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Processo n.º 1/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Trabalho de Aveiro, em que é recorrente o Ministério Público, e recorrida A., Lda., foi interposto recurso obrigatório de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), para apreciação da recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, da norma vertida na alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, (que aprovou a revisão do Código do Trabalho) na versão constante da Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março.
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1. A Lei nº 74/98, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 2/2005, de 24 de Janeiro, nº 26/2006, de 30 de Junho e nº 42/2007, de 24 de Agosto, define e circunscreve rigorosamente o âmbito em que podem ser feitas rectificações a diplomas legais.
2. Subjacente, a um tal quadro jurídico, está a preocupação de assegurar que se não alterem diplomas fora do quadro definido pelos requisitos constitucionais e legais que legitimem uma tal alteração.
3. A Declaração de Rectificação nº 21/2009, no entanto, procedeu a alterações substanciais no texto do diploma que, aparentemente, vinha rectificar (Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o novo Código do Trabalho), designadamente “recuperando” matéria contra-ordenacional que deixara, entretanto, de vigorar no ordenamento jurídico, por força da versão inicial da referida Lei.
4. Na verdade, relativamente ao presente recurso, havia contra-ordenações de natureza laboral, que se encontravam contempladas na Lei 35/2004 (Regulamento do Código de Trabalho), de 29 de Julho e no Código de Trabalho de 2003, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto.
5. Posteriormente, certos factos, por força da Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o actual Código do Trabalho, na sua versão original (cfr. art. 12, nº 1, alíneas a) e b) da lei preambular que aprovou o novo Código do Trabalho), deixaram de ser considerados “ilícitos”, não podendo, portanto, nenhum Tribunal, ou entidade competente, proceder contra-ordenacionalmente com base nesses factos, após a publicação daquela Lei.
6. Com efeito, nos termos do art. 12, nº 1, alínea a), da versão original da Lei 7/2009, o Código de Trabalho de 2003 foi revogado e, nos termos da alínea b), do nº 1 da mesma disposição, o Regulamento do Código de Trabalho, relativo ao referido Código, também.
7. No entanto, no elenco das excepções, previstas no nº 6, alínea m), deste mesmo art. 12º, excepcionaram-se expressamente os arts. 212º a 280º, sobre segurança e saúde no trabalho, do Regulamento do Código de Trabalho – Lei 35/2004, devendo, em consequência, a revogação destes preceitos apenas produzir efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regulasse a mesma matéria.
8. Não se fazia, contudo, qualquer referência, na mesma disposição, ao art. 484º do referido Regulamento, que considerava os factos previstos no art. 245º como constituindo uma contra-ordenação grave, pelo que tal preceito ficou abrangido pela revogação genérica do Regulamento do Código de Trabalho, efectuada pelo art. 12º, nº 1, alínea b), da Lei 7/2009.
9. Por outro lado, o art. 619º, do anterior Código de Trabalho, estabelecia que, “para determinação da coima aplicável e tendo em conta a relevância dos interesses violados, as infracções classificam-se em leves, graves e muito graves”, cabendo ao art. 620º do mesmo Código, definir os respectivos montantes.
10. Contudo, no elenco das excepções, previstas no nº 3, do art. 12º da Lei 7/2009, que, como tal, apenas se destinariam a produzir efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que viesse a regular a mesma matéria, não se fazia qualquer referência aos arts. 619º e 620º do anterior Código de Trabalho, pelo que estas disposições se tiveram de considerar revogadas com a publicação da Lei 7/2009.
11. Num terceiro momento, houve, finalmente, uma “inovação” incriminatória (através da repristinação de normas), por meio de uma “rectificação” retroactiva (cfr. alterações introduzidas ao art. 12º, nº 3 e nº 6, alínea m), da lei preambular que aprovou o novo Código do Trabalho, pela Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março).
12. Ora, uma tal actuação do legislador acaba por infringir, inapelável e negativamente, os princípios da não retroactividade da lei penal (e contra-ordenacional), da igualdade e da segurança jurídica, protegidos pela Constituição da República Portuguesa (cfr. artigos 9º, alínea b), 13º e 29º, nºs 1, 3 e 4 do texto constitucional).
13. Na verdade, a pretensa “rectificação”, com a vultuosa dimensão da que foi efectuada pela Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março de 2009, ultrapassa largamento o âmbito de aplicação que a Constituição autoriza e que a lei rigorosamente delimita para este efeito.
14. Deve, pois, julgar-se inconstitucional a norma vertida na alínea m), do nº 6, do artigo 12º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, na versão constante da Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março de 2009, por violação dos arts. 112º, nº 1, 161º, alínea c), 166º, nº 3 e 168º, nºs 1 e 2 da Constituição.
15. Crê-se, pois, de manter o juízo de inconstitucionalidade feito pelo Tribunal a quo, com as consequências legais daí decorrentes.»
3. A recorrida não contra-alegou.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
4. A decisão recorrida recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro (que aprovou a revisão do Código do Trabalho), na redacção que lhe foi conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março.
No mesmo sentido se pronunciou o representante do Ministério Público junto deste Tribunal.
Questão idêntica, embora a respeito de norma diversa – alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, (que aprovou a revisão do Código do Trabalho), na redacção que lhe foi dada pela Declaração de Rectificação n.º 212/2009, de 18 de Março – foi já apreciada por esta 2.ª Secção do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 490/2009 (rectificado pelo Acórdão n.º 601/2009) e no Acórdão n.º 628/2009.
Naquele primeiro aresto o Tribunal pronunciou-se pela inconstitucionalidade da citada norma, por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º, da Constituição, com os seguintes fundamentos:
«I - No presente caso, a rectificação da redacção da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, resulta na manutenção em vigor, sem qualquer hiato, da tipificação como contra-ordenação constante do artigo 671.º, n.º 1, do Código de Trabalho de 2003, das condutas previstas no seu artigo 273.º, n.º 1, apesar da revogação genérica deste diploma efectuada pelo artigo 12.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro.
II - Sendo a segurança jurídica um dos fins do Estado de direito democrático, as pessoas devam saber com o que contam, pelo que as normas jurídicas não devem, em princípio, ter efeito retroactivo, constituindo uma violação da confiança legítima que as pessoas devem depositar na ordem jurídica a punição como contra-ordenação de comportamentos ocorridos anteriormente à sua tipificação legal.
III - No caso sub iudicio, a norma impugnada repõe a punição como contra-ordenação de uma conduta, após o legislador ter afastado o seu sancionamento contra-ordenacional, retroagindo essa reposição ao momento desse afastamento, mantendo, assim, sem qualquer interrupção, tal sanção; ou seja, aqui o efeito retroactivo da lei não determina a punição de um facto praticado anteriormente à sua tipificação como contra-ordenação, mas elimina a descontra-ordenação de uma determinada conduta efectivada pelo legislador em data posterior à prática do facto.
IV - Vigorando em matéria contra-ordenacional, tal como em matéria penal, no domínio da sucessão de leis, a regra da imposição da aplicação da lei mais favorável, em obediência a uma ideia de desnecessidade de intervenção destes instrumentos sancionatórios, o acto legislativo de descontra-ordenação compromete o Estado perante os cidadãos, no sentido de que já não serão sancionados os respectivos comportamentos, mesmo que praticados em data em que tal punição se encontrava prevista na lei.
V - Este compromisso não pode ser quebrado, apesar do Estado verificar que se equivocou ao abandonar o sancionamento como contra-ordenação daquelas condutas, em defesa da fiabilidade da actividade de um Estado de direito democrático.»
Tal como nos casos apreciados nos referidos arestos, também na situação presente – pelas razões que expressamente constam da sentença recorrida e das alegações do Ministério Público – a norma impugnada repôs a punição como contra-ordenação de uma conduta da entidade empregadora (não diligenciar pela realização dos exames de saúde às trabalhadoras respectivas), após o legislador ter afastado o seu sancionamento contra-ordenacional, retroagindo essa reposição ao momento desse afastamento, mantendo, assim, sem qualquer interrupção, tal sanção.
Assim, pelos fundamentos constantes dos Acórdão n.º 490/2009, aqui aplicáveis mutatis mutandis, deve a norma impugnada ser julgada inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de Direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
III - Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, a norma da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro (que aprovou a revisão do Código do Trabalho), na redacção que lhe foi conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março.
b) Consequentemente, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o juízo de inconstitucionalidade adoptado na decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Maio de 2010
Joaquim de Sousa Ribeiro
Catarina Sarmento e Castro
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos