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Proc. nº 440/93
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No tribunal judicial da comarca de Vila Nova de Ourém, em processo comum, deduziu o Ministério Público acusação contra A. e B., imputando ao primeiro a autoria, em concurso real, de um crime de ofensas corporais simples, dois crimes de injúria à autoridade e de um crime de ofensa a funcionário, previstos e punidos respectivamente, pelos artigos 142º, nº 1,
165º e 168º e 385º, nº 2, do Código Penal e ao segundo a autoria de um crime de ofensa a funcionário previsto e punido pelo artigo 385º, nº 2, do mesmo Código.
No requerimento acusatório, ao abrigo do disposto no artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal (na redacção dada pelo artigo
4º do Decreto-Lei nº 387-E/87, de 29 de Dezembro), e tomando-se em conta que o arguido A., é primário, agiu sob a influência do álcool e em estado de excitação e se mostra arrependido pelos factos praticados, manifestou o Ministério Público o entendimento de não lhe dever ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a três anos, razão por que o julgamento haveria de se fazer apenas com a intervenção do juiz singular.
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2 - Todavia, o senhor juiz do tribunal judicial daquela comarca, com fundamento em inconstitucionalidade, recusou a aplicação da referida norma do artigo 16º, nº 3, rejeitando, simultâneamente, a acusação deduzida contra os arguidos.
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3 - Em conformidade com o disposto nos artigos
280º, nºs 1, alínea a) e 3 da Constituição e 70º, nº 1, alínea a), 72º, nº 1, alínea a), e 3 e 75º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção da Lei nº
85/89, de 7 de Setembro, trouxe o Ministério Público, daquele despacho, recurso obrigatório a este Tribunal.
Nas alegações entretanto oferecidas pelo senhor Procurador-Geral Adjunto, concluiu-se do modo seguinte:
1º - A norma do nº 3 do artigo 16º do Código de Processo Penal não viola qualquer norma ou princípio constitucionais;
2º - Deve, em consequência, conceder-se provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de não inconstitucionalidade.
O recorrido não contralegou.
Atenta a circunstância de a matéria versada no presente processo ter sido já objecto de inúmeras decisões por parte deste Tribunal, constituindo-se a propósito uma reiterada e pacífica jurisprudência, o relator entendeu que a causa podia ser julgada independentemente de vistos.
Cabe apreciar e decidir
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II - A fundamentação
1 - Tem vindo este Tribunal a decidir, por forma constante e uniforme, como bem se extrai de uma já extensa corrente jurisprudencial (cfr. por todos os Acórdãos nºs 393/89, 435/89, 31/91 e 212/91, Diário da República, II série, de, respectivamente, 14 de Setembro de 1989, 21 de Setembro de 1989, 25 de Junho de 1991 e 13 de Setembro de 1991), que a norma do artigo 16º, nº 3 do Código de Processo Penal, conjugada com a norma do nº 4 do mesmo preceito, não sofre de qualquer inconstitucionalidade.
Há-de dizer-se que continuam inteiramente válidas e procedentes as razões que têm servido de suporte a este entendimento jurisprudencial, não representando assim os desenvolvimentos subsequentes, no essencial, mais do que uma reiteração daquelas decisões, bem como da fundamentação a que elas se ancoraram.
E, pese embora o facto de a decisão recorrida, ao desaplicar a norma sob sindicância - artigo 16º, nº 3 do Código de Processo Penal - não ter feito apelo a todas as disposições e princípios constitucionais que têm vindo a servir de parâmetro de referência na avaliação da sua legitimidade constitucional, vai agora proceder-se a uma breve apreciação de todas elas, em ordem a um visionamento completo desta questão.
Vejamos então.
O artigo 16º do Código de Processo Penal, na parte que aqui importa considerar, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 387-E/87, de
29 de Dezembro, dispõe do modo seguinte:
'........................................
3 - Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos no artigo 14º, nº 2, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou em requerimento, quando for superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a três anos ou medida de segurança de internamento por mais do que esse tempo..........................................
Para a exacta compreensão do sentido e alcance deste preceito, que delimita a competência do tribunal singular no julgamento dos feitos-crimes, importa ter presente a estatuição contida nos artigos 13º e
14º do mesmo código, que dispõem, respectivamente, sobre a competência do tribunal do júri e sobre a competência do tribunal colectivo.
O esquema de repartição de competências entre o tribunal do júri, o tribunal colectivo e o tribunal singular, resultante da aplicação conjugada deste bloco normativo, sofre uma especial e particular inflexão por interferência da assinalada regra constante do nº 3 do artigo 16º: certos crimes que, em princípio deveriam ser julgados pelo tribunal colectivo, e, em alguns casos, até pelo tribunal do júri [crimes referidos no artigo 14º, nº 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, como 'crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa' ou como 'crimes cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for superior a três anos de prisão'], serão afinal julgados pelo tribunal singular sempre que o Ministério Público 'entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a três anos ou medida de segurança de internamento por mais do que esse tempo', e, nessa situação, por força do disposto no nº 4 do artigo 16º, o tribunal singular ficará impedido de aplicar pena de prisão ou medida de segurança de internamento superior a três anos.
A circunstância de a lei subtrair ao tribunal colectivo (e, como se viu, ao tribunal do júri) para a atribuir ao tribunal singular, a competência para o julgamento de crimes puníveis com prisão cujo máximo excede três anos não é, em si mesmo, inconstitucional. A questão está, porém, em saber se, através dessa alteração da regra geral de competência e da interferência que na sua dinâmica aplicativa se cometeu ao Ministério Público, não resulta violada nenhuma norma ou princípio constitucional, nomeadamente, as normas invocadas no despacho recorrido.
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2 - Aos tribunais, órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (artigo 205º, da Constituição na versão vigente, saída da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho; artigos 205º e 206º da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro).
Neste preceito, a que outros se poderiam associar a título puramente acessório [os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei; as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades (artigos 206º e 208º, da versão vigente)], reside o núcleo essencial do princípio da reserva da função jurisdicional.
Mas este princípio constitucional não é minimamente afectado pela norma do artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Na verdade, no esquema de aplicação deste preceito, quem julga é o juiz e não o Ministério Público; é ao juiz que pertence decidir se há ou não condenação e, em função desse juízo, fixar depois a medida concreta da pena, para o que haverá de mover-se dentro da moldura abstracta fixada na lei.
A pena que o juiz pode aplicar está definida na lei
- e não apenas na lei substantiva que define o tipo legal de crime, mas também na norma do artigo 16º do Código de Processo Penal, que, conjugado com o nº 4 do mesmo preceito fixa em três anos de prisão o limite máximo da pena aplicável - em termos de precisão e nitidez suficientes para cumprir, a mais que uma função de garantia do arguido, as exigências feitas ao legislador pela separação que deve existir entre os poderes (a competência) dele e os do julgador; e, bem assim, para poder servir de fundamento normativo da decisão a proferir pelo juiz e para possibilitar o controlo dessa mesma decisão, impedindo o arbítrio.
Vale isto por dizer que a norma em causa não colide também com o princípio da legalidade penal, consagrado no artigo 29º, nº 1, da Constituição, que, no caso, traça os limites da independência do juiz (para além, naturalmente, de servir de garantia dos direitos do arguido).
É certo, como assinala Figueiredo Dias, 'Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal', Jornadas de Direito Processual Penal- O Novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, 1988, pp. 3 e sgts. e 19 e sgts., que o Ministério Público, ao utilizar a faculdade concedida pelo artigo 16º, nº 3, está a fazer 'aplicação do direito' (porém, não jurisprudência), desse modo determinando, 'em certa medida, o sentido da decisão final'.
Simplesmente, como também acentua aquele autor, qualquer acto próprio de um sujeito processual - nomeadamente a opção de recorrer ou não recorrer - co-determina o sentido da decisão final. E, do mesmo modo, toda a decisão tomada pelo Ministério Público no exercício da acção penal
- verbi gratia, ao decidir-se por deduzir acusação ou arquivar o processo - é também 'aplicação do direito'.
Por outro lado, podendo dizer-se que os poderes do juiz são limitados para além do que resulta da lei penal substantiva aplicável, quando o Ministério Público faz uso da faculdade concedida pelo artigo 16º, do Código de Processo penal, há-de reconhecer-se, como também põe em relevo Figueiredo Dias (ob e loc. cit.) que os poderes dos juizes são limitados por
'inúmeros outros comportamentos dos sujeitos processuais, nomeadamente aquele em que se traduz a fixação do objecto do processo pelo Ministério Público, ou
- de uma forma ainda mais paradigmática para o caso aqui em discussão - aquele outro que põe em funcionamento a proibição de reformatio in peius'.
O Ministério Público, ao usar daquela faculdade, condiciona a fixação concreta da pena, mas ao proceder assim, actua enquanto
'porta voz que é do poder punitivo do Estado' e 'no exercício de um poder expressamente previsto na lei', não invadindo por qualquer forma a competência do juiz ou limitando a sua independência.
Pode dizer-se assim, na sequência do exposto, que não se verifica qualquer violação do disposto nos artigos 205º, 206º e 208º da Constituição.
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3 - Nos diversos arestos do Tribunal Constitucional integrativos da jurisprudência a que atrás se faz alusão (cf. supra, II, 1), também se exclui que a norma do artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal colidisse, por qualquer forma, com algumas das garantias do processo criminal, consagradas no artigo 32º da Constituição, mais concretamente, nos seus nºs 7, 1 e 5, como havia sido entendido pelas correspondentes decisões que ali foram objecto de sindicância.
Nos termos do artigo 32º, nº 7, do texto constitucional 'nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior' o que consubstancia o chamado princípio do juiz natural ou do juiz legal (cf. sobre esta matéria, Figueiredo Dias 'Sobre o sentido do princípio jurídico-constitucional do `juiz natural', Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 111º, pp. 83 e sgts.).
Ao nível processual representa este princípio uma emanação do princípio da legalidade em matéria penal, tendo a ver com a independência dos tribunais perante o poder político e proibindo 'a criação (ou a determinação) de uma competência ad hoc (de excepção) de um certo tribunal para uma certa causa - em suma, os tribunais ad hoc)'.
Sendo este o sentido e o alcance do princípio do juiz natural, é manifesto que não é ele violado pela norma sob sindicância, porquanto nela não se determina o tribunal competente de forma arbitrária, discricionária ou discriminatória. Lançando mão de critérios objectivos como são os critérios legais de determinação concreta da pena, o legislador limita-se a permitir a utilização do chamado método de determinação concreta da competência para a identificação do tribunal competente para o julgamento.
Este método - da determinação concreta da competência-, oposto ao método da determinação abstracta da competência, não tem sido o tradicional entre nós, sendo no entanto corrente em países onde igualmente se acha consagrado o princípio do juiz natural (cf. Figueiredo Dias, Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal, cit.).
Deste modo, só uma 'desabituação da nossa doutrina e jurisprudência, motivada pela tradição legislativa, ao chamado método de determinação concreta da competência, pode explicar que, no artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal, se queira ver um qualquer afrontamento ao princípio do juiz natural'.
Ademais, como acentua ainda Figueiredo Dias 'Sobre o sentido do princípio jurídico-constitucional do `juiz natural', cit, 'não há qualquer razão para supor que, em julgamento que tenha lugar por força do disposto no artigo 16º, nº 3, perca aplicabilidade o disposto no artigo 359º. Quer dizer, pois, que se aí surgir uma alteração substancial dos factos descritos na acusação - e que terão servido para o Ministério Público proceder à determinação concreta da competência - ou na pronúncia, com efeito agravante, isso determinará a incompetência do tribunal singular e dará lugar, consequentemente, a um novo processo perante o tribunal colectivo ou o do júri'.
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4 - Garantindo o artigo 32º, nº 1, da Constituição que 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa', há-de este configurar-se, seguramente, como um processo justo e leal, não sendo admissível, em caso algum, que se encurtem de forma intolerável ou desproporcionada as garantias de defesa.
Apesar de o julgamento do tribunal singular oferecer ao réu, em princípio, menores garantias que o julgamento do tribunal colectivo (ou do tribunal do júri), desde logo, porque aumenta a margem de erro na apreciação dos factos e a possibilidade de uma decisão menos justa, ainda assim a norma em questão não envolve um encurtamento insuportável das garantias de defesa.
Na verdade, o artigo 16º, nº 4, do Código de Processo Penal impõe que o tribunal singular, cuja intervenção foi determinada ao abrigo do nº 3 do mesmo preceito, não possa aplicar pena superior aquela que corresponde ao limite da sua competência natural, isto é, pena com o limite máximo de três anos, razão por que não pode falar-se assim em violação do princípio das garantias de defesa.
Todavia, sempre se poderá objectar que a norma em apreço, deixando ao critério do Ministério Público a escolha do tribunal do julgamento (um tribunal singular ou um tribunal colectivo), abre a possibilidade de uma manipulação ilegítima da competência para julgar.
Mas a objecção não tem valimento.
Desde logo, porque o Ministério Público, no domínio do processo penal, não é uma parte empenhada, a todo o transe, na condenação do réu. Ao contrário, é um órgão de justiça empenhado na 'descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade' (cf. artigo 53º, nº 1, do Código de Processo Penal), devendo a sua actuação pautar-se por uma 'incondicional intenção de verdade e de justiça - tão incondicional como a do juiz'.
Por outro lado, se as coisas assim não se passarem
- o Ministério Público ao desencadear a intervenção do tribunal singular não agiu movido por critérios de estrita legalidade - sempre restará ao réu o recurso para o tribunal da Relação (cf. 399º e 427º, conjugadas com o artigo
432º, todos do Código de Processo Penal).
A tudo isto acresce - e decisivamente, para ajuizar da constitucionalidade de uma dada norma legal, há-de partir-se da sua correcta aplicação e não já de uma aplicação perversa ou originada em fins anómalos e 'inconfessáveis'.
Há-de assim concluir-se no sentido de a norma do artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal, não colidir por qualquer forma com as garantias de defesa asseguradas pelo artigo 32º, nº 1, da Constituição.
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5 - E o mesmo se poderá desde já adiantar tocantemente ao princípio da acusação consagrado no artigo 32º, nº 5, da Constituição onde se prescreve que 'o processo criminal tem estrutura acusatória'.
O sentido deste princípio é o de a entidade que investiga preliminarmente o facto e acusa ter de ser distinta da entidade julgadora. O julgador há-de desenvolver a sua actividade (de investigação e julgamento) dentro dos limites postos pela acusação, e esta tem de ser deduzida por outro órgão, dele diferenciado (cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1981, pp. 136 e sgts.).
Ora o princípio da acusação, em nada é violado pela norma do artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Na verdade, como já se disse a outro propósito, é o Ministério Público quem acusa e o juiz quem julga, cabendo a este fixar a medida concreta da pena, movendo-se para tanto dentro da moldura abstracta fixada na lei.
Se é o Ministério Público quem fixa o se e o objecto concreto da actividade processual do juiz, é este quem julga os factos constantes da acusação e decide sobre a condenação ou absolvição do réu.
Deste modo, aquela norma em nada é desconforme à estrutura acusatória do processo penal e ao princípio estabelecido no artigo
32º, nº 5, da Constituição.
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6 - Em conformidade com o disposto no artigo 221º, nº 1, da Constituição (na versão da Lei nº 1/89, de 8 de julho), compete ao Ministério Público 'representar o Estado, exercer a acção penal, defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar'.
Quando o Ministério Público requer a intervenção do juiz singular para julgar infracções que, por serem puníveis com prisão que no seu limite máximo excede os três anos, deviam, em princípio ser julgadas pelo tribunal colectivo, está, em verdadeira análise, a exercer a acção penal. E a exerce-la de certo modo, precisamente manifestando o desejo da communitas civium
- que ele representa - e agindo de harmonia com critérios fixados na lei, de que ao réu não se aplique pena de prisão superior a três anos.
Esta forma de procedimento do Ministério Público, do mesmo modo que não representa qualquer invasão da esfera de competência do juiz, também não traduz um qualquer excesso relativamente às funções que o texto constitucional comete aquela magistratura.
E pode dizer-se que a norma em causa também não viola o disposto no artigo 221º, nº 1 da Constituição (artigo 224º, nº 1, na versão da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro).
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7 - Há-de dizer-se não existir também qualquer violação do princípio da igualdade.
A disposição legal questionada, não consente que o Ministério Público, perante situações similares, opte livremente pelo recurso ao tribunal singular ou ao tribunal colectivo, segundo critérios de ocasião, discricionários e alheios a um rigor de imparcialidade e objectividade permanentes.
A regra que resulta da lei é perfeitamente clara: em todos os casos em que se afigurar objectivamente ajustada ao caso, de acordo com os critérios objectivos pré-determinados na lei, uma pena de prisão ou uma medida de segurança de internamento de duração não superior a três anos, o Ministério Público deve requerer a intervenção do tribunal singular.
A lei impõe ao Ministério Público, que é um órgão de justiça, vinculado à descoberta da verdade e à realização do direito, e sujeito a critérios de estrita objectividade, que nas suas intervenções processuais dispense um tratamento igual às situações objectivamente iguais, em termos de não se poder invocar aqui qualquer lesão do princípio da igualdade.
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8 - Por fim, considerar-se-á a existência de uma possível inconstitucionalidade orgânica, da norma sob sindicância, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea c) do texto constitucional.
Dir-se-á que a norma do artigo 16º, nº 3, quando permite a redução a 3 anos dos limites máximos das penas abstractas, é, nos seus efeitos, uma norma essencialmente de direito penal substantivo, na medida em que interfere com o esquema punitivo de certas infracções penais, podendo citar-se em abono deste entendimento o Acórdão do Tribunal Constitucional nº
455/89, Diário da República, I série, de 28 de Agosto de 1991.
Ora, a autorização legislativa constante da Lei nº
43/86, de 26 de Setembro, visava matéria de processo penal, não permitindo que o Governo viesse a alterar as penas fixadas no Código Penal.
Assim, mesmo que a norma em causa comporte também uma vertente de ordem processual, sempre deverá ser referenciada com os limites daquela autorização legislativa em matéria de competência, ao estabelecer na alínea 6) do nº 2 do artigo 2º a 'eliminação, em nome do princípio do juiz natural, da discricionariedade na determinação do juiz competente'.
Tem-se por seguro que esta argumentação não pode proceder.
A Assembleia da República autorizou o Governo
[artigo 2º, nº 2, alínea 58), da Lei nº 43/86, de 26 de Setembro] a editar normação através da qual possam vir a ser julgados 'pelo tribunal singular certos tipos legais de crime cuja pena máxima abstractamente aplicável for superior a três anos de prisão mas em que a apreensão da prova não ofereça grande dificuldade, bem como os crimes que não sejam, na óptica do Ministério Público, passíveis em concreto de pena ou medida de segurança de duração superior a três anos'.
Na continuidade desta credencial parlamentar, o artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal (nº 2 no texto originário) veio prescrever que a sujeição de tais infracções a julgamento pelo tribunal singular ficava dependente do entendimento do Ministério Público no sentido de
'não dever ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a três anos ou medida de segurança de internamento por mais do que esse tempo'.
É assim manifesto que, no plano da sua regularidade orgânica - aquela que agora se considera - a norma do artigo 16º, nº 3, editada pelo Governo, mostra-se respeitadora dos diversos parâmetros de referência que o artigo 168º, nº 2, da Constituição, impõe às leis de habilitação legislativa.
Com efeito, nesta se contém uma credencial, perfeitamente definida em termos de sentido e objecto, para o estabelecimento de uma certa regra de competência, dependente de determinados critérios
(sujeitos a regras de legalidade e objectividade) a operar pelo Ministério Público.
Por isso não se pode falar aqui e a propósito desta específica questão, em ausência ou insuficiência de autorização legislativa, como também em violação da reserva parlamentar.
De outro lado, não existe qualquer contradição entre a estatuição contida nas alíneas 6) e 58) do nº 2, do artigo 2º da Lei nº
43/86, as quais se reportam a situações ditadas por objectivos distintos e autónomos.
Importa aliás assinalar que na disciplina da competência por conexão, sem embargo de, em nome do princípio do juiz natural, se eliminar a discricionariedade na determinação do juiz competente, ainda assim se consentem alguns desvios aquele princípio estabelecidos de acordo com critérios predeterminados (cfr. artigos 24º e ss. do Código de Processo Penal).
Assim, não se tem também por verificada qualquer inconstitucionalidade orgânica da norma em referência.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho impugnado que deve ser reformulado em consonância com o agora decidido sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 20 de Janeiro de 1994
Antero Alves Monteiro Dinis Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa António Vitorino Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa