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Processo n.º 309/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Os arguidos A. e B. foram condenados no processo n.º 273/08.0JELSB, do 2.º Juízo do Tribunal de Silves, por acórdão proferido em 3 de Dezembro de 2009, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão.
Os arguidos recorreram desta decisão para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão proferido em 25 de Março de 2010, negou provimento aos recursos interpostos.
Os arguidos recorreram desta decisão para o Tribunal Constitucional, pedindo que fosse declarado inconstitucional o «conceito normativo que resulta da combinação dos artigos 122.º e 127.º e 355.º do Código de Processo Penal, conjugados com o artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 101/2001 de 25 de Agosto, ao facultar à defesa apenas uma pequena parte do relatório confidencial junto aos autos pelos Juízes (os quais fundamentaram a junção desse relato com o fundamento na sua absoluta indispensabilidade na questão da existência ou não de provocação ao crime), assim impossibilitando a defesa de exercer o contraditório quanto à parte sonegada, apesar de os julgadores e o Ministério Publico dela terem conhecimento total, por violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição».
Foi proferida decisão sumária (n.º 196/10) em 12 de Maio de 2010 de não conhecimento do recurso interposto pelos arguidos, com os seguintes fundamentos:
«3 - Vem o presente recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Tal disposição admite o recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Concretizando o sentido deste último requisito, tem este Tribunal estabelecido que “Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que (...) tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido.” Impugnar a constitucionalidade de uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao acto de aplicação do direito – concretizado num acto de administração ou numa decisão dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada interpretação que enformou tal acto ou decisão (cfr. Acórdãos n.ºs 37/97, 680/96, 663/96 e 18/96, este publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio 1996). [§] É certo que não existem fórmulas sacramentais para formulação dos pedidos, nem sequer para suscitação da questão de constitucionalidade. [§] Esta tem, porém, de ocorrer de forma que deixe claro que se põe em causa a conformidade à Constituição de uma norma ou de uma sua interpretação (...)” – cfr. o referido Acórdão n.º 618/98 e os acórdãos para os quais remete.
A par com essa exigência, torna-se igualmente necessário que a inconstitucionalidade da norma sindicanda tenha sido suscitada durante o processo, devendo este requisito ser entendido, segundo a jurisprudência constante deste Tribunal (veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 352/94, in Diário da República, II Série, de 6 de Setembro de 1994), “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”, por ser este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal recorrido pudesse e devesse ter apreciado (ver ainda, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, Diário da República, II, de 10 de Janeiro de 1995, e ainda o Acórdão n.º 155/95, in Diário da República, II série, de 20 de Junho de 1995).
Ora, como se constata pelo teor das conclusões delimitadoras do objecto do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Évora, os recorrentes não suscitaram qualquer questão de constitucionalidade nos termos supra referidos. É certo que, ao contestarem a decisão recorrida, consideraram violado o disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, “na medida em que violou o princípio do contraditório ao tomar conhecimento de factos, potencialmente conexos e importantes para a defesa, não os transportando para a matéria de facto provada ou não provada”. No entanto, tal menção não consubstancia, por si só, a adequada suscitação de um problema de constitucionalidade normativa, porquanto aí não se impugna, sub species constitutionis, a validade de qualquer norma, mas sim da própria decisão, carecendo este Tribunal de competência cognitiva para sindicar os problemas de inconstitucionalidade imputados às decisões das instâncias jurisdicionais.
4 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objecto do recurso.»
Os recorrentes reclamaram desta decisão, com a seguinte argumentação:
“Na jurisprudência do Tribunal Constitucional dos últimos anos, tem-se verificado constantemente o reforço da interpretação restritiva dos próprios poderes de cognição em termos tais que, “ab absurdo” poderiam conduzir à ideia de que o douto Tribunal teria desistido das suas funções de fiscalização concreta das interpretações que os Tribunais ordinários fazem, das disposições legais (ou segmentos deles) cuja compatibilidade com as normas constitucionais suscitam controvérsias.
Na verdade, anteriormente à institucionalização desta tendência interpretativa, o Tribunal Constitucional lavrou brilhantes Acórdãos sobre vários pontos controversos, mormente em matéria penal e processual penal, os quais iluminaram o debate e conduziram a alterações importantíssimas, como a própria mudança das leis ou a mudanças na jurisprudência dos Tribunais ordinários.
Ora, a C.R.P. consagra em plena sede dos direitos, liberdades e garantias fundamentais do cidadão, os mais altos valores civilizacionais, repositório de conquistas sucessivas do Homem através de séculos.
É certo que também nos últimos anos temos assistido a um aumento dos níveis de criminalidade no nosso país e correspondente sentimento geral de insegurança. E, em consequência, apareceram os ataques àqueles Valores, considerados excessivamente garantísticos, ataques esses veiculados pela própria comunicação social.
Mas não será esta peça processual o instrumento adequado a um exame sobre a justeza e actualidade dos Direitos, liberdades e garantias do cidadão português.
Porque independentemente da bondade de opiniões contrárias, aqueles Valores estão bem patentes na Constituição da República Portuguesa, a qual, como Lei Fundamental, dispõe de um Tribunal próprio para a fiscalização abstracta e concreta das suas normas.
Se se impõe uma alteração de parte ou da totalidade da actual C.R.P., então que se lancem os mecanismos próprios para a povo escolher através dos seus representantes.
Até lá compete aos Julgadores aplicar a lei, ordinária ou constitucional existentes.
Ora, concede-se que o nosso Tribunal Constitucional não se queira assumir como uma instância de amparo, até porque tal significaria a existência de mais um grau jurisdicional.
Todavia, este entendimento haverá de ser aplicado “cum grano salis”, dada a competência especializada do Tribunal Constitucional.
Na verdade, o art. 1.º e 2.º da Lei do Tribunal Constitucional, como garante da Lei Fundamental faz abranger a sua jurisdição ao âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa “e as suas decisões prevalecem sobre a dos restantes tribunais”
No art. 280.º da C.R.P. e art. 70.º da Lei vem afirmado que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais, que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo.
A competência do Tribunal Constitucional pressupõe o esgotamento anterior da questão de conformidade de interpretação às normas constitucionais, em todo o périplo dos tribunais ordinários.
Tudo isto pressupõe, em sede de fiscalização concreta (sub capitulo II da Lei do T.C.) que haja uma decisão anterior e última dos Tribunais ordinários.
Os recursos para o T.C. hão-de advir de uma decisão dos Tribunais ordinários, os quais, obviamente, aplicaram as leis de acordo com uma interpretação das leis ordinárias que julgaram compatíveis com os Direitos, Liberdade e Garantias Fundamentais do Cidadão.
Isto é, o recurso para o T.C. provem sempre de um CASO CONCRETO, que os Tribunais ordinários qualificaram juridicamente.
Por outro lado a expressão FISCALIZAÇÃO CONCRETA há-de abranger alguma sindicância sobre a forma como os Tribunais ordinários entendem tal conformidade com a Lei Fundamental.
Todo o espírito da Lei do T.C. reflecte a ideia de fiscalização, sindicância, como garante último da aplicação dos valores elencados pela C.R.P.
Mormente, sobre a forma como as restantes entidades especialmente os Tribunais ordinários, formulam as suas conclusões especialmente quando elas acontecem no limiar da conformidade com a Lei Fundamental.
Ao restringir os poderes de cognição, o T.C. abdicará sempre de uma fatia dos seus deveres de fiscalização concreta, o que sempre se reflectirá, até no quotidiano, na vida, ou qualidade de vida do cidadão.
Sem esquecer o principio do Direito Romano segundo o qual: FAVORABILIA AMPLIANDA ODIOSA RESTRINGENDA.
O recurso a interpretações restritivas de normas já de si restritivas, constituirá sempre perigo grave, especialmente em plena sede de princípios fundamentais sobre os direitos e garantias do cidadão no processo penal.
E mal será para o cidadão, elemento do povo que fez surgir a C.R.P., deixar de ver o T.C. como garante último dos seus direitos constitucionais.
Em conclusão desta nota prévia e com a devida vénia, afirmam os recorrentes que os tribunais ordinários “passaram por cima” do direito ao contraditório, consignado no art. 32º n.º 5 da C.R.P. ao interpretarem Lei 101/200 1 de 25 de Agosto no seu art. 4º n.º 1, numa dimensão normativa (para utilizar a expressão já habitual) que resulta da combinação dos artigos 122º, 121º e 255º do CPP.
Obviamente, para o fazer, os recorrentes partem do caso concreto espelhado no processo que esteve pendente nos tribunais ordinários.
Mas, o facto de se partir do caso concreto não impede que o Tribunal Constitucional em recurso, se veja impossibilitado de fiscalizar, sindicar a aludida interpretação da norma constitucional à luz das disposições legais aplicadas.
Acresce que o caso concreto constitui, e tal provado ficou, uma operação encoberta da polícia, já de si, de regulamentação recente e efectuada no limiar dos parâmetros que regem a moral num Estado de direito.
Esqueçamos o caso concreto e debrucemo-nos sobre a lei ordinária e Lei Fundamental.
II
A Lei 101/2001 de 25 de Agosto autoriza a efectivação de OPERAÇÕES ENCOBERTAS, DE INFILTRAÇÃO DE ELEMENTOS CIVIS E FUNCIONARIOS DA POLICIA, NUM DETERMINADO PERCURSO DE TRAFICO DE ESTUPEFACIENTES.
Dos seus escassos artigos verifica-se que a aludida Lei 101/2001 pretende conferir autorização para que tais operações se realizem, inocentando os elementos civis e funcionários infiltrados de qualquer violação da lei, ao mesmo tempo que regulamenta os casos em que tais operações policiais se apresentam perante os tribunais judiciais ordinários.
Isto é, uma vez apresentado em juízo o caso oriundo de uma operação de infiltração, estará conforme à Lei Fundamental o seu encobrimento dos julgadores a quem cabe administrar a justiça no caso concreto-
E, se os julgadores entenderem indispensável a requisição do relatório confidencial que descreve a operação policial desde o seu início – art. 4º n.º 1 da Lei 101/2001, ser-lhe-á permitido seleccionar as partes que tornam públicas em Julgamento-
Será conforme à C.R.P. que aos cidadãos arguidos seja tolhida a possibilidade de conhecer e contraditar todos os factos anteriores à sua prisão e que já estão na posse dos julgadores e parte acusadora-
Só a parte da Defesa desconhece esses factos-
Isto é, o julgador ordinário e a parte Acusadora arrogam-se o direito de formularem decisões e pareceres sobre factos que não se acham no processo público em audiência de Julgamento.
Já os romanos instituíram, “quod non est in actus, non est in mundo”
Com a “modernização”, tal princípio jurídico terá passado a ser aquilo que MºPº e o Juiz sabe do processo está “in mundo”, mesmo que “in actus” nada conste.
Será isto que se quer-
Será isto que a C.R.P. deixa que aconteça-
Será esta uma questão de direito infraconstitucional-
Ao longo da audiência de Julgamento, no caso concreto, no Tribunal ordinário decide-se que esta interpretação do art. 4º n.º.1 da Lei 101/2001 era conforme à C.R.P., respondendo até a requerimento em acta ditado pelos recorrente, muito antes do recurso para o Tribunal da Relação, o qual se debruçou sobre a questão.
De notar que o esforço da parte da DEFESA, em outros processos nos quais o Relatório Confidencial foi requisitado e submetido ao contraditório, culminou no reconhecimento da nulidade de todo o processado com absolvição dos cidadãos arguidos.
Nas se diga, pois que, a questão levantada é inócua ou irrelevante.
Junta-se por isso, cópia da decisão judicial absolutória num processo recente do Tribunal Judicial de Faro (após percurso pela Relação e Supremo)
Nestes termos reitera-se perante a Conferência o pedido anteriormente formulado”.
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação, sustentando, por um lado, que o reclamante em nada contradita, como lhe competia, a fundamentação em que se estribou a decisão sumária e, por outro, que inexistem os pressupostos do recurso de constitucionalidade, tal como se examinou na decisão sumária.
Fundamentação
A decisão reclamada não conheceu do recurso interposto pelos reclamantes, com fundamento em que estes não suscitaram adequadamente perante o tribunal recorrido a questão de constitucionalidade que agora colocam ao Tribunal Constitucional.
Na reclamação apresentada os reclamantes não contrariam esta fundamentação.
E, na verdade, nas alegações apresentadas perante o tribunal recorrido (e era nesta peça que deveria encontrar-se suscitada a questão de constitucionalidade que foi colocada ao Tribunal Constitucional) os reclamantes limitaram-se a alegar que a decisão recorrida infringiu o disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, “na medida em que violou o princípio do contraditório ao tomar conhecimento de factos, potencialmente conexos e importantes para a defesa, não os transportando para a matéria de facto provada ou não provada”.
Não estamos perante a suscitação de uma inconstitucionalidade normativa, imputada a um critério geral e abstracto, mas sim perante a imputação desse vício à própria decisão da 1.ª instância, que teria tomado conhecimento de factos importantes para a defesa sem os transpor para a matéria provada.
Não se revelando que a questão de inconstitucionalidade normativa colocada ao Tribunal Constitucional no requerimento de interposição de recurso tenha anteriormente sido suscitada perante o tribunal recorrido, falta um elemento essencial ao conhecimento desse recurso (a legitimidade dos recorrentes), atento o disposto no artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Por este motivo deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por A. e B., da decisão sumária n.º 196/2010, proferida nestes autos.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 5 de Julho de 2010. – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.