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Processo n.º 104/2010
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Veio a recorrente A. reclamar para a conferência da decisão sumária, proferida nestes autos, de não conhecimento do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade por si interposto, pedindo, a final, seja atendida a reclamação com as legais consequências.
Alega, em síntese, para tanto, que, contrariamente ao sumariamente decidido, o recurso para este Tribunal está em condições processuais de prosseguir para apreciação (de mérito) da questão de inconstitucionalidade que constitui o seu objecto, por ter sido devidamente suscitada nas instâncias ordinárias de recurso, como determinado pelo artigo 75º-A da LTC, e se terem observado as demais exigências processuais impostas por este normativo legal, sendo certo que, como sublinhado pelo acórdão proferido no âmbito do processo n.º 178/10, deve ser privilegiada «a substância em detrimento da forma», pelo que, atenta «a (…) enormíssima relevância jurídica e prática [do tema] e os diversos entendimentos que têm sido produzidos sobre a questão (…)», se justifica e impõe «(…) uma apreciação constitucional que a clarifique, no interesse geral».
Os recorridos não deduziram resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
2. Entendeu a decisão sumária, objecto da presente reclamação, que não se verificavam, no caso vertente, dois dos pressupostos processuais legalmente impostos como condição de conhecimento do objecto do recurso: estar em causa uma efectiva interpretação normativa e ter a «interpretação» cuja constitucionalidade se questiona sido efectivamente acolhida pela decisão recorrida.
Com efeito, considerou-se na decisão reclamada, quanto àquele primeiro aspecto, que o acórdão recorrido se limitou a acolher a «doutrina da ponderação de interesses» e, a esta luz, valorar as circunstâncias particulares do caso sujeito à sua apreciação, tendo, no caso concreto, concluído pela prevalência dos interesses tutelados pelo dever processual de cooperação para a descoberta da verdade sobre os direitos pessoais protegidos pelo sigilo bancário, considerando constitucionalmente legítima, no caso, a restrição destes por necessária à garantia daqueles.
Concluiu-se, por tal razão, não ter sido acolhida nenhuma interpretação do normativo em apreço, potencialmente aplicável a uma diversidade de casos, susceptível de constituir objecto idóneo de recurso de constitucionalidade.
Por outro lado, incidindo o objecto de recurso, como delimitado pela recorrente, na «(…) interpretação atribuída à norma contida no artigo 519º do Código de Processo Civil (…) segundo a qual prevalece incondicionalmente o dever de cooperação sobre a reserva do direito da vida privada, assim se dispensando qualquer consentimento para a obtenção indiscriminada de informações, in casu, relativas à vida pessoal da recorrente, mesmo quando está apenas em causa o direito da contraparte à prova de um por si alegado mero direito de crédito apresentado em acção declarativa cível, fundado em supostas doações, factualidade essa susceptível de prova por diversos outros meios (…)», considerou-se ainda não ter o tribunal recorrido acolhido essa interpretação, nem na forma, nem no conteúdo.
Quanto à forma, por não ter sido a norma sindicada interpretada como legitimando sempre e incondicionalmente a restrição dos direitos e interesses tutelados pelo sigilo bancário, mas apenas nos casos em que o «o estado de necessidade» da situação o justificasse.
Quanto ao conteúdo, por ter o acórdão recorrido excluído do objecto do recurso de agravo, por razões processuais, a «questão da eventual violação do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar da ré», ora reclamante, restringindo-o à questão da violação do sigilo bancário subjacente aos pedidos de informação dirigidos às instituições bancárias e apenas a estas.
Ora, a reclamante não invocou qualquer razão que especificamente ponha em crise tais asserções, seja apontando vícios ao nível da própria interpretação e aplicação das exigências processuais legalmente previstas, seja demonstrando, por via argumentativa, que as premissas de que se partiu para concluir pela não verificação dos dois enunciados pressupostos processuais afinal se não verificavam.
De facto, limitou-se a reclamante, ao invés, a defender, conclusivamente, a genérica conformação processual do requerimento de interposição de recurso, à luz do disposto no artigo 75º-A do CPC, pelo que, não tendo posto em causa o bem fundado da decisão reclamada, não poderá deixar de considerar-se improcedente a arguição.
Por outro lado, contrariamente ao que sustenta a reclamante, o rigor na aferição das exigências que a lei impõe como condição essencial de conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade não tem um sentido e alcance meramente formal; visa, antes de mais, garantir a efectiva realização das opções verdadeiramente substantivas tomadas pelo poder constituinte em matéria de fiscalização da constitucionalidade e, desse modo, é também um instrumento de garantia do seu não desvirtuamento.
E o que sublinhou, em diferente contexto normativo, o invocado acórdão n.º 178/10, por remissão para os fundamentos do Acórdão n.º 49/10, ambos proferidos por este Tribunal Constitucional, foi que as exigências procedimentais legalmente previstas em matéria de concessão do subsídio de desemprego deve ficar subordinada, atenta «a inegável fundamentalidade do direito dos trabalhadores à assistência material em situação de desemprego involuntário», ao «princípio da proporcionalidade, no sentido de que (tais) exigências devem ser necessárias e adequadas e de que as consequências do seu incumprimento devem ser razoáveis».
Ora, transpondo tal perspectiva das coisas para o caso vertente, não se descortina nas exigências processuais legalmente previstas, em matéria de fiscalização da constitucionalidade, e, sobretudo, no modo como foram aplicadas pela decisão sumária objecto da presente reclamação, qualquer ofensa insuportável ao princípio da necessidade, proporcionalidade e adequação a que também está sujeito o direito de acesso dos cidadãos aos tribunais, mesmo estando em causa o acesso ao juízo de mérito a formular, em sede de constitucionalidade, pelo Tribunal Constitucional, sendo certo que tais exigências se destinam, no essencial, a garantir a própria integridade do sistema de fiscalização da constitucionalidade constitucionalmente adoptado.
Não se verificou, deste modo, um desproporcionado sacrifício, por razões formais, da pretensão substantiva da recorrente, pois que, em conclusão, a enunciada «questão de constitucionalidade» que se pretende ver apreciada, independentemente da relevância do tema, não integra, desde logo, por carecida de alcance normativo, o respectivo conceito legal, para o efeito merecer a formulação, por parte do Tribunal Constitucional, do reivindicado juízo de mérito.
As regras processuais aplicadas, longe de constituir um obstáculo a tal pretensão, apenas serviram, pois, para revelar, numa apreciação liminar, que esta, no enquadramento jurídico vigente em matéria de fiscalização da constitucionalidade, não merece, na verdade, acolhimento legal.
E não se afigura que a apreciação liminar assim formulada pela decisão sumária em reclamação viole, por irrazoável, um tal princípio de proporcionalidade.
A presente reclamação não pode, pois, por tais razões, ser atendida.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação, confirmando-se, em consequência, a decisão sumária proferida nos presentes autos.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 2 de Junho de 2010
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão