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Processo nº 177/10
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente A., Lda. e é recorrida a Fazenda Pública, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 13 de Janeiro de 2010.
2. Em 27 de Abril de 2010 foi proferida decisão sumária, ao abrigo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 78º-A da LTC, pela qual se entendeu não tomar conhecimento do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«O recurso para o Tribunal Constitucional interpõe-se por meio de requerimento no qual se indique a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie (artigo 75º-A, nº 1, da LTC).
Convidada a indicar, com precisão, a(s) norma(s) cuja apreciação pretendia, a recorrente continua a não identificar a interpretação acolhida pelo Supremo Tribunal Administrativo que considera inconstitucional. Continua, pois, a não identificar a “interpretação contrária à Constituição” que o acórdão recorrido acolhe e a que procede. Da resposta ao convite decorre, quando muito, uma precisão das disposições legais a que reporta a interpretação que não chegou a identificar.
É entendimento reiterado deste Tribunal que o recorrente pode requerer a apreciação de uma norma, considerada esta na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação, o que abrange a interpretação resultante da conjugação de vários preceitos legais (cf., entre muitos, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 232/2002, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Mas neste último caso tem o ónus de enunciar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo do preceito (ou dos preceitos lidos de forma conjugada) que considera inconstitucional (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 21/2006, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), uma vez que o objecto do recurso é definido no requerimento de interposição de recurso (cf., entre muitos outros, Acórdão do Tribunal Constitucional nº 293/2007, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Como a recorrente não satisfez um dos requisitos do artigo 75º-A da LTC, justifica-se a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nºs 1 e 2, da LTC)».
3. Notificada desta decisão, a recorrente vem agora reclamar para a conferência, ao abrigo do nº 3 do artigo 78º-A da LTC, nos seguintes termos:
«13. Recorde-se que a fundamentação da mesma assenta no facto de não ter sido satisfeito um dos requisitos do artigo 75.º-A, mais concretamente, a indicação, 'com precisão, a(s) norma(s) cuja apreciação pretende e a(s) norma(s) ou princípio(s) constitucional (ais) que considera violado(s)'.
14. Atento o requerimento de 19 de Março, entende a Reclamante ter cumprido cabalmente o exigido pelo legislador para interposição de recurso.
15. Nos termos do citado artigo 75.º-A - Interposição de recurso - o legislador impõe:
(…)
16. Face às identificadas exigências, a Reclamante indicou:
(…)
17. E finalmente, atenta a matéria controvertida, entende a Reclamante que, não só identificou as normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada, mas também, e com especial relevância, o exacto sentido normativo dos preceitos que considera inconstitucionais,
18. Assim, a Reclamante começou por referir que 'o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, de 13 de Janeiro de 2010, acolhe e procede a interpretação contrária à Constituição'.
19. Mais referindo que 'a questão jurídica subjacente respeita à verificação ou não da prescrição relativa a dívida fiscal referente ao exercício de 1994', pelo que, 'O problema jurídico subjacente respeita pois à sucessão/aplicação de leis no tempo'.
20. Estando pois em causa um problema de sucessão de leis no tempo, que, por isso mesmo, convoca necessariamente várias normas para sua resolução, a ora Reclamante referiu que:
'a um facto tributário ocorrido ao abrigo do Código de Processo Tributário, o referido Acórdão aceita a aplicação de normas previstas em diploma não vigente no momento da verificação daquele facto, ou seja, da Lei Geral Tributária, Fá-lo ao abrigo das normas gerais de aplicação das leis no tempo previstas no artigo 5º do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro (que aprova a Lei Geral Tributária), no artigo 12º da Lei Geral Tributária e nos artigos 12º e 297º do Código Civil. E, em especial, aplica ao caso concreto, também em virtude de tal interpretação, o artigo 49º da Lei Geral Tributária, em especial o nº 1, na redacção introduzida pela Lei nº 100/99, de 26 de Julho, o nº 3, na redacção introduzida pela Lei nº 100/99, de 26 de Julho, e o nº 4' (sublinhado da Reclamante).
21. Especificando que, o que sanciona, 'por contrária à Constituição, e respectiva aplicação ao concreto é pois a interpretação conjugada de todas aquelas normas'.
22. Face a esta especificação, a decisão sumária apenas descortina uma maior 'precisão das disposições legais a que reporta a interpretação que não chegou a identificar'.
23. O que, atento o exposto, não é manifestamente rigoroso.
24. Como facilmente se depreenderá, o requerimento de interposição de recurso não deve nem pode transmutar-se em encapotadas alegações de recurso.
25. Atento o específico problema jurídico em causa - sucessão de leis no tempo - seria muito difícil, senão materialmente impossível, abordar o problema da interpretação inconstitucional direccionada à sucessão de leis no tempo, sem tal configurar verdadeiras alegações de recurso que, naturalmente, não é o que exige ou pressupõe o legislador.
26. O que assume especial premência no caso concreto recorde-se, por estar em causa precisamente um problema de sucessão de leis no tempo.
27. E que, por exigência e natureza intrínseca, implica que se perceba quais as normas previstas em vários regimes concretamente aplicadas e quais as normas gerais que fundamentam ou não essa aplicação retroactiva.
28. Entende pois a Reclamante que cumpriu integralmente os requisitos previstos no artigo 75º-A.
B) A relevância da exigência legal de indicação da peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade
29. Impõe o n.º 2 do artigo 75º-A que, nos casos em que o recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º - como sucede no caso concreto - seja identificada a 'peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade'.
30. Como se analisou, a ora Reclamante cumpriu esta exigência, tendo informado que suscitou aquela questão no recurso interposto em 12 de Outubro de 2009 junto do Supremo Tribunal Administrativo – 2.ª Secção Tributária, Processo nº. 1148/09.
31. A exigência legal tem, naturalmente, justificação e fundamentação.
32. Uma dessas razões diz respeito a matéria intimamente relacionada com o próprio contencioso constitucional, materializada nas exigências previstas nos n.ºs 2, 3, 4, e 5 do artigo 70.º.
33. Porém, pode ainda afirmar-se que a indicação da peça processual releva para elucidação de outro tipo de questões, como a que se suscita em concreto nos presentes autos, isto é, a que respeita a saber se a interposição de recurso se encontra bem analisada e exposta.
34. Para tanto convirá atender ao facto de, no referido recurso interposto junto do STA, a ora Reclamante ter suscitado a questão da inconstitucionalidade da interpretação que pudesse vir a ser acolhida pelo ST A.
35. E fê-lo nos seguintes termos que se transcrevem:
(…)
36. Pelo que, dúvidas não restam quer da intenção de submeter a apreciação da interpretação acolhida - ou a acolher - a sindicância do Tribunal Constitucional, quer da materialidade subjacente a tal interpretação que, a vir a ser acolhida, como se verificou efectivamente, poderia configurar interpretação contrária à Constituição.
37. Entendendo a Reclamante que, naturalmente, em sede de interposição de recurso junto do Tribunal Constitucional, que não de alegações de recurso, não poderia ter expendido toda a sua argumentação como o fez antes e como o fará em sede, precisamente, de alegações de recurso junto do Tribunal Constitucional, não pode deixar de referir que as alegações sobre a inconstitucionalidade já produzidas no STA preencheriam qualquer falta ou incompletude do requisito que a decisão ora reclamada entendeu que 'a recorrente não satisfez'.
38. Com efeito, no momento em que é proferida a decisão sumária ora reclamada, o Tribunal estava na posse da argumentação da ora Reclamante sobre as normas cuja inconstitucionalidade pretendia que o Tribunal apreciasse e, concretamente, sobre a interpretação conjugada dessas mesmas normas.
39. Para além disso, como se percebeu já, a importância das questões jurídico-constitucionais suscitadas dificilmente se harmoniza com a rejeição de recurso operada através de decisões sumárias que, corporizando inegável importância de gestão processual-constitucional, não devem contudo sobrepor-se àquela relevância.
40. Em suma, é ao Tribunal Constitucional que compete o ónus de, respeitadas naturalmente que sejam as regras básicas, velar pelo respeito da Lei Fundamental e da harmonização constitucional de todo o ordenamento jurídico e de todas as judicativo-decisórias realizações do direito.
C) A letra da lei no n.º 1 do artigo 75.º-A
41. Acresce que, exige o n.º 1 do artigo 75º-A ser necessária a indicação da 'norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie'.
42. Não está aqui em causa, claro está, nem uma caduca e vetusta interpretação positivista da lei, nem pôr em causa a sedimentada jurisprudência constitucional sobre a cisão pressuposta na distinção entre inconstitucionalidade de uma norma e inconstitucionalidade de uma interpretação de uma qualquer norma.
43. Porém, ainda assim, como bem se sabe, o que o legislador refere tão-só e apenas é a indicação da norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie.
44. E, manifestamente, tal foi feito pela ora Reclamante.
45. E o Tribunal Constitucional não o desconhece pelo que também não é despiciendo o facto de no convite já aludido, apenas se referir: 'indicar, com precisão, a(s) norma(s) cuja apreciação pretende e a(s) norma(s) ou principio(s) constitucional (ais) que considera violado(s)'.
46. E não, da interpretação das normas cuja apreciação pretende - ou, se se preferir, com Castanheira Neves, da normatividade da norma.
47. Relembrando-se que em tal convite refere-se que, 'O recurso para o Tribunal Constitucional interpõe-se por meio de requerimento no qual se indique a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie (artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC). Convidada a indicar, com precisão, a(s) norma(s) cuja apreciação pretendia, a recorrente continua a não identificar a interpretação acolhida pelo Supremo Tribunal Administrativo que considera inconstitucional. Continua, pois, a não identificar a 'interpretação contrária à Constituição' que o acórdão recorrido acolhe e a que procede'.
48. Ou seja, começando por analisar o n.º 1 do artigo 75.º-A que apenas faz referência à norma, o Tribunal Constitucional passa daqui para a não identificação da interpretação.
49. Além de tudo o exposto, deve ainda relevar-se uma outra importante consideração: o Tribunal Constitucional, na fundamentação da decisão ora reclamada, suporta-se no Acórdão n.º 21/2006.
50. O que se poderá concluir da consulta a tal processo-
51. Que, contrariamente ao que sucedeu no presente processo, o então Recorrente colocou ao Tribunal Constitucional, através da interposição de recurso, a questão de forma bem mais deficiente do que a agora analisada.
(…)
55. Esta realidade não é compatível com a questão suscitada no presente processo, pelo que entende a Reclamante que, mesmo após convidada para tal, cumpriu cabalmente as exigências legais das quais depende a interposição de recurso perante o Tribunal Constitucional.
III – Do convite formulado à ora reclamante nos termos do n.º 6 do artigo 75.º·A – a 'emboscada constitucional'
56. Como se referiu já amplamente, antes da decisão ora reclamada a Reclamante foi convidada a aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso.
57. Em tal despacho, de 16 de Março de 2010, o Tribunal Constitucional convida 'a recorrente (...), a indicar, com precisão, a(s) norma(s) cuja apreciação pretende e a(s) norma(s) ou princípio(s) constitucional (ais) que considera violado(s)'.
58. Como também facilmente se depreende, o convite em causa refere-se tão-só e unicamente à identificação das normas ou princípios que considera violados.
59. E não, como posteriormente vem a afirmar o Tribunal Constitucional, o exacto sentido normativo do preceito (ou dos preceitos lidos de forma conjugada) que considera inconstitucional.
60. Ora, se desde o início era este o problema que enfermava o requerimento de interposição de recurso, pergunta-se legitimamente, porque razão é que no convite formulado não foi feita qualquer referência à temática da interpretação das normas, mas apenas à indicação das normas ou princípios que a Reclamante considerava violados.
61. Não pode negar-se que, verdadeiramente, e com o devido respeito, que é muito e aqui gostosamente se tributa, a ora Reclamante sente ter sido objecto de 'emboscada constitucional'.
62. De forma simples mas elucidativa: no convite efectuado pelo Tribunal Constitucional, este incita a Reclamante a indicar com precisão - tão-só e apenas - a norma que considera violada. A Reclamante identifica essa norma. O tribunal Constitucional rejeita o recurso defendendo que o que a Reclamante devia ter indicado era a interpretação dessa norma...
63. Porque injusta e ilegal, a decisão sumária não pode manter-se no ordenamento jurídico, devendo pois ser revogada».
4. Notificada, a recorrida não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos decidiu-se não tomar conhecimento do objecto do recurso, por a recorrente não ter satisfeito um dos requisitos do artigo 75º-A da LTC: a indicação da norma cuja apreciação pretendia.
A reclamante começa por sustentar que identificou as normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada, bem como o exacto sentido normativo dos preceitos que considera inconstitucionais, por referência ao requerimento de interposição de recurso e à resposta ao convite que lhe foi dirigido ao abrigo do disposto no nº 6 do artigo 75º-A da LTC. O certo é que, em ambas as peças processuais, o recorrente não identificou a interpretação contrária à Constituição que o acórdão recorrido acolhia e a que procedia, ou seja, qual era afinal a interpretação conjugada das várias disposições legais indicadas – artigos 5º do Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro, 12º da Lei Geral Tributária, 12º e 297º do Código Civil e 49º, nºs 1, 3 e 4, da Lei Geral Tributária – que considerava contrária à Constituição. Não cumpriu, pois, o ónus que sobre si impendia de indicar a norma cuja inconstitucionalidade pretendia apreciada (artigo 75.º, nº 1, segunda parte), com a consequência de não ter definido o objecto do recurso interposto.
Constituindo entendimento reiterado deste Tribunal que se considera norma a norma na sua totalidade, mas também a norma segundo certa interpretação (o que abrange a interpretação resultante da conjugação de vários preceitos legais), o recorrente tem o ónus, de identificar no requerimento de interposição de recurso, definindo o respectivo objecto, a interpretação normativa cuja conformidade constitucional pretende ver apreciada (cf. Acórdãos nºs 232/2002 e 293/2006, já citados na decisão reclamada). Não procede, por isso, a alegação de que a recorrente foi convidada apenas para precisar as normas cuja apreciação pretendia. Face àquele entendimento, o convite abrangeu, necessariamente, a precisão da interpretação normativa cuja apreciação tinha sido requerida. Não podendo concluir-se, como conclui a reclamante, que tal poderia confundir-se com as alegações de recurso.
Não procede, também, face ao fundamento da decisão reclamada, a alegação de que a recorrente suscitou, durante o processo e de forma adequada, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a questão de constitucionalidade que pretendeu colocar no requerimento de interposição de recurso. Trata-se de um requisito do recurso de constitucionalidade, do qual depende a legitimidade para recorrer (artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC), que não dispensa o recorrente da satisfação dos requisitos do requerimento de interposição respectivo (artigos 75º-A, 76º, nº 1, e 78º-A, nº 2, da LTC), designadamente quanto à indicação da norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie.
Muito menos procede a alegação de que a realidade subjacente ao Acórdão nº 21/2006, referido na decisão reclamada, não é compatível com a questão suscitada pela recorrente. Este aresto do Tribunal foi chamado à decisão sumária com o objectivo estrito de suportar o entendimento de que o recorrente tem o ónus de enunciar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo do preceito (ou dos preceitos lidos de forma conjugada) que considera inconstitucional, quando requer a apreciação da norma segundo determinada interpretação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 30 de Junho de 2010
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão