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Processo n.º 6/2010
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Por decisão sumária, de 4 de Fevereiro de 2010, decidiu-se não tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade instaurado, nos presentes autos, pelo arguido A., entendimento que foi mantido, em conferência, através do acórdão de 14 de Abril de 2010, que indeferiu a reclamação dela interposta.
Vem, agora, o recorrente arguir a nulidade deste acórdão, por não ter sido notificado da resposta que o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou à sua reclamação, omissão que, a seu ver, influiu na decisão, pois que nela foi invocada uma nova razão para o não conhecimento do recurso (ausência de correspondência entre a interpretação censurada e a que foi acolhida pelo tribunal recorrido), que, não tendo sido ponderada na decisão sumária, veio a ser acolhida pelo citado acórdão, sem que lhe tenha sido dada, antes, a possibilidade, constitucionalmente imposta (artigos 20º, n.º 4, e 32º da CRP), de sobre ela se pronunciar.
E, nesse sentido, o reclamante, propugnando a identidade da questão de constitucionalidade que foi aplicada pelo tribunal recorrido e aquela que foi identificada no recurso como constituindo objecto do recurso, pede a final que o Tribunal profira decisão a reconhecer a nulidade e efectua uma «reapreciação da questão nova suscitada pelo Ministério Público à luz da contra-argumentação ora apresentada pelo recorrente» (n.º 17 do requerimento).
Requer, ainda, quanto a outros pontos do decidido, a aclaração dos respectivos fundamentos, por alegadamente contraditórios e/ou obscuros.
O Ministério Público é de parecer que deve ser indeferida a arguição de nulidade (atenta a identidade da razão decisiva que fundamentou a decisão sumária, objecto da reclamação, e o acórdão que a decidiu, e que se traduziu na inobservância do ónus de suscitação) e o pedido de aclaração (neste caso, por materializar uma mera discordância com o decidido).
2. Cumpre apreciar e decidir.
Da nulidade do acórdão
Sustenta o reclamante que houve «omissão de um acto (a notificação atempada ao reclamante da resposta do Ministério Público (…) a reclamação contra decisão sumária) que a lei prescreve (ou o respeito pelos princípios constitucionais impõe)», omissão que «influenciou decisivamente a decisão da reclamação contra [tal] decisão sumária», pois que «[o] Ministério Público, na sua resposta, acrescentou um novo fundamento para o não conhecimento do recurso» que veio a ser acolhido pelo Tribunal Constitucional, sem que lhe tenha sido dada a oportunidade processual para sobre ele se pronunciar, o que configura «uma violação dos princípios constitucionais do contraditório e das garantias de defesa e, numa palavra, do direito a um processo equitativo (artigos 20º, n.º 4, e 32º da Constituição)».
No recurso interposto pelo ora reclamante para o Tribunal Constitucional pretendia-se ver apreciada a inconstitucionalidade, entre outras, das «normas (…) contidas nos artigos 187º e 190º do Código de Processo Penal quando interpretadas no sentido de poderem valer como meio de prova os “prints” impressos de um computador pessoal, cujo acesso se efectuou sem autorização do utilizador nem autorização ou mandado do Juiz», por violarem, nesta interpretação, «o art.º 26º, n.º 1 (direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar), 32º, n.º 8 (nulidade das provas obtidas com abusiva intromissão na vida privada), 34º, n.º 4 (proibição de ingerência em meios de comunicação) e 32º, n.º 4 (impossibilidade de o juiz delegar a competência para a prática de actos que se prendem directamente com direitos fundamentais), da Constituição da República Portuguesa».
Em cumprimento do n.º 2 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), indicou então o recorrente que havia suscitado tal questão de inconstitucionalidade no «recurso para o Tribunal da Relação do Porto (vd. pág. 30 da motivação e Parecer do Prof. Rui Carlos Pereira e pág. 9 da resposta ao Parecer do MP no Tribunal da Relação do Porto).».
Na decisão sumária, o relator entendeu ser de não conhecer do objecto do recurso por não ter sido cumprido o ónus de suscitação, dizendo o seguinte:
«(…) Quanto à interpretação dos artigos 187º e 190º do CPP, segundo a qual podem valer como meio de prova os “prints” impressos de um computador pessoal, cujo acesso se efectuou sem autorização do utilizador nem autorização ou mandado do juiz, verifica-se que, nas alegações que produziu junto do tribunal recorrido, o recorrente não questionou a sua conformidade constitucional (…) – aliás, a decisão recorrida, no trecho em que trata da admissibilidade dos referidos “prints”, não resolveu qualquer questão de inconstitucionalidade (…) -, pelo que não cumpriu o ónus de suscitação a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, não podendo, consequentemente, conhecer-se do objecto do recurso, nesta parte. (…)».
Na reclamação para a conferência, o recorrente insistiu na consideração de que «a questão foi apresentada ao tribunal recorrido a tempo justamente de este a poder decidir», quer nas alegações de recurso que lhe foram apresentadas, quer no parecer de um professor de direito que juntou às alegações, quer, ainda, na resposta ao parecer do Ministério Público no Tribunal da Relação».
Neste ponto, respondeu o Ministério Público, sustentando, ao contrário, que o recorrente não suscitou tal questão da inconstitucionalidade no momento processual próprio, ou seja, na motivação do recurso para a Relação, e que, mesmo que se entendesse que «a resposta ao parecer era ainda o momento processual próprio para suscitar a questão» e «se tinha seguido uma forma processualmente adequada nessa suscitação», «falta o requisito de admissibilidade do recurso que consiste em a dimensão normativa aplicada na decisão recorrida não corresponder, integralmente, à suscitada».
Conclui, assim, pela impossibilidade de conhecimento, nesta parte, do recurso, «seja porque não foi suscitada a questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 187º e 190º, seja porque não há uma correspondência entre a dimensão normativa suscitada e a aplicada».
Este entendimento foi acolhido pelo acórdão que apreciou a reclamação para a conferência, nos seguintes termos:
Segundo o reclamante (cfr. o ponto I da reclamação), a questão de inconstitucionalidade teria sido suscitada nas páginas 30 e 31 das alegações produzidas perante o tribunal recorrido, num parecer de um professor de direito que juntou aos autos e na página 9 da resposta ao parecer do Ministério Público no Tribunal da Relação.
Mas manifestamente não foi imputada qualquer inconstitucionalidade, nas referidas páginas das alegações, a qualquer norma ou interpretação normativa, aspecto essencial para que uma questão de inconstitucionalidade possa ter-se por suscitada, nos termos dos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional. E, como bem observa o Ministério Público na resposta à presente reclamação, na motivação do recurso para a Relação, a fls. 77179 a 77181, limitou-se o recorrente a referir “os procedimentos levados a cabo quanto à apresentação do computador e à posterior análise dos “prints”, aí se dizendo que a não se ter procedido nos termos da lei, violaram-se as garantias de defesa constitucionalmente consagradas no artigo 32º da CRP” e concluindo-se que os “prints” haviam sido obtidos através de métodos proibidos de prova.
Por outro lado, e admitindo que, no mencionado parecer de um professor de direito e na mencionada resposta ao parecer do Ministério Público, foi suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa, a verdade é que, como também salienta o Ministério Público na resposta à presente reclamação, o tribunal recorrido não perfilhou a interpretação censurada pelo recorrente, segundo a qual podem valer como meio de prova os “prints” impressos de um computador pessoal, cujo acesso se efectuou sem autorização do utilizador nem autorização ou mandado do juiz.
A alusão que, na economia do acórdão, é feita àquele segundo «argumento» inovatoriamente invocado pelo Ministério Público, apenas releva para o caso de se admitir como processualmente válida a suscitação da questão da inconstitucionalidade normativa em parecer doutrinário anexo às motivações de recurso (e não nestas) ou em resposta, ulterior ao recurso, dada pelo recorrente a um parecer sobre ele emitido pelo Ministério Público na instância recorrida.
Trata-se, em todo o caso, de um argumento que, ainda que invocado a título meramente subsidiário, passou a constituir um outro fundamento da decisão de não conhecimento, que acresce ao incumprimento do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade.
Admitindo que, neste caso, a não notificação ao recorrente do parecer do Ministério Público proferido no Tribunal Constitucional, constitui omissão de formalidade que é susceptível de influir na decisão da causa, no ponto em que não permitiu ao recorrente pronunciar-se sobre a possível existência de um outro fundamento para a rejeição do recurso, é de considerar procedente a arguição de nulidade.
Do pedido de aclaração
Requer, ainda, o reclamante a aclaração do Acórdão n.º 137/2010, na parte em que o Tribunal aí afirma:
«(…) não se vê, porém, como é possível … autonomização [de certa interpretação normativa em relação à situação que lhe dá origem, ‘servindo de critério normativo abstracto passível de múltiplas aplicações futuras], atendendo aos contornos extremamente vagos que um tal critério teria; se o Tribunal Constitucional, seguindo o raciocínio do reclamante, decidisse no sentido da inconstitucionalidade da alegada interpretação segundo a qual a ilicitude, a culpa e a medida da pena podem ser determinadas exclusiva ou primacialmente por factos contra-ordenacionais, a aplicação de tal decisão no presente processo e a sua eventual consideração por outros tribunais em futuros processos só seria possível se, simultaneamente, se atendesse ao caso concreto que a gerou, pois que, desligada de tal caso, tal decisão seria incompreensível ou, pelo menos, passível de múltiplas e contraditórias interpretações; de modo que, aceitando embora que o Tribunal Constitucional pode sindicar a conformidade constitucional de interpretações normativas, se rejeita que o objecto do presente recurso possa como tal ser qualificado».
Pretende o reclamante, a propósito dessa passagem, que o Tribunal Constitucional esclareça, em concreto, se, com a decisão proferida no acórdão em causa, se afasta da jurisprudência deste mesmo Tribunal, que tem, em «inúmeras espécies jurisprudenciais», conhecido de «questões de constitucionalidade, algumas vezes concluindo mesmo pela inconstitucionalidade, referentes a interpretações normativas que só são compreensíveis atendendo ao caso concreto onde essas interpretações foram aplicadas» e «inaugura um novo critério (…) segundo o qual quando essas interpretações tiverem ‘contornos extremamente vagos’, deixa de ser possível o conhecimento da questão de constitucionalidade (…), ou se, ao invés, entende que está ainda em consonância com tais espécies jurisprudenciais, o que não resulta claro da argumentação expendida pelo Tribunal».
E, ainda, que «o Tribunal esclareça a contradição argumentativa resultante de, por um lado, se afirmar que a interpretação normativa definida como objecto do recurso tem contornos extremamente vagos e, por outro, que a consideração futura de uma eventual decisão de inconstitucionalidade dessa interpretação só seria possível se se atendesse ao caso concreto que a gerou».
A pretensão é manifestamente improcedente.
A aclaração visa desfazer a obscuridade ou ambiguidade do conteúdo da decisão, de modo a ultrapassar um estado relevante e objectivamente fundado de dúvida ou incerteza, quer quanto ao sentido da decisão, quer quanto às razões dela fundantes.
Ora, a dúvida que o requerente pretende ver esclarecida, em primeiro lugar, não se prende com o conteúdo da decisão: partindo do pressuposto que nela o Tribunal Constitucional adoptou um específico entendimento do que seja «interpretação normativa», pretende o requerente que seja o Tribunal a esclarecer se, relativamente à jurisprudência desta mesma instância, que o próprio enuncia, inaugurou ou não um novo critério na densificação de um tal critério.
Não compete, contudo, a este Tribunal, por via de decisões aclaratórias, efectuar qualquer esclarecimento quanto a saber se a sua jurisprudência é ou não inovatória.
Por outro lado, o acórdão em causa não padece de qualquer contradição lógica que importe clarificar no que diz respeito às razões que fundamentaram, nesta parte, a improcedência da reclamação: não ser o objecto do recurso, nessa parte, qualificável como «interpretação normativa», porque, contrariamente ao que defendeu o reclamante, se considerou, sem ambiguidades ou contradições lógicas, não constituir o objecto sindicado, pelas razões coerentemente enunciadas no transcrito trecho, um critério normativo susceptível de aplicação em futuros processos.
Finalmente, requer ainda o reclamante, nesta sede, que se «indique as passagens da decisão do Tribunal da Relação onde este Tribunal tenha valorado a culpa do arguido e determinado a respectiva medida da pena ao abrigo do artigo 71º, n.º 2, a), do Código Penal, (…) ou seja, as passagens onde o Tribunal da Relação tenha valorado a gravidade das consequências económicas do crime económico que é a fraude fiscal, traduzida no montante do imposto (IVA) que ficou por pagar».
Sustenta o requerente que «tal não resulta claro do Acórdão n.º 137/2010», com base na seguinte linha de argumentação:
Considerou o Tribunal Constitucional não ter sido adoptada pelo tribunal recorrido «a interpretação segundo a qual a ilicitude, a culpa e a medida da pena podem ser determinadas exclusiva ou primacialmente por factos contra-ordenacionais», decorrendo tal conclusão de «uma extrapolação do reclamante das referências que, na decisão, se fazem às dívidas de IEC», pois que «destas referências não pode inferir-se que a ilicitude, a culpa e a medida da pena não hajam sido, na decisão recorrida, ponderadas, mesmo primacialmente, em atenção a outros factos, nomeadamente dos ‘factos criminais relativos ao crime de fraude fiscal que o reclamante terá praticado em co-autoria, através de negócios simulados com vista ao não pagamento de IVA».
Contudo, sustenta o requerente, «(…) das considerações constantes da (..) decisão da Relação, que o reclamante citou na reclamação contra a Decisão Sumária (…), resultam claras (…) as referências ao montante das dívidas por factos contra-ordenacionais (…)», mas «[p]arecem [dela] não constar (…) referências aos valores de imposto por pagar que teria resultado do crime de fraude fiscal pelos quais o reclamante foi punido», pelo que requer a indicação de quais as passagens do acórdão recorrido onde conste tal valoração.
Também aqui se impõe, contudo, o indeferimento do requerido.
A via da aclaração não pode servir para viabilizar a discussão entre a parte e o tribunal sobre a bondade das suas decisões e, muito menos, para exigir ao tribunal a demonstração, por recurso a elementos externos, das premissas em que se baseou para decidir como decidiu.
Ora, no caso concreto, o que o requerente pretende é que, contrariamente ao decidido, a «interpretação» censurada foi implicitamente adoptada pelo tribunal recorrido, pois que este apenas fez uso, na apreciação da ilicitude e da culpa, para efeitos de determinação da medida da pena, de factos contra-ordenacionais, não constando do acórdão recorrido quaisquer outras valorações.
Não foi esse, porém, o entendimento do tribunal, pelas razões claramente enunciadas no acórdão em causa, sendo irrelevante que o reclamante questione a sua validade ou delas discorde, pois que a aclaração não é um instrumento processual de sindicância da decisão perante o tribunal que a proferiu.
3. Pelo exposto, decide-se:
a) deferir a reclamação quanto à arguição de nulidade e ordenar a notificação do recorrente para se pronunciar, querendo, sobre o parecer do Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal;
b) indeferir o pedido de aclaração.
Custas pelo requerente, na parte em que decaiu, fixando-se a taxa de justiça em 10 Uc.
Lisboa, 19 de Maio de 2010
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão