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Processo n.º 830/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, foi interposto recurso pelo Ministério Público, para si obrigatório, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, e dos artigos 70º, n.º 1, alínea a), e 72º, n.º 3, da LTC, da decisão proferida pela Secção Única do Tribunal do Trabalho de Setúbal, em 03 de Julho de 2009 (fls. 96 a 107) que determinou:
i) A desaplicação da norma extraída da alínea m) do n.º 6 do artigo 12º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, tal como rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março, por violação dos artigos 112º, n.º 1, 161º, alínea c), 166º, n.º 3, e 168º, n.ºs 1 e 2, todos da CRP;
ii) A desaplicação da norma extraída do artigo 12º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, na parte em que revogou o artigo 484º da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, por violação do artigo 59º, nºs 1, alínea c), e n.º 2, da CRP.
2. Uma vez notificado, o Ministério Público produziu alegações, das quais constam as seguintes conclusões:
«49º
1. A Lei nº 74/98, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 2/2005, de 24 de Janeiro, nº 26/2006, de 30 de Junho e nº 42/2007, de 24 de Agosto, define e circunscreve rigorosamente o âmbito em que podem ser feitas rectificações a diplomas legais.
2. Subjacente, a um tal quadro jurídico, está a preocupação de assegurar que se não alterem diplomas fora do quadro definido pelos requisitos constitucionais e legais que legitimem uma tal alteração.
3. A Declaração de Rectificação nº 21/2009, ao proceder, nos termos em que o fez, a alterações substanciais no texto do diploma que, aparentemente, vinha rectificar (Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o novo Código do Trabalho), designadamente “recuperando” matéria contra-ordenacional que deixara, entretanto, de vigorar no ordenamento jurídico, por força da versão inicial da referida Lei, viola, assim, os princípios da não retroactividade da lei penal (e contra-ordenacional), da segurança jurídica e da igualdade, decorrentes da Constituição da República Portuguesa (cfr. artigos 9, alínea b), 13º e 29º, nºs 1, 3 e 4).
4. Com efeito, relativamente ao presente recurso, havia certas contra-ordenações de natureza laboral, que se encontravam previstas na Lei 35/2004, de 29 de Julho (anterior Regulamento do Código do Trabalho). Posteriormente, porém, nos termos do art. 12, nº 1, alínea b), da versão original da Lei 7/2009, a Lei 35/2004 foi integralmente revogada, pelo que, no elenco das excepções previstas no nº 6 deste artigo, não se encontrava o art. 484 nº 2 do mesmo diploma, que considerava a violação do art. 245 como contra-ordenação grave; a referência, ao art. 484 da Lei 35/2004, apenas foi introduzida, na referida Lei 7/2009, pela Declaração de Rectificação nº 21/2009, não constando do texto inicial aprovado pela Assembleia da República.
5. Nestes termos, deve julgar-se inconstitucional a norma vertida na alínea m), do nº 6, do artigo 12º do Código do Trabalho, na versão constante da Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março de 2009, mantendo-se, assim, o juízo de inconstitucionalidade feito pelo Tribunal a quo, com as consequências legais.
6. Não se crê, todavia, de concordar com o digno magistrado a quo quanto à invocada inconstitucionalidade decorrente do facto de o art. 12 da Lei 7/2009 ter vindo criar “um vazio legal”, despenalizando uma conduta - por contraposição com a anterior legislação (Lei 35/2004, de 29 de Julho) -, o que, no entender do mesmo magistrado, violaria o artº. 59º. da Constituição.
7. Desde logo, não se crê estar perante uma verdadeira omissão legislativa, pelo menos voluntária. Com efeito, a Lei 7/2009 (cfr. o proémio do nº 6 do art. 12) previa, na sua versão inicial, a necessidade de uma regulamentação ulterior para diversas das suas disposições, apenas não tendo incluído uma referência aos arts. 484 e 485 da Lei 35/2004 (cfr. versão inicial do art. 12 nº 6, al. m), da Lei 7/2009) por aparente esquecimento do legislador, que procurou corrigir tal esquecimento – embora mal – através da Declaração de Rectificação 21/2009.
8. Ou seja, é pelo facto de o digno magistrado a quo ter previamente considerado – e bem, como se viu - que a Declaração de Rectificação 21/2009 era inconstitucional – solução essa, naturalmente, não pretendida pelo legislador – que a omissão legislativa ocorre, não se crendo de punir o legislador por um facto – omissão de um conduta – que, em rigor, não quis cometer.
9. Termos em que, nesta parte, não deve o Tribunal Constitucional aceitar esta parte da argumentação do digno magistrado.» (fls. 154 a 157).
3. Devidamente notificada para o efeito, a recorrida deixou expirar o prazo legal, sem que viesse aos autos apresentar qualquer resposta.
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Quanto à desaplicação da norma extraída da alínea m) do n.º 6 do artigo 12º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, tal como rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de18 de Março, importa notar que tem vindo a consolidar-se neste Tribunal jurisprudência no sentido da falta de interesse na apreciação de questões de constitucionalidade decorrentes da referida declaração de rectificação, sempre que a decisão recorrida adopte outros fundamentos alternativos para afastar a aplicação da norma rectificada (neste sentido, ver Acórdãos n.º 576/09, n.º 584/09, n.º 187/10), todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt). A título de exemplo, destaque-se o Acórdão n.º 576/09:
«2. Segundo a decisão recorrida, a Declaração de Rectificação nº 21/2009, na parte em que alterou a redacção do artigo 12º, nº 6, alínea m), da Lei nº 7/2009, é “nula por várias ordens de razões”: por um lado, é ilegal, porque “não cumpre o disposto no artigo 5º, nº 1, da Lei nº 74/98, de 11 de Novembro; por outro, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 161º, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.
Nestas circunstâncias, revela-se inútil a apreciação da questão de inconstitucionalidade colocada nos autos. De facto, ainda que, em sede de recurso, se viesse a concluir pela conformidade constitucional da norma, subsistiria o fundamento da ilegalidade da mesma, com a consequência de se manter inalterada a decisão de declaração de extinção do procedimento criminal. Este Tribunal tem entendido que, “não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 366/96, Diário da República, II Série, de 10 de Maio de 1996).
Uma vez que um eventual juízo de não inconstitucionalidade da norma em causa nenhuma virtualidade teria de alterar a decisão recorrida, importa concluir, também nesta parte, pelo não conhecimento do objecto do recurso, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC).
(…)
O Tribunal Constitucional tem entendido, em consequência do carácter instrumental da fiscalização concreta da constitucionalidade das normas, que a utilidade do recurso interposto – ou seja, a susceptibilidade de repercussão na decisão recorrida do julgamento da questão de constitucionalidade – surge como condição do seu conhecimento (assim, Acórdãos nºs 169/92, 366/96, 463/94, 420/2001, 634/2003 e 687/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt. Cf., ainda, neste sentido, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional. Inconstitucionalidade e Garantia da Constituição, tomo VI, Coimbra Editora, 2001, p. 207 e s., e Victor Calvete, “Interesse e relevância da questão de constitucionalidade, instrumentalidade e utilidade do recuso de constitucionalidade – quatro faces de uma mesma moeda”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, p. 403 e ss.).
Na fiscalização concreta da constitucionalidade de normas (artigos 280º da Constituição da República Portuguesa e 69º e ss. da LTC) – diferentemente do que sucede na fiscalização abstracta (artigos 281º da Constituição e 62º da LTC) – “tudo se reconduz a um «recurso», que, embora limitado à questão de constitucionalidade (ou equiparada), não chega a autonomizar-se inteiramente do processo (civil, criminal, administrativo, etc.), em que se enxerta” (Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, Almedina, 2007, p. 66). Daí a averiguação da utilidade da apreciação da questão de constitucionalidade por referência ao sentido da decisão recorrida (bem como por referência à natureza final ou não desta decisão – cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 387/2008 e 95/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Procedendo àquela averiguação nos presentes autos, é de concluir, com efeito, que, ainda que o Tribunal Constitucional viesse a concluir pela conformidade constitucional da alínea m) do nº 6 do artigo 12º da Lei nº 7/2009, na redacção dada pela Declaração de Rectificação nº 21/2009, subsistiria o fundamento da ilegalidade desta norma, com a consequência de se manter inalterada a decisão de declaração de extinção do procedimento criminal. Ou seja, é inútil apreciar a inconstitucionalidade da norma indicada no requerimento de interposição de recurso.»
Consequentemente, há que frisar que a decisão recorrida, nestes autos, adoptou um fundamento alternativo, quanto à norma extraída da alínea m) do n.º 6 do artigo 12º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, tal como rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de18 de Março, que corresponde exactamente ao adoptados pelas decisões recorridas que deram lugar aos Acórdãos já supra citados:
«- logo, a Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de18 de Março não cumpre o disposto no art. 5.º n.º 1 da Lei 74/98, de 11 de Novembro, sendo, por isso, ilegal» (fls. 102)
Como tal, por inutilidade processual, decide-se não conhecer da questão de inconstitucionalidade decorrente da decisão de desaplicação da norma extraída da alínea m) do n.º 6 do artigo 12º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, tal como rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de18 de Março.
5. Sucede, porém, que a decisão recorrida não se limita a desaplicar aquela norma, considerando que de tal decisão resultaria uma integral desprotecção de valores constitucionais – neste caso, a protecção da saúde das trabalhadoras –, por força da revogação da contra-ordenação a que a A., Lda. estaria sujeita, por força da redacção (não rectificada) da alínea b) do n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro. Com efeito, a decisão recorrida fundou-se no seguinte raciocínio:
«Mas, na nossa perspectiva, a discussão não pode – nem deve – terminar por aqui.
Se para nós é patente que a punição como contra-ordenação da conduta dos autos surge revogada no art. 12.º n.º 1 al. b) da Lei 7/2009, tal como esta foi publicada no dia 12.02.2009 e foi efectivamente aprovada após discussão e votação na Assembleia da República, pensamos que outra questão se deverá colocar: será inconstitucional a despenalização de tal conduta-
Note-se que o art. 59.º n.º 1, al. c) da Constituição afirma que todos os trabalhadores têm direito à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, enquanto que o n.º 2 exige ao Estado o dever de assegurar tais condições de trabalho a que os trabalhadores têm direito. Ou seja, o art. 59.º n.º 2 exige um comportamento interventor do Estado nesta matéria, estabelecendo as medidas adequadas a assegurar tais condições de trabalho e sancionando os comportamentos que, por algum modo, violem tais direitos. (…)
Ora, se no âmbito da Lei 35/2004, de 29 de Julho, existia uma estrutura sancionatória que efectivamente pretendia garantir o dever do Estado em assegurar tais condições de trabalho, no Novo CTrabalho, aprovado pela Lei 7/2009, no que respeita à higiene, segurança e saúde no trabalho, temos apenas alguns princípios gerais – arts. 281.º a 283.º - remetendo-se para regulamentação, ainda não aprova. Assim, de uma estrutura sancionatória assegurando o efectivo cumprimento pelo Estado da obrigação imposta pelo art. 59.º n.º 2 da Constituição, passou-se para o vazio legislativo» (fls. 103 e 104).
Com efeito, nos termos dos artigos 245º e 484.º, n.º 2, da Lei que Regulamenta o Código de Trabalho [aprovada pela Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho], determinava-se o seguinte:
«Artigo 245º
Exames de saúde
1 – O empregador deve promover a realização de exames de saúde, tendo em vista verificar a aptidão física e psíquica do trabalhador para o exercício da actividade, bem como a repercussão desta e das condições em que é prestada a saúde do mesmo.
2 – Sem prejuízo do disposto em legislação especial, devem ser realizados os seguintes exames de saúde:
(…).
(…)
Artigo 484º
Serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho
(…)
2 – Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto (…) nos artigos (…) 245º (…).»
Posteriormente, por força da alínea b) do n.º 1 e do n.º 6 do artigo 12º da Lei que aprovou o novo Código do Trabalho (Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), procedeu a uma revogação selectiva da supra referida Lei n.º 35/2004, mantendo-se em vigor algumas das suas disposições, até que entrasse em vigor nova regulamentação:
«Artigo 12º
Norma revogatória
1 – São revogados:
(…)
b) A Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, na redacção dada pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março, e pelo Decreto-Lei n.º 164/2007, de 3 de Maio;
(…)
6 – A revogação dos preceitos a seguir referidos da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, na redacção dada pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março, e pelo Decreto-Lei n.º 164/2007, de 3 de Maio, produz efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regular a mesma matéria:
(…)
m) Artigos 212.º a 280.º sobre segurança e saúde no trabalho;
(…)».
Assim sendo, a decisão recorrida interpretou estas normas jurídicas no sentido que o artigo 484º da Lei n.º 35/2004 não se encontrava abrangido pelo n.º 6 do artigo 12º da Lei n.º 7/2009, pelo que o n.º 2 do mesmo preceito legal padeceria de inconstitucionalidade, por não acautelar suficientemente o direito dos trabalhadores à saúde no trabalho [artigo 59º, n.º 1, alínea b), da CRP].
Vejamos, então, se assim é.
6. O Tribunal Constitucional, em sede de ilícitos penais, tem vindo a entender que o legislador dispõe de suficiente liberdade conformadora quanto à fixação de quais os bens jurídicos constitucionalmente protegidos que devem ser alvo de tutela penal. Isto é, ainda que a Constituição proteja determinados bens jurídicos – seja sob a forma de princípios, seja sob a forma de princípios constitucionais – importa notar que a punição, a título de crime, não se afigura como a única forma apta a acautelar a protecção constitucionalmente exigida. Recentemente, o Tribunal Constitucional sintetizou e consolidou este entendimento, a propósito de norma jurídica que exclui a ilicitude da interrupção voluntária da gravidez, a solicitação da grávida (cfr. Ac. n.º 75/10, publicado in «Diário da República», IIª Série, n.º 60, de 26 de Março de 2010), nos termos do qual foi dito:
«Como a doutrina tem justamente salientado – cfr. ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986, 420-422, e CLAUS-WILHELM CANARIS, Direitos fundamentais e direito privado, Coimbra, 2003, 65-66, e 115-116 – do ponto de vista da liberdade de actuação estadual e, em particular, de conformação legislativa, é grande a diferença estrutural entre os deveres negativos, de abstenção, e os positivos, de activa intervenção tuteladora. No domínio dos primeiros, assente que uma certa e determinada medida é ofensiva de um direito fundamental, o dever de a omitir impõe-se, prima facie. Isto porque a proibição de aniquilar ou afectar esse direito abrange toda e qualquer ingerência com tal virtualidade, incluindo, portanto, aquela específica medida que está em apreciação.
Inversamente, o dever de protecção não importa a automática ordenação de todas as iniciativas a que seja de imputar esse resultado. E isto porque, enquanto que a proibição de ingerência só se cumpre com a omissão de todas as acções de destruição ou afectação, a realização de uma só acção adequada de protecção ou promoção é condição suficiente do cumprimento do mandato constitucional nesse sentido. Quando são adequadas diferentes acções de protecção ou promoção, nenhuma delas é, de per si, necessária para o cumprimento desse mandato: a única exigência é que se realize uma delas, pertencendo a escolha ao Estado. Somente se existir uma única acção suficiente de promoção ou protecção é que ela se torna necessária para o cumprimento do dever de protecção.
O que se retira da Constituição é apenas o dever de proteger, não estando predeterminado, nessa sede, um específico modo de protecção. Já OTTO BACHOF, em texto hoje clássico, o pôs em destaque, salientando que nenhum dos concretos problemas regulativos postos pela protecção da vida ainda por nascer encontra “resposta imediata na Constituição”, pelo que, para a sua decisão, “o legislador há-de dispor consequentemente de uma larga margem de liberdade” – “Estado de direito e poder político: os tribunais constitucionais entre o direito e a política”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LVI (1980), 1 s., 19.
As inevitáveis opções a fazer, neste domínio, são, pois, pertença do legislador ordinário, sendo este colocado perante um espectro de soluções normativas de alcance distinto e de desigual intensidade tuteladora.
Dentro desse espectro, a incriminação representa, em regra, o grau máximo de protecção. Mas também, simultaneamente, a lesão, na maior medida, de direitos encabeçados pelo sujeito penalizado, mormente quando, como neste caso, a verificação do tipo acarreta privação da liberdade.
É no campo de valoração delimitado pela proibição do excesso e pela contraposta proibição de insuficiência que o legislador tem que exercitar a sua competência de modelação da disciplina da interrupção voluntária da gravidez. Podendo optar por consagrar uma protecção superior ao mínimo que lhe é jurídico-constitucionalmente imposto, o legislador não pode ultrapassar os limites que resultam da proibição do excesso (em último termo, do princípio da proporcionalidade). Só serão constitucionalmente conformes as soluções que respeitem ambas as proibições.
(…)
A primeira para evidenciar, em reforço do que já foi dito, que cumpre apreciar apenas se o regime de direito ordinário, globalmente considerado, traduz ou não a realização eficiente do mínimo de protecção constitucionalmente exigido da vida intra-uterina, incluindo da vida do embrião nas primeiras 10 semanas. Não importa averiguar se outras medidas alternativas às adoptadas protegeriam em maior grau esse bem. O legislador era livre (no limite da proibição do excesso) de implantar essas medidas, mas não estava vinculado a fazê-lo. Contrariamente ao que se lê no pedido, a questão não está, pois, em saber se não existem outros meios “que melhor protejam o valor da vida”. Está apenas em saber se o meio concretamente escolhido satisfaz ou não o mínimo de protecção.
É o cumprimento efectivo de um dever, não o eventual aproveitamento de uma permissão, que constitui o objecto de apreciação, pelo que há que ajuizar unicamente se os meios de que o legislador se socorreu para tal fim levam o direito infraconstitucional a situar-se num ponto ainda consentido pela proibição de insuficiência.
(…)
O que está em juízo, digamo-lo de uma vez por todas, é saber se os instrumentos penais de intervenção podem ser substituídos, sem perda de eficiência, ou sem perda de eficiência comprometedora da satisfação do imperativo de tutela da vida antes do nascimento, por outros meios jurídicos de conformação, de carácter não penal (…)».
Transpondo estas considerações para o campo do ilícito de mera ordenação social, importa, portanto, frisar que a tutela contra-ordenacional de valores constitucionais – tais como a protecção da saúde dos trabalhadores [artigo 59º, n.º 1, alínea c), da CRP] – só será constitucionalmente reclamada, quando constitua o único meio de protecção daqueles mesmos valores. O que importa, então, é avaliar se o “princípio da proibição da insuficiência” está a ser respeitado. Ou seja, avaliar se, para além da tutela contra-ordenacional, o legislador adoptou medidas legislativas suficientemente aptas a proteger a saúde dos trabalhadores. Só no caso de tal se demonstrar é que será possível concluir pela inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 12º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, na parte em que revogou o artigo 484º da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho
Ora, deve começar por notar-se que a alínea m) do n.º 6 do artigo 12º da Lei n.º 7/2009, mantém plenamente aplicáveis todas as normas da Lei n.º 35/2004, relativas à saúde no trabalho, obrigando o empregador, designadamente, a: i) manter serviços internos, externos ou inter-empresas de segurança, higiene e saúde (artigo 218º); ii) escolha de um representante dos trabalhadores com formação adequada e validada pelo organismo do ministério competente (artigos 222º e 223º); iii) necessidade de autorização para manutenção de serviços externos (artigo 230º) e de aprovação de acordo para serviços inter-empresas (artigo 228º), sempre pelo organismo do ministério competente; iv) exigência de vigilância da saúde no local de trabalho por um médico (artigo 244º); v) dever de realização de exames de saúde (artigo 245º); vi) coadjuvação por enfermeiro, em grandes empresas (artigo 246º); vii) garantia de um período mínimo e máximo de atendimento por parte do médico do trabalho (artigo 250º).
Deste elenco de deveres do empregador, em matéria de protecção da saúde dos trabalhadores, resulta que permanecem aplicáveis – mesmo ao caso em apreço nos autos recorridos – diversas disposições legais que visam, precisamente, acautelar o direito fundamental à saúde no local de trabalho. Alguns desses deveres implicam, aliás, um controlo por parte da administração pública, a quem cabe autorizar e aprovar os serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho. Outros criam verdadeiros direitos subjectivos na esfera jurídica dos trabalhadores que, em caso de lesão dos mesmos – designadamente, por inacção dos empregadores –, gozam do direito de instaurar as acções necessárias à sua implementação, perante os competentes tribunais.
Assim, a protecção do direito à saúde dos trabalhadores [artigo 59º, n.º 1, alínea b), da CRP] permanece acautelada, quer mediante o exercício supervisionador da administração pública que, em última instância, pode rejeitar os planos de segurança, higiene e saúde no trabalho, apresentados pelos serviços de cada empregador, quer mediante o acesso aos tribunais, pelos trabalhadores, sempre que os direitos subjectivos decorrentes do artigos 218º a 280º não sejam respeitados pelos respectivos empregadores.
É bem certo que, por força da alínea b) do n.º 1, conjugada com o n.º 6 do artigo 12º da Lei n.º 7/2009, a violação de cada um daqueles deveres do empregador, em matéria de saúde, não conduz à prática de uma contra-ordenação e, como tal, não o sujeita ao pagamento de uma coima. Porém, tal asserção – a que a decisão recorrida só chega por ter desaplicado a Declaração de Rectificação n.º 21/2009 – não permite concluir pela inconstitucionalidade daquela norma, na medida em que a via da punição contra-ordenacional não se afigura como a única via possível para a protecção do direito à saúde dos trabalhadores, por parte do legislador ordinário.
Em suma, não pode afirmar-se que a protecção concedida pelo legislador ordinário é insuficiente para garantir o direito à saúde dos trabalhadores, pela simples circunstância de a violação de deveres legais impostos pela Lei n.º 35/2004 não implicar a prática de uma contra-ordenação. Conforme supra demonstrado, o legislador ordinário não deixou de impor tais deveres legais aos empregadores, sendo que, simultaneamente, conferiu determinados meios específicos à administração pública e aos trabalhadores para reagirem face à sua violação.
Não cabe a este Tribunal julgar se tais meios são os mais adequados à protecção do direito à saúde dos trabalhadores, só lhe cabendo constatar que os meios previstos não se afiguram manifesta e desproporcionadamente inaptos a acautelar essa protecção minimamente adequada. Assim sendo, mais não resta do que concluir pela não inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 12º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, na parte em que revogou o artigo 484º da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não conhecer do objecto do recurso, quanto norma extraída da alínea m) do n.º 6 do artigo 12º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, tal como rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de18 de Março;
b) Não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 12º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, na parte em que revogou o artigo 484º da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho;
E, em consequência:
c) Determinar a remessa dos presentes autos ao tribunal recorrido para que, em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 80º da LTC, se proceda à reforma da decisão recorrida, em conformidade com o julgamento ora proferido.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 29 de Junho de 2010
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Maria Lúcia Amaral (vencida quanto à decisão da alínea a pelas razões expostas em declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 584/09)
Carlos Fernandes Cadilha (vencido quanto à decisão da alínea a) pelas razões constantes da declaração de voto aposta no Acórdão n.º 584/09)
Gil Galvão