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Processo n.º 515/10
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são reclamantes A. e B. e é reclamado o Ministério Público, vêm os primeiros reclamar, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho de 27 de Maio de 2010 que não admitiu recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
2. O despacho que é objecto da presente reclamação tem, para o que agora releva, o seguinte teor:
« (…) o recurso, enquanto interposto pelos arguidos A. e B., não é de admitir.
Com efeito, esses arguidos, no recurso para a relação, concretamente nas conclusões 37 a 40, não questionaram o conteúdo de qualquer norma. Reagiram à decisão condenatória com fundamento na aplicação do artigo 52.º do Código Penal (ao qual nem sequer se referem), numa dimensão constitucionalmente não admitida.
O que impugnam não é a norma, em si mesma considerada, mas a aplicação que dela foi feita pelo tribunal. Alegam, aliás, no requerimento de interposição de recurso:
“Pretendem, pois, ver aqui apreciada a inconstitucionalidade da decisão plasmada no acórdão proferido na 1.ª instância e acolhida, também, no Tribunal da Relação do Porto no sentido referido”.
Não se trata, por conseguinte, de uma inconstitucionalidade normativa, mas antes de uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial.
Daí que não se justifique o convite aos arguidos A. e B. para indicarem “a norma cuja inconstitucionalidade” pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie (n.os 1 e 5 do artigo 75.º-A, da Lei n.º 28/82).
Não sendo o recurso de admitir, por a questão colocada não se conter nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente, na modalidade do amparo contra decisões directamente violadoras da Constituição».
3. Na motivação do recurso para o Tribunal da Relação, os recorrentes concluíram, entre o mais, o seguinte:
«37. Os arguidos A. e B. foram condenados em regra de conduta que, segundo cremos, viola a licitude constitucional no que tange ao princípio da proporcionalidade a que se acham sujeitas todas as restrições liberdade dos cidadãos, principio este assinalado no artg. 18 da CRP.
38. Os arguidos foram condenados, em cúmulo jurídico, na pena de quatro anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova e a regra de conduta consistente na proibição de frequentar estabelecimentos de diversão nocturna.
39. Atentos os ilícitos penais pelos quais se acham condenados afigura-se ser absolutamente desproporcionada a regra de conduta imposta, por não se vislumbrar qualquer causalidade entre o fim assinalado para as regras de conduta (reintegração do agente na sociedade) e a conduta assumida pelos arguidos e patente nos relatórios sociais e factos provados relativos às condições pessoais, profissionais e económicas».
4. O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional tem o seguinte teor:
«1. Os arguidos A. e B. foram condenados em regra de conduta que, segundo cremos, viola a ilicitude constitucional no que tange ao princípio da proporcionalidade a que se acham sujeitas todas as restrições à liberdade dos cidadãos art. 18º. da C.R.P., já que foram condenados, em cúmulo jurídico, na pena de quatro anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova e a regra de conduta consistente na proibição de frequentar estabelecimentos de diversão nocturna.
Atentos os ilícitos penais pelos quais se acham condenados, afigura-se ser absolutamente desproporcionada a regra de conduta imposta, por não se vislumbrar qualquer causalidade entre o fim assinalado para as regras de conduta (reintegração do agente na sociedade) e a conduta assumida pelos arguidos e patente nos relatórios sociais e factos provados relativos às condições pessoais, profissionais e económicas.
Pretende-se, pois, ver aqui apreciada a inconstitucionalidade da decisão plasmada no acórdão proferido na 1ª. Instância e acolhida, também, no Tribunal da Relação do Porto no sentido referido.
2. O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto na al. b) do artº. 70º., nº. 1 da Lei nº. 28/82, de 15 de Setembro.
3. Tal questão foi suscitada na Motivação de Recurso interposto para o Venerando Tribunal da Relação do Porto da decisão condenatória pela 1ª. Vara Criminal do Porto.
4. Os Tribunais não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados – artº. 204º. da C.R.P..
5. A regra de conduta que foi aplicada e no sentido de o foi viola o estabelecido nos artsº.18º. da Constituição da República Portuguesa».
5. Na presente reclamação lê-se que os reclamantes:
«Vêm nos termos do disposto no nº. 4 do art.º. 76º. da Lei nº. 28/82, de 15.11. reclamar para o Tribunal Constitucional da douta decisão proferida a fls. 2539 e 2540, que, pelos fundamentos aí constantes, não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, por com a mesma não concordarem uma vez, que, de facto, o que pretendem ver apreciada é a constitucionalidade da norma aplicada na decisão – art.º. 52º. do C Penal – que permitiu decidir, como se decidiu, em violação do principio da proporcionalidade ínsito no art.º. 18º. da CRP».
6. Neste Tribunal os autos foram com vista ao Ministério Público, que se pronunciou no sentido de a mesma “ser indeferida, por se afigurar, de todo, improcedente”:
«8º
Ora, basta atentar nas sucessivas motivações de recurso, apresentadas pelos ora reclamantes, para confirmar a justeza da decisão do STJ, de não admissão do recurso para este Tribunal Constitucional.
Assim, na motivação de recurso para o Tribunal da Relação do Porto (cfr. fls. 54-93 dos autos), as únicas referências a disposições constitucionais ocorrem a:
- fls. 61-62 (art. 32º, nºs 1 e 5 da Constituição, por violação dos direitos de defesa);
- fls. 85 (princípio da proporcionalidade não terá sido observado, na definição das regras de conduta aplicadas aos arguidos – art. 18º da Constituição);
- fls. 88 (conclusão 10ª – art. 32º, nºs 1 e 5 da Constituição);
- fls. 92 (conclusão 37ª – art. 18º da Constituição).
9º
No entanto, como facilmente se comprova da respectiva leitura, nenhuma destas referências a preceitos constitucionais apresenta uma dimensão normativa, consistindo, antes, numa mera referência genérica às referidas disposições.
O que verdadeiramente está, pois, em jogo, nesta peça processual, é a própria decisão condenatória, e a avaliação, que a mesma decisão fez, da prova produzida.
Ora, tal formulação é manifestamente insuficiente para fundamentar um recurso de constitucionalidade, como decorre de jurisprudência antiga, e assente, deste Tribunal Constitucional.
(…)
14º
Finalmente, na interposição da reclamação, para este Tribunal Constitucional, por não admissão de recurso (cfr. fls. 2 dos autos), os arguidos voltam a precisar que “o que pretendem ver apreciada é a constitucionalidade da norma aplicada na decisão – art. 52º. do C. Penal – que permitiu decidir, como se decidiu, em violação do princípio da proporcionalidade ínsito no art. 18º da CRP.”
Mas não se enuncia, mais uma vez, nenhuma dimensão normativa para a eventual constitucionalidade de tal preceito do Código Penal.
15º
Em causa está, pois - e sempre esteve – a apreciação da inconstitucionalidade da decisão em si própria, nunca se indicando uma qualquer dimensão normativa de preceitos ou princípios constitucionais».
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A presente reclamação tem por objecto o despacho que não admitiu recurso interposto para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento na não suscitação prévia de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa e na circunstância de ser requerida a este Tribunal a apreciação da inconstitucionalidade da própria decisão judicial.
1. Um dos requisitos do recurso interposto é a suscitação prévia e de forma adequada da questão de inconstitucionalidade normativa cuja apreciação é requerida ao Tribunal Constitucional (artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC).
Ora, durante o processo, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, não foi suscitada uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada ao artigo 52.º do Código Penal, referido agora na presente reclamação. Com efeito, na motivação do recurso para o Tribunal da Relação os então recorrentes sustentaram apenas que a regra de conduta em que foram condenados violava a licitude constitucional no que tange ao princípio da proporcionalidade (fls. 85 e 92 dos presentes autos, com especial destaque para a conclusão 37 da motivação).
Uma vez que, durante o processo, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, não foi questionada a conformidade constitucional de qualquer norma, há que confirmar o despacho que não admitiu o recurso.
2. O recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC é interposto de decisões dos tribunais, mas ao Tribunal Constitucional cabe apenas apreciar a conformidade constitucional de normas e não de decisões judiciais.
De acordo com o requerimento de interposição de recurso, os reclamantes pretendem ver “apreciada a inconstitucionalidade da decisão plasmada no acórdão proferido na 1ª. Instância e acolhida, também, no Tribunal da Relação do Porto” (itálico aditado), no sentido de lhes ser aplicada “a regra de conduta consistente na proibição de frequentar estabelecimentos de diversão nocturna”. Isto é, pretendem a apreciação da conformidade constitucional da decisão condenatória e não de uma qualquer norma, não sendo sequer mencionado o artigo 52.º do Código Penal, agora indicado na presente reclamação.
Note-se, admitindo que o requerimento de interposição de recurso ainda pode ser aperfeiçoado na reclamação da decisão que não o admita, que a indicação desta disposição legal não corresponde, de todo, a um aperfeiçoamento, face ao conteúdo inequívoco do que foi requerido – apreciação da inconstitucionalidade da decisão – e ao teor do artigo 52.º daquele Código, desdobrado em vários números e alíneas.
Também quanto a este ponto, há que concluir, pois, que o recurso de constitucionalidade não era admissível.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 22 de Setembro de 2010.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Gil Galvão.