei nº
30.689, facilmente se constata que à Comissão Liquidatária são atribuídas funções de natureza jurisdicional, a qual está reservada exclusivamente aos Tribunais, não podendo ser atribuída a outros
órgãos.----------------------------- Por isso, devem considerar-se revogadas todas as disposições do referido decreto-lei que atribuam funções jurisdicionais a outros órgãos que não os Tribunais.------------------
-----O art. 207º da Constituição refere que nos feitos submetidos a julgamento não podem os Tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição, ou os princípios nela consignados.-----------------------------
-----Assim, admite-se que o Governo pudesse retirar à A. a autorização para exercer a actividade bancária mas o que não podia era declará-la dissolvida e ordenar a sua liquidação, considerando-a, deste modo, em estado de falência uma vez que a declaração de falência e o processo subsequente, designadamente, a liquidação, são matérias da exclusiva competência dos Tribu- nais, porque dirimem conflitos de interesses, em cujo processo intervêm o Síndico e o Administrador.-----------------------------------.............................................
'
3. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções junto do Tribunal Constitucional, na alegação que produziu, após referir que, em sua opinião, 'os preceitos que verdadeiramente serviram de base jurídica à concreta decisão proferida' seriam os que se encontram nos artigos 11º, 20º e 21º, nº 1, do D.L. nº 30.689, concluiu que tal decisão deveria ser revogada na parte em que considera inconstitucionais as normas contidas naqueles artigos, já que:
a) sendo materialmente contrárias à Constituição, por ofensa dos seus artigos 20º, nº 1, e 205º, nº 2, 'as normas que subtraem à juridição dos tribunais o decretamento da falência de estabelecimentos bancários, fazendo decorrer a plenitude dos efeitos associados a tal estado de mera decisão administrativa', assim denegando 'injustificadamente a terceiros o uso dos meios judiciais' e conferindo 'à comissão liquidatária verdadeiros poderes jurisdicionais' (normas essas contidas nos artigos 1º, § 1º, e 12º, ambos do aludido D.L. nº 30.689), o mesmo se não poderá dizer relativamente a preceitos - como os do artº 11º do mesmo diploma, «desligado» da equiparação efectuada no artº 12º - que confiram à Administração a possibilidade de, 'no exercício das suas funções de polícia da actividade bancária e financeira, retirar a autorização para o respectivo exercício e, como corolário desta proibição para a sociedade continuar a exercer a única actividade que, legal e estatutariamente, podia desenvolver, ser a mesma dissolvida e entrar em liquidação';
b) Igualmente não viola a Lei Fundamental 'a circunstância de as tarefas de liquidatário serem confiadas a uma 'comissão liquidatária', constituída nos termos do artigo 20º, por entidades estranhas à administração da sociedade, na medida em que tais funções nada tenham a ver com efeitos típicos da falência, decorrentes da equiparação contida no já citado artigo 12º';
c) Consequentemente, é 'lícita e regular a representação judiciária da sociedade dissolvida e em liquidação pelos membros da referida comissão liquidatária, que apenas se limita a tornar efectivo[s], pelos meios judiciais comuns, direitos patrimoniais de que era titular o estabelecimento bancário'.
4. Por seu turno, a A., na alegação apresentada, após ter perfilhado a óptica segundo a qual objecto do presente recurso são, tão somente, as normas ínsitas na última parte do artº 11º e nos números 1 e 3 do artº 21º, do mencionado D.L. nº 30.689 e, em consequência, saber se, de acordo com a Constituição, 'a representação de um património em liquidação... cabe necessariamente ao Tribunal ou ao Conselho de Administração... ou, simplesmente, a quem a lei ordinária concretamente designar', propugnou por se dever ordenar a reforma do acórdão recorrido 'em conformidade com o julgamento da vigência, por conformidade constitucional das normas do DL 30.689', particularmente as acima indicadas, passando, seguidamente, a enunciar determinadas conclusões de que se transcrevem partes que agora mais relevantemente interessam:
a) 'O Dec.Lei 30.689 de 17.08.40 é o direito ordinário estabelecido, uniformemente, por toda a legislação bancária, como o especial regime relativo à fase de liquidação das sociedades comerciais que tenham esta actividade por objecto social';
b) 'Tal regime processual é aplicável qualquer que seja a CAUSA de entrada em dissolução e liquidação destas sociedades - seja tal causa, a pura insolvência, seja simples sanção'.
c) A 'tarefa de liquidar é cometida a um órgão social
'ad hoc' - a comissão liquidatária - que 'tem logo por dever fixar oficiosamente ou não a lista e graduação definitiva dos credores sociais';
d) Estes, 'quanto ao reconhecimento e graduação do seu crédito não podem ter acesso ao Tribunal Comum sem previamente haverem reclamado tal à dita Comissão', acesso esse que, 'no caso da decisão desta ser contestada', só é permitido 'após sucessivos recursos de tipo administrativo';
e) É 'essencial discernir entre CAUSAS de dissolução e entrada em liquidação da sociedade comercial, e o regime PROCESSUAL da sociedade durante a liquidação do seu património', sendo que, quanto às primeiras, tratando-se de sociedades cujo objecto social é a actividade bancária, 'o interesse público que impõe o policiamento administrativo da actividade económica bancária, leva a que, tal como o juízo de oportunidade de entrada em exercício', aquelas causas 'e momento de saída/retirada de autorização sejam da exclusiva competência da Função Governativa, como típico modo de intervenção económica do Estado';
f) Tendo a liquidação de estabelecimentos bancários, subjacentes 'interesses muito específicos, onde desde logo avulta a necessidade de celeridade e rapidez derivada da urgência pública em restabelecer a confiança e credibilidade de todo o sistema bancário posto em crise com uma situação de insolvência ou irregularidade/fraude causadora da retirada de autorização de actividade' e, sendo 'a dimensão económica' desses estabelecimentos e 'o número de lesados' muito diferentes 'das situações relativas às demais sociedades comerciais', é 'manifestamente inapropriado a esta liquidação o processo falencial' contido no Código de Processo Civil:
g) Quer quanto às causas, quer quanto ao processo especial de liquidação dos estabelecimentos em causa, 'o direito interno dos países europeus conhece regimes legais idênticos ao D.L. 30.689';
h) Os 'artºs 104º e 105º e, noutra perspectiva as als. e) e j) do artº 81º e a), b) e c) do artº 102º', da Constituição, impõem ao Estado 'uma postura intervencionista, de policia económico-financeira', pelo que, quer o regime legal das causas de dissolução e liquidação da bancos, quer
'o próprio 'modus operandi' sobre a liquidação do património bancário, tem acolhimento naquelas normas constitucionais e a sua 'ratio legis';
i) Daí que se não possa 'ter por inconstitucional o direito ordinário especial que autorize o Governo, por acto administrativo, a retirar a autorização do exercício da actividade bancária, à sociedade comercial que o exerça, pois tal matéria (policia económica) é da competência própria da Administração Pública', assim como inconstitucional se não pode ter 'o direito ordinário que dispõe que, a sociedade comercial, sem objecto social - ou vendo este proibido - veja o seu património liquidado de imediato';
j) A Constituição não contém alguma norma 'que contrarie processos de liquidação extrajudicial diferentes dos previstos no Cod. Soc. Comerciais e no Cod. Proc. Civil' ou que imponha que uma sociedade em liquidação
'tenha de estar representada por alguém em especial... muito menos por um Juiz ou pelo Conselho de Administração';
l) No regime previsto no D.L. nº 30.689 o processo de liquidação aí consagrado não é 'uma liquidação feita/processada/dirigida pelo Governo (liquidação administrativa), mas sim' 'uma autêntica liquidação privada', não alterando 'a natureza, nem do órgão social liquidante, nem da própria forma de liquidação', a intervenção policial da Administração na sociedade em extinção;
m) De onde não se vislumbrar que 'o estar a A., em liquidação, representada como está', viole a Constituição;
n) A 'Jurisprudência do Tribunal Constitucional analisa de forma equivocada o D.L. 30.689 quando entende que as normas deste relativas ao reconhecimento e graduação de créditos (artº 34º, 21º nº 5 sobretudo) ofendem a 'reserva do Juiz'.
5. De outro lado, os recorridos C. e mulher, D., defenderam em alegação que o presente recurso não deveria ser provido.
II
1. Os presentes autos respeitam à reclamação de um crédito no montante de Esc. 1 046 059 092$00 e respectivos juros, reclamação essa deduzida pela A., representada pela sua comissão liquidatária, por apenso à execução ordinária que o banco E. moveu contra C. e mulher, tendo estes, no tribunal de 1ª instância, impugnado tal crédito utilizando, para tanto, o argumento segundo o qual, caducando as normas do D.L. nº 30.689 com a entrada em vigor da actual Constituição - o que acarretava que a portaria que determinou a retirada de autorização de exercício de comércio bancário àquele estabelecimento e a sua imediata liquidação não tivesse suporte legal - então a dita comissão, que deduziu a reclamação, não representava o mesmo estabelecimento, visto não ter capacidade de exercício do direito de que se arrogava, deste modo não podendo, por si, estar em juízo.
1.1. Na sentença proferida em 26 de Outubro de 1990 pelo Juiz do 8º Juízo do Tribunal Cível da comarca de Lisboa, foi sublinhado que a questão de inconstitucionalidade carreada pelos executados para basear a excepção de incapacidade judiciária da A., só era apreciada na medida em que pudesse contender com aquela incapacidade. E, na sequência, foi entendido que as normas constantes dos artigos 62º, nº 1, 80º, alínea a), 81º, alíneas c) e d), 82º, 83º, 84º, 85º e 104º, todos da Constituição, constituíam 'suporte suficiente para que o legislador ordinário, no respeitante à actividade bancária, a' sujeitasse 'a autorização prévia, a condicionamento, a fiscalização e a sancionamento, o qual' podia 'atingir (...) a própria
'extinção' da sociedade em exercício', não constituindo o direito constitucional
inibição do legislador para estabelecer um regime 'excepcional para a actividade bancária, atenta a importância de tal actividade no conjunto da economia'. De onde - continuava o raciocínio expendido na sentença - não se poder dizer que o D.L. nº 30 689, na parte em que estabelecia que a liquidação dos estabelecimentos bancários era orientada por uma comissão liquidatária e que esta tinha poderes para representar a massa em liquidação em juízo e fora dele, fosse inconstitucional, motivo pelo qual improcedia a excepção de incapacidade deduzida pelos executados.
1.2. Por se não conformarem com uma tal decisão, dela recorreram os executados para a Relação de Lisboa, defendendo a procedência da invocada excepção dilatória, por isso que a comissão liquidatária que deduziu a reclamação em causa não representava a A., já que os normativos que isso prescreviam eram inconstitucionais.
1.3. O acórdão impugnado, no seu passo decisório, como se viu já, entendeu conceder provimento ao recurso, pois que era irregular a representação da A. assumida pela comissão liquidatária, visto que ela unicamente poderia ser representada pelo seu Conselho de Administração, razão pela qual, no caso sub specie, existia incapacidade judidiária da reclamante, uma vez que se encontrava ela representada por entidade diversa daquela a quem a representação competia.
2. É certo que, para alcançar essa decisão, o aresto ora sob censura discreteou sobre a inconstitucionalidade dos preceitos constantes dos artigos 1º, §§ 1º e 2º, 11º, 12º, 20º e 21º do D.L. nº 30.689, tendo concluído serem eles desconformes ao Diploma Básico. Mas menos certo não é que, como resulta da transcrição acima feita, a questão a decidir pelo Tribunal da Relação de Lisboa e sobre a qual este expressamente se debruçou, se resumia a saber se tinham validade (no caso, constitucional) as normas por intermédio das quais é atribuída à comissão liquidatária do estabelecimento bancário ao qual foi retirada a autorização do exercício do comércio bancário e do qual foi ordenada a respectiva liquidação, poderes para o representar em juízo.
Ora, a ser assim, como inequivocamente é, então o que importa saber é qual o conjunto normativo de onde deflui aquela atribuição de poderes, ou seja, quais as pertinentes normas de onde se extraia, perante o direito ordinário, a quem deve pertencer a representação judiciária de um estabelecimento bancário em liquidação - determinada nos termos do D.L. nº
30.689 - numa acção comum destinada a exercer os direitos patrimoniais pertencentes a esse estabelecimento.
3. Posta a questão nestes termos, ponderando as disposições cabidas na matéria, haverá que concluir que, então, sumo rigore, a norma convocável é a que se encontra no nº 1º do artº 21º do D.L. nº 30.689, na parte em que comanda que à comissão liquidatária compete especialmente representar activamente em juízo a massa do estabelecimento bancário.
3.1. Porém, atendendo, por um lado, à forma como é constituída aquela comissão e, por outro, que a mesma só se constituirá caso, nos termos do artº 11º do mesmo diploma, tenha sido retirada ao estabelecimento bancário autorização de exercício de comércio bancário e ordenada a sua imediata liquidação, não poderá este Tribunal, na análise da questão em apreço, desligar-se daqueloutras normas ínsitas no mencionado artigo e, bem assim, no artº 20º.
Serão, pois, estas as normas sobre as quais incidirá o juízo a formular pelo Tribunal Constitucional.
3.2. Poderia argumentar-se, todavia, que, uma vez que no acórdão impugnado se efectuou um juízo de inconstitucionalidade sobre outras normas que não somente aquelas, uma vez interposto recurso para este Tribunal, a respectiva decisão haveria, igualmente, de sobre elas se debruçar.
Uma tal argumentação, contudo, não procede.
Como se disse no recente Acórdão nº 257/92 deste Tribunal (ainda inédito), a 'apreciação das questões de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional no domínio dos processos de fiscalização concreta, radiquem elas em decisões de rejeição ou de acolhimento (...) está condicionada, consoante os casos, a uma efectiva aplicação da norma cuja inconstitucionalidade havia sido suscitada durante o processo, ou a uma potencialidade de aplicação dessa norma, isto é, não fora a sua rejeição com base em inconstitucionalidade, a norma seria aplicável como fundamento jurídico-normativo da decisão impugnada'. De onde, se determinada norma jurídica não fôr aplicável no caso submetido ao veredito do tribunal da causa, não deve ele efectuar pronúncia sobre a sua compatibilidade ou incompatibilidade constitucional, já que a competência dos tribunais (com excepção do Tribunal Constitucional) 'no acesso directo à Constituição é uma competência vinculada, no sentido de apenas compreender aquelas questões de constitucionalidade que tenham por objecto as normas jurídicas susceptíveis de aplicação ao caso sujeito a julgamento' (do citado acórdão).
Se o tribunal efectuar uma tal pronúncia, claramente não tem ela interesse para a prolação da decisão à qual ele foi chamado, pois que a questão de (in)constitucionalidade nenhum relevo acarretava quanto a essa concreta decisão, podendo, por esta razão, afirmar-se que a aludida pronúncia se apresenta como um obiter dictum (cfr., entre outros, o Acórdão número 169/92, no Diário da República, 2ª Série, de 18-SET-92). De facto, tendo o recurso de constitucionalidade uma função instrumental - no sentido de que só devem ser conhecidas por este Tribunal as questões de constitucionalidade se elas houverem de influir na decisão sobre a questão de mérito - então, se não é convocável para essa decisão uma determinada norma, da circunstância de ser ela conforme ou desconforme à Lei Básica nenhuma projecção haverá no defecho decisório sobre esta última questão.
4. Assentes estes parâmetros, facilmente se concluirá que, tendo em conta a questão que era colocada ao Tribunal da Relação de Lisboa e que ele veio a decidir, o que estava em causa era saber, em primeira linha, se
é constitucionalmente lícito ao Governo determinar a liquidação de um estabelecimento bancário ao qual foi retirada autorização para o exercício do comércio bancário e, em segunda, se, na afirmativa, a representação em juízo da massa do estabelecimento pode ser efectuada através de uma comissão liquidatária constituída do modo como se consagra no artº 20º do D.L. nº 30.689.
A esta questão são, como parece evidente, estranhos os problemas consistentes em saber se são constitucionalmente legítimas a proibição do decretamento da falência dos estabelecimentos bancários por outros meios que não o previsto naquele diploma (§ 1º do artº 1º), a proibição de os credores, fora dos casos previstos no diploma em apreço, recorrerem aos tribunais comuns para satisfação dos créditos ( § 2º do mesmo artº 1º), a atribuição, à portaria ordenadora da liquidação, de eficácia equiparada à declaração de falência desses mesmos estabelecimentos (artº 12º do D.L. nº 30.689) e, por fim, a atribuição, à comissão liquidatária, de poderes que possam ser visualizados como jurisdicionais (verbi gratia, artigos 21º, números 5º, 10º e 34º e segs).
III
1. Definido desta arte o âmbito do presente recurso, incumbirá apreciar da incompatibilidade (ou não), das normas ínsitas no artigos
11º, 20º e 21º, nº 1, todos do D.L. nº 30.689.
É o seguinte o teor das aludidas normas:
'Art. 11.º Não tendo o estabelecimento bancário podido restabelecer, dentro do prazo fixado no artigo 1.º, as condições normais de funcionamento, o comissário do Governo dará conhecimento do facto à Inspecção do Comércio Bancário para o efeito de, por portaria do Ministro das Finanças, lhe ser retirada a autorização de exercício do comércio bancário e ordenada a sua imediata liquidação, que abrangerá os bens presentes e os que ulteriormente lhe advenham e será da competência da comissão constituída nos termos do artigo
20º.'
'Art. 20.º A comissão liquidatária é constituída pelo Comissário do Governo, que será o presidente, e por outros dois vogais, um dos quais será o representante dos credores e outro o do banqueiro singular ou dos sócios do estabelecimento bancário.'
'Art. 21.º À comissão liquidatária compete, salvas as restrições constantes deste decreto, praticar todos os actos necessários à liquidação e partilha da massa do estabelecimento bancário e especialmente:
1.º Administrar a massa e representá-la activa e passivamente em juízo e fora dele;
.............................................'
2. Sobre os antecedentes e apreciação do regime global do D.L. nº 30.689, já teve este Tribunal, por intermédio da sua 2ª Secção, ocasião de se pronunciar nos Acórdãos números 443/91, 171//92 e 179/92, publicados na 2ª Série do Diário da República de, respectivamente, 2 de Abril e
18 de Setembro de 1992, motivo porque, quanto àqueles pontos, o presente aresto se limitará a remeter para as considerações ali feitas a tal propósito, pois que seria fastidioso estarem elas agora a ser aqui repetidas.
Também, por outro lado, naqueles Acórdãos foi discorrida a problemática do que deva ser entendido como função jurisdicional, razão pela qual, porque se não vêm motivos para alterar a posição tomada sobre tal problemática, se dispensará o Tribunal de, neste ponto, efectuar a reiteração das fundamentação e conclusões que, suportadas na doutrina e jurisprudência ali citadas, então, respectivamente, se formulou e alcançaram.
3. Aqui chegados, torna-se necessário analisar se, no que concerne ao preceituado no artº 11º do D.L. nº 30.689, haverá ofensa das normas constantes da Constituição ou dos princípios dela decorrentes.
O artº 11º em causa contém, essencialmente, três imposições, a saber:- (1) o dever de o comissário do Governo dar à então designada Inspecção de Comércio Bancário conhecimento de que o estabelecimento bancário que suspendeu os pagamentos não restabeleceu as condições normais de funcionamento no prazo de noventa dias que lhes foi concedido para se reconstituir;
(2) a retirada, ao estabelecimento em tais condições, de autorização de exercício do comércio bancário, a efectuar pelo Ministro das Finanças por intermédio de portaria;
(3) a determinação, pela mesma entidade e através do mesmo meio, de liquidação do estabelecimento.
Deverá a nossa atenção incidir sobre as segunda e terceira imposições, e isso pela óbvia razão segundo a qual a primeira não releva minimamente para a questão de constitucionalidade aqui em debate.
Assim:
3.1. No que toca à imposição do cancelamento da autorização para o exercício do comércio bancário, adiante-se desde já que a mesma não ofende o comummente designado «princípio constitucional da reserva de juiz» nem qualquer outro princípio ou norma constante do Diploma Básico.
Na verdade, após a entrada em vigor da Constituição de
1976, surgiu a lume a Lei nº 46/77, de 8 de Julho, diploma que, na sua versão originária, vedava a empresas privadas ou outras entidades de idêntica natureza
(cfr. artº 3º) a actividade bancária, permitindo-a, porém, às «caixas económicas» (cfr. nº 2 do citado artº 3º), cujo exercício seria regulado por decreto-lei.
Daí que fosse publicado em 18 de Maio de 1979 o Decreto--Lei nº 136/79, que, de entre outras matérias, curou da definição das
«caixas económicas», respectivo objecto e regime jurídico, dispondo-se, no seu artº 2º, nº 1, que a constituição daquelas instituições especiais de crédito
(como as definia o artº 1º) só poderia ser autorizada, com carácter excepcional, pelo Ministro das Finanças e do Plano, após prévia audição do Banco de Portugal, sendo que (artº 30º, nº 1) as «caixas económicas» pré-existentes somente mantinham os seus estatutos na parte em que não fosse contrariado o regime instituído pelo diploma em questão.
Resulta, pois, das estatuições do D.L. nº 136/79 que, no caso, a actividade de exercício do comércio bancário por banda da A., estava condicionada por lei e só poderia ser desenvolvida se, para tanto, houvesse autorização do Ministro das Finanças e do Plano.
Com a nova redacção introduzida à Lei nº 46/77 pelo Decreto-Lei nº 406/83, de 19 de Novembro (editado ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 11/83, de 16 de Agosto), veio-se permitir, em determinados moldes, o exercício daquela actividade a empresas privadas e outras da mesma natureza, prescrevendo-se que a actividade das «caixas económicas», na medida em que as características que lhe eram próprias o justificassem, poderia ser objecto de regulamentação especial.
Surgiu, assim, na sequência dos indicados diplomas, o Decreto-Lei nº 23/86, de 18 de Fevereiro, produtor de efeitos desde 1 de Janeiro de 1986 (cfr. seu artº 42º), que veio, de entre o mais, a regular a constituição e condições de funcionamento das instituições de crédito com sede no País.
De entre as prescrições constantes deste diploma, relevam as que se encontram no nº 4 do seu artº 1º, 'a contrario', (aplicação às
«caixas económicas» constituídas sob a forma de sociedade anónima de responsabilidade limitada), no artº 3º (constituição das instituições referidas no artº 1º e, logo, de entre elas, as «caixas económicas» constituídas daquela forma - e a própria alteração dos estatutos, conforme decorre do artº 16º - dependente de autorização prévia e especial do Primeiro Ministro e Ministro das Finanças, autorização essa revestindo a forma de portaria) e no artº 10º, nº 1, alínea f) (possibilidade de a autorização ser revogada, entre outras situações, no caso de as instituições em causa não darem garantias de cumprimento das suas obrigações para com os credores, acto de revogação esse passível de recurso contencioso, conforme deflui do que se encontra previsto no nº 3 do artº 11º).
Por outro lado, consagra-se na Lei Fundamental que:
- A organização económico-social assenta, entre outros, no princípio da '[s]ubordinação do poder económico ao poder político democrático' [artigo 80º, alínea a)];
- 'Imcumbe prioritariamente ao Estado, no âmbito económico e social', 'reprimir os abusos do poder económico e todas as práticas lesivas do interesse geral' [artigo 81º, alínea e)];
- 'O sistema financeiro é estruturado por lei, de modo a garantir a formação, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social' (artº 104º).
Ora, dados estes princípios, é perfeitamente curial concluir-se que o Estado assuma um papel fortemente interventor na actividade financeira, tendo em vista a prossecução e alcance dos elencados objectivos constitucionais. Daí que nesse papel caiba, sem que para tanto se haja de efectuar qualquer esforço interpretativo ou de integração, a possibilidade de o legislador ordinário impôr a intervenção do Estado, por intermédio do seu órgão de condução de política geral do país e ao qual cabe praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias visando o desenvolvimento económico-social e a satisfação das necessidades colectivas, no sentido de autorizar a constituição de instituições que, limpidamente, têm o maior relevo num aspecto por demais importante no sistema económico em geral e no sistema financeiro em particular.
Deste modo, e porque a intervenção autorizadora para a constituição de instituições que exercem a actividade bancária (entre estas, como se viu, se contando as «caixas económicas» constituídas sob a forma de sociedades anónimas de responsabilidade limitada) por parte do Governo é algo que não é descredenciado constitucionalmente, há-de concluir-se, igualmente, que aqueloutra intervenção consubstanciada na revogação da autorização anteriormente deferida, nas situações em que, se virtualmente ocorressem aquando do pedido de autorização, esta não seria concedida, também não é postergada por qualquer proibição constitucional. A revogação de autorização, perspectiva-se, na verdade, como um efectivo corolário do poder autorizador (cfr. Luigi Desiderio, La Liquidazione coatta amministrativa aziendi di credito , Milão 1981, 12 e 37)
Por isso se perfilha o entendimento de que não fere a Lei Fundamental a imposição do artº 11º no trecho em que prescreve a retirada de autorização do exercício do comércio bancário aos estabelecimentos que, tendo suspendido os pagamentos, não restabeleceram as normais condições de funcionamento no prazo que lhes é deferido para tanto pelo artº 1º do D.L. nº
30.689.
3.2. E o que dizer no respeitante à ordem governamental de imediata liquidação nos estabelecimento que se encontrem em tais situações?
3.2.1. De acordo com o Decreto-Lei nº 41.403, de 27 de Novembro de 1957, '[s]ão consideradas instituições de crédito, entre outras, os estabelecimentos especiais de crédito' [artº 3º, alínea d)], os quais abrangem, designadamente, 'as caixas económicas' (cfr. § 2º), sendo que os bancos comerciais e os estabelecimentos especiais de crédito têm por exclusivo objecto
'o exercício da actividade bancária, por forma geral ou restrita, nomeadamente o exercício de funções de crédito' [ cfr. artº 6º; cfr., ainda, no mesmo sentido, artigos 2º, alínea d) e § 2º, e 4º do Decreto-Lei nº 42.641, regulamentador daquele D.L. nº 41.403 na parte respeitante aos aspectos gerais do crédito e à banca comercial].
Por seu turno, o artº 1º do citado D.L. nº 136/79, comanda que as «caixas económicas» 'são instituições especiais de crédito que têm por objecto uma actividade bancária restrita, nomeadamente recebendo, sob a forma de depósitos à ordem, com pré--aviso ou a prazo, disponibilidades monetárias que aplicam em empréstimos e outras operações sobre títulos que lhes sejam permitidas e prestando, ainda, os serviços bancários compatíveis com a sua natureza e que a lei expressamente lhes não proíba'.
Deste complexo normativo pode, pois, extrair-se que os bancos comerciais e os estabelecimentos especiais de crédito unicamente podem desenvolver uma actividade, qual seja a do exercício do comércio bancário, quer na forma geral, quer na forma restrita, sendo-lhes, por isso, vedado o exercício de qualquer outra actividade (relativamente às «caixas económicas, tal exercício confina-se ao desenvolvimento da actividade bancária na forma restrita - cfr. artigos 5º a 16º do dito D.L. nº 136/79).
Vale isto por dizer, enfim, que o objecto social desta sorte de estabelecimentos é, somente, o do exercício da actividade bancária restringido às formas previstas na lei, sendo-lhe, em consequência, proibido o desenvolvimento de qualquer outra actividade (note-se que, face ao estatuído no artº 30º, nº 2, do D.L. nº 136/79, mesmo que os estatutos das «caixas económicas» previssem a prossecução de outras actividades, a vigência dessa previsão deixaria de produzir efeitos se por ela fosse contrariada a legislação regulamentadora das instituições especiais de crédito e da respectiva actividade).
3.2.2. De harmonia com a estatuição constante da alínea d) do nº 1 do artº 141º do Código das Sociedades Comerciais, para além dos casos previstos no contrato social, as sociedades dissolvem-se pela 'ilicitude superveniente do objecto contratual', consagrando-se no nº 1 do artº 146º que,
'[s]alvo quando a lei disponha diferentemente, a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação', a qual obedecerá ao disposto nos artigos seguintes e, nas hipóteses de falência e de liquidação judicial, ainda aos preceitos constantes das leis de processo.
Comentando aquele primeiro artigo, Raúl Ventura
(Dissolução e Liquidação de Sociedades, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, 1987) refere que no artº 141º ( e também no artº 142º) são previstas três circunstâncias relativas ao objecto contratual, contando-se entre estas a ilicitude superveniente, que é causa de imediata dissolução (cfr. fls. 68). E acrescenta (fls. 74 e 75):-
'.............................................
O objecto da sociedade, como já dissemos a respeito da alínea anterior, é constituído por actividades. Com ressalva do que dizemos quanto a objectos complexos, a referida alínea d) abrange directa e inequivocamente o caso de a actividade que constitui o objecto social ser declarada ilícita. A nosso ver, esta última abrange também duas outras hipóteses: a actividade que constitui o objecto contratual de uma sociedade não ser tornada ilícita em si mesma, mas o seu exercício ser tornado ilícito para sociedades privadas; a actividade ser proibida a sociedades de certo tipo. Com efeito, em todas essas hipóteses é atingida, por uma forma ou outra, a actividade que certa e determinada sociedade tomara como objecto contratual.
A ilicitude deve ser superveniente, o que deve ser entendido como posterior à celebração do contrato de sociedade, visto ter sido neste que o objecto contratual foi estipulado. A ilicitude inicial - à data da celebração do contrato de sociedade - constitui vício determinante da nulidade do contrato, mesmo para sociedades por quotas ou anónimas cujo contrato já esteja registado
(art. 42.º, n.º 1, al. c).
O objecto a considerar para o efeito é o objecto contratual. Não interessam actividades que estejam a ser exercidas de facto sem estarem incluídas no objecto contratual, e é irrelevante que, estando a actividade proibida incluída no objecto contratual, ela esteja ou não a ser exercida de facto.
Não surgirão dúvidas quanto a aplicação desta alínea nos casos em que a actividade supervenientemente tornada ilícita constitua o único objecto social. Duas outras hipóteses há que considerar: a sociedade ter objectos
(actividades) múltiplas especificadas, uma das quais se tornou ilícita, e o objecto contratual estar redigido de maneira genérica, na qual se inclua a actividade tornada ilícita. Não vemos motivo para nestas duas hipóteses a sociedade ser dissolvida, pois no seu objecto contratual estão incluídas actividades que ela pode licitamente exercer..............................................'
E, mais adiante (210 e segs), diz o citado autor:
'.............................................
Importa notar que a palavra «liquidação» é usada na lei em dois sentidos; como situação jurídica da sociedade (ou fase da vida social) ou como processo, isto é, série de actos a praticar durante aquela fase.
..............................................
Tomando, por exemplo, o art. 146.º CSC, ele emprega a palavra liquidação no sentido de fase, quando no n.º 1 diz que «Salvo quando a lei disponha diferentemente, a sociedade entra imediatamente em liquidação», no n.º
2, que «a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica», no n.º 3, ao mandar que à firma da sociedade seja aditada a menção «sociedade em liquidação»; emprega essa palavra no sentido de processo quando, no n.º 2, fala em
«modalidade da liquidação», no n.º 4, diz «o contrato de sociedade pode estipular que a liquidação seja feita judicialmente» e, no n.º 5, fala em
«regulamentar a liquidação».
A distinção assim feita não tem o alcance, atribuído por alguns autores, de resolver só por si os principais problemas que a propósito da liquidação têm sido levantados, mas é indispensável para a boa compreensão das regras legais e do mecanismo da liquidação.
..............................................
Desligando a situação e o processo, também se compreende que a situação se mantenha inalterada, embora o processo varie. A situação que para a sociedade resultou da dissolução define-se por certas características que não são afectadas pela forma que, no caso concreto, for usada para o processo; assim, por exemplo, os interessados têm à escolha um processo extrajudicial e um processo judicial de liquidação, mas, quer se pronunciem por um ou por outro, a situação jurídica da sociedade em liquidação é idêntica.
.............................................'
Mais adiante, refere o autor que se vem citando:
'.............................................
Subsistem na nossa legislação, embora com o âmbito reduzido por causa das nacionalizações de sociedades dedicadas a esses ramos, disposições legais respeitantes à revogação ou cessação de autorização ou licença de sociedades cujo objecto consista na indústria de seguros ou no comércio bancário ou complementar deste.
..............................................
Em Itália, o art. 2448.º CC, depois de enumerar seis casos em que as sociedades anónimas se dissolvem, dispõe que «além disso, a sociedade dissolve-se por determinação da autoridade governativa, nos termos da lei [...]» e muitos autores ligam a esta causa de dissolução a chamada «liquidação forçada administrativa» ('liquidazione coatta amministrativa'), instituto de origem antiga (teria começado por uma lei de 1888), desen- volvido através de legislação avulsa (respeitante a caixas económicas..., etc.) e genericamente tratada na lei de 16.3.42, n.º
267...............................................
No CSC não existe, a propósito das causas de dissolução, preceito semelhante ao referido italiano, mas não pode afirmar-se 'a priori' que a retirada ou cessação de autorização por parte do Governo está excluída das causas imediatas de dissolução de sociedades. A única alternativa válida consiste em entender que nessas hipóteses há liquidação (especial ou ordinária não importa para este aspecto), subsequente a um facto que não é tecnicamente dissolução.............................................. A questão é desprovida de interesse prático, uma vez que a liquidação seguinte à revogação ou cessação da autorização está perfeitamente determinada pela lei e não pode suscitar-se o problema da aplicação da liquidação «ordinária» no caso de se entender que nessas hipóteses há dissolução.
No plano teórico em que a questão afinal se situa, preferimos entender que a revogação ou cessação de autorização, seguida de liquidação especial nos termos prescritos em leis especiais não é um caso de dissolução, embora seja um facto que produz a entrada em liquidação, nos citados termos especiais.
.............................................. '
3.2.3. Retornando ao caso em apreciação, temos que, por um lado, as «caixas económicas», como estabelecimentos especiais de crédito que são, não podem desenvolver outra actividade que não a do exercício do comércio bancário sob a forma restrita, estando esse objecto social condicionado à concessão de autorização por parte do Governo; por outro, viu-se já, não ofenderá qualquer norma ou princípio constitucional a normação ordinária que preveja que o executivo possa revogar a autorização anteriormente concedida, maxime se se depararem as hipóteses prevista na lei.
Assim sendo, torna-se evidente que uma instituição especial de crédito à qual foi retirada a autorização de exercício de comércio bancário, ficou impedida de realizar o seu objecto social, sendo que este, por força de disposição imperativa de lei, era o único que por ela poderia ser desenvolvido.
Ora, independentemente da questão de se saber se aquele retirada de autorização deve, em rigor técnico, ser considerada como uma verdadeira dissolução, o que é certo é que, na impossibilidade prática de a sociedade em tal situação poder desenvolver qualquer outra actividade (ao menos enquanto se mantiver o status contratual - integrado ou completado pela legislação imperativa em vigor - que a regia e determinou o respectivo objecto de facto e de juris), é perfeitamente justificável e lógico que a essa retirada de autorização se siga a liquidação da sociedade, tomada esta no sentido de fase da vida societária.
Aliás, o próprio Código das Sociedades Comerciais admite que a lei preveja formas e processos de liquidação obedecendo a regras diferentes dos nele e nas leis de processo previstos (cfr. artº 146º; o que esta disposição só impede é que a sociedade dissolvida possa deixar de entrar imediatamente em liquidação e que a liquidação possa deixar de obedecer ao previsto naquele corpo de leis salvo por vontade dos sócios - neste sentido, Raúl Ventura, ob. cit., 224).
A questão que se levanta, é, pois, a de saber se a liquidação, tomada agora no sentido processual, deve ser perspectivada como se inserindo, toda ela, irremediavelmente, na reserva jurisdicional (no sentido constitucional e não no sentido legal), e isto tendo em atenção, como já atrás se sublinhou, que não está em causa nestes autos analisar a norma que equipara para todos os efeitos à falência a portaria determinante da liquidação.
A esta questão deve ser respondido negativamente.
De entre as várias causas de dissolução das sociedades e subsequente liquidação (no sentido de que agora tratamos), algumas há em que, de todo, não existe qualquer conflito, quer entre os sócios, quer entre a sociedade e os seu credores.
A liquidação (no prisma procedimental), nesses casos, poderá não ter subjacente a dilucidação de qualquer conflito, não exigindo, por isso, a intervenção de um órgão independente para resolver as questões fácticas suscitadas e, a final, «dizer o direito».
De todo o modo, ainda que eventualmente a legislação ordinária consagrasse como regra geral aplicável às sociedades que a liquidação
(procedimental) das mesmas unicamente seria possível por intermédio de uma série encadeada de actos que decorria sob a presidência de um juiz (ainda que nos casos de inexistência de conflito), nem por isso, só por essa circunstância - ou seja, por assim o determinar a lei ordinária - se deveria concluir que, do ponto de vista constitucional, estava violando o princípio da reserva jurisdicional a normação que, quanto a determinados casos, viesse a prever a efectivação de liquidação subtraída às estatuições constantes daquela regra geral. Efectuar raciocínio que apontasse para diferente conclusão seria confundir a reserva jurisdicional consagrada constitucionalmente com a reserva legal de juiz consagrada na legislação infraconstitucional.
Mister seria, desta arte, averiguar se, na liquidação
(processual), existem pontos carecidos da intervenção (necessária do ponto de vista constitucional) do tribunal e, havendo-os, se a legislação ordinária que subtraia a sua resolução ao juiz - e agora só na óptica das situações em que a este não caiba a primeira palavra, mas sim a última - é feridente da Lei Fundamental.
3.2.4. Posta a questão nestes termos, há que ponderar desde logo que o objecto do presente recurso se prende, no que ora releva, não com toda a normação ínsita no D.L. nº 30.689, designadamente aquela que atribui determinadas funções à comissão liquidatária, mas sim com o saber se é lícito constitucionalmente conceder a um acto do Governo a determinação da liquidação do estabelecimento bancário ao qual foi retirada a autorização para o exercício do comércio bancário.
Perante o que acima foi dito, torna-se desde logo claro que a solução a dar à dita questão não pode deixar ter uma resposta global positiva.
Na verdade, não estando agora directamente em causa a análise da totalidade das normas a que obedece a forma de liquidação prescrita no D.L. nº 30.689, aqui avultando as que regem algumas das funções e atribuições cometidas à comissão liquidatária, e não passando em claro o que acima ficou exposto quanto à necessidade de se não confundir a «reserva constitucional de juiz» com a «reserva legal de jurisdição» e a legitimidade constitucional da dação ao Governo de poderes especiais de «vigilância» sobre o sistema financeiro em geral e sobre os estabelecimentos bancários em particular , então há que considerar que a liquidação daquele tipo de estabelecimentos - 'descarnada' das concretas normas que particularizam o modo de alguns dos seus procedimentos - não pode, só por si, ser considerada contrária ao texto constituconal ou aos princípios dele decorrentes.
A esta consideração não é estranha aqueloutra segundo a qual o acto governamental, consistente na retirada de autorização de exercício do comércio bancário e de determinação de entrada em liquidação do estabelecimento atingido pela medida, poder ser sujeita a sindicabilidade jurisdicional (cfr. nº 3 do artº 11º do D.L. nº 23/86), assim se assegurando a garantia prescrita no artigo 268º, nº 4, da Lei Básica, como corolário do direito fundamental consagrado no seu artigo 20º, nº 1.
Na liquidação em apreço - que acima se conclui ser justificada logicamente - se é certo que manifestamente existe um interesse público subjacente, cuja prossecução incumbe à Administração (e que aconselha que essa liquidação se efectue do modo mais célere possível), também hão-de estar em causa interesses privados, seja dos credores dos estabelecimentos bancários liquidados, seja dos próprios sócios do estabelecimento.
A ser assim, como é, necessário é perguntar se os interesses destes últimos não serão completamente postergados, imolando-se perante o interesse público.
Mas, neste particular, a resposta não pode, sem mais, ser afirmativa.
Na realidade, algumas das normas reguladoras do processo de liquidação coactiva em causa (e que agora não cabe analisar) claramente prevêem a defesa dos interesses particulares, não afastando (antes pelo contrário expressamente prevendo) a intervenção destes no processo e, até, no próprio órgão ao qual incumbe levar a cabo o procedimento liquidatário. Por outro lado, sempre, em tese, seria possível defender-se que, caso existissem normas reguladoras de determinados passos procedimentais (que aqui se não curam) que porventura estatuíssem impossibilidade de recurso aos tribunais por parte dos particulares, para defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, então a contraditoriedade com a Constituição residiria nessas mesmas normas, não 'contaminando' o vício de que padeceriam toda a liquidação.
Ora, face a este posicionamento, somos chegados à conclusão que a liquidação coactiva determinada pela Administração respeitantemente aos estabelecimentos bancários em questão e não sujeita a intervenção de uma entidade jurisdicional, por si, não ofende o Diploma Fundamental.
Esta conclusão não é contraditória com o decidido por este Tribunal nos seus Acórdãos números 443/91 e 179/92, que visaram a apreciação de normas concretas do procedimento liquidatário e nos quais não foi afirmado ser constitucionalmente ilegítima a totalidade do sistema legal que o prevê e regula.
4. Tocantemente à forma de constituição da comissão liquidatária, tal como é delineada no artº 20º do D.L. nº 30.689, adiante-se desde já não se vislumbrar nessa norma qualquer violação da Lei Básica.
É que, se, como já se concluiu, o processo liquidatário previsto naquele diploma tomado na sua globalidade - ou seja, sem se tomar em linha de conta algumas particularizadas normas que o regulam - , não ofende a Constituição, por isso que não pode ele ser perspectivado como se incluindo qua tale na «reserva de juiz», então concluir-se-á também que, quanto aos elementos que hão-de constituir o órgão que está encarregue de tal processo, não seja exigido terem eles de obedecer aos requisitos de independência e imparcialidade que são apanágio funcional e estatutário dos juízes, sendo certo que a Lei Fundamental em passo algum veda que dependa de decisão administrativa a própria designação - ou homologação de outras formas diferentes de designação - de liquidatários de determinadas sociedades.
A ser assim, é indiferente para o problema de constitucionalidade de que nos ocupamos a questão da caracterização técnica e rigorosa da comissão liquidatária como um órgão administrativo ou um órgão social do estabelecimento bancário em liquidação ou, mais propriamente, da massa a liquidar.
Adite-se a tudo isto, por fim, que, como sublinha o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, na designação dos liquidatários não se trata de resolver conflitos de interesses entre partes em litígio, mas sim de indicar quem vai realizar, nas palavras de Raúl Ventura (ob.cit., 212) 'um conjunto de actos... com o fim de dar ao património social uma constituição que, ressalvados os direitos de terceiros e tendo em conta as convenções entre os sócios ou, na falta delas os critérios legais, permita atribuir individualmente aos sócios os elementos existentes'.
5. Vejamos agora a questão da conformidade constitucional da norma constante do nº 1º do artº 21º do D.L. nº 30.689, na parte em que dispõe que à comissão liquidatária compete representar activamente a massa em juízo.
Uma primeira consideração se impõe desde logo efectuar, qual seja a de a Constituição, em passo algum, apontar para o modo como devem ser representados activamente em juízo as sociedades privadas.
Prosseguindo, dir-se-á que o próprio Código de Processo Civil, no caso de transformação ou fusão de pessoa colectiva ou de sociedade, já prevê a substituição dos representantes da pessoa colectiva ou da sociedade (cfr. artº 276º, nº 2), não parecendo, por outro lado, líquido afirmar-se que o sistema de representação em juízo conferido pela norma sub specie se apresenta como prescrevendo um sistema totalmente diverso do que se encontra consignado no Código das Sociedades Comerciais, designadamente no seu artº 152º.
Quanto a este último ponto, diremos, com Raúl Ventura
(ob. cit., 332) que a representação da sociedade em liquidação 'pertence ao liquidatário', quer se trate de representação judicial, como de extrajudicial, pelo que, aqui, se não divisaria, sequer, ofensa do artº 13º da Constituição.
Aliás, o problema da eventual desconformidade constitucional da norma constante do nº 1º do artº 21º do D.L. nº 30.689, em rectas contas, só seria alcançado se se concluísse que ofendia a Lei Fundamental a liquidação, ordenada pela portaria que igualmente determina a retirada do exercício do comércio bancário ao estabelecimento bancário não reconstituído no prazo de três meses.
Ora, quanto a este particular, acima foi, justamente, alcançada diversa conclusão.
6. Resta tratar um último ponto.
A Constituição, no nº 2 do seu artigo 87º, comanda que
'[o] Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão judicial'.
Segundo o comentário de Gomes Canotilho e Vital Moreira efectuado quanto àquele comando constitucional na 3ª edição da Constituição da República Portuguesa Anotada (pag. 422), sendo elemento 'essencial da liberdade de empresa ... o direito do seu titular a geri-la', admite-se, porém, uma
'intervenção estadual directa na gestão de empresas privadas', ainda que na forma de 'substituição integral do Estado ao titular da empresa na sua gestão', desde que haja selecção e tipificação legal das situações e tipos de tal intervenção e que esta seja efectuada sempre a título transitório.
Acrescentam aqueles autores que o normativo constitucional em causa aponta ainda um critério para o legislador que institui o regime de intervenção estadual, qual seja, precisamente, o de recomendar que a intervenção seja precedida de decisão judicial, alertando, todavia, para que a ocorrência de prévia decisão judicial 'pode ... não acontecer'.
Poder-se-ia, do ditame ínsito no falado nº 2 do artigo
87º, extrair uma argumentação segundo a qual, ponderando a existência de uma recomendação constitucional no sentido de a intervenção [temporária] do Estado na gestão das empresas privadas ter de ser precedida de decisão judicial, não se justificar que, em casos que desembocam na liquidação dessas empresas, fosse permitida uma actuação da Administração visando esse fim sem a precedência da intervenção dos tribunais.
Um tal argumento, desde logo, faleceria se se entender que a Constituição não exige, no nº 2 do artigo 87º, que a intervenção a que esse preceito se reporta seja sempre posterior a uma decisão judicial dela autorizadora.
De todo o modo, o que está verdadeiramente em causa no nº 2 do artigo 87º é uma vertente da consagração da liberdade de gestão inerente
à liberdade de empresa, o que o mesmo é dizer uma liberdade na condução dos destinos económicos e sociais das empresas que, pela intervenção estadual, se vê fortemente - se não totalmente - cerceado.
Ora, em casos como sub iudicio - isto é, em casos como o dos estabelecimentos bancários em que, como se viu, o seu objecto social é, e tão só, o exercício do comércio bancário - não se pondo em causa que assiste à Administração o poder de retirar a licença para o desenvolvimento dessa actividade, e sem a qual ela não pode ser prosseguida, não é configurável que, uma vez despojado o estabelecimento da licença, possa, por qualquer forma, ser exercida uma gestão social e económica dessa empresa que ficou, por isso, sem objecto social.
Não há, aqui, em consequência, que ter em conta uma salvaguarda daquele tipo de liberdade que a recomendação constitucional do nº 2 do artigo 87º pretendeu efectuar, e isto não olvidando que se trata, nesta matéria, do exercício de uma actividade cujo início e desenvolvimento são já em si fortemente condicionados.
IV
Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, determinando-se a reforma do acórdão impugnado, de harmonia com o presente juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 1994
Bravo Serra José de Sousa e Brito Fernando Alves Correia Messias Bento Guilherme da Fonseca
Luís Nunes de Almeida (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto junta). José Manuel Cardoso da Costa