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Processo n.º s 523 e 524/10
Plenário
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, o Presidente da República vem requerer, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, bem como do n.º 1 do artigo 51.º e do n.º 1 do artigo 62.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do n.° 1 do artigo 68° do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1° da Lei n.° 11/2010, de 15 de Junho, quando conjugada com o disposto nos artigos 2.º e 3.º da mesma Lei e, também, do mesmo n.° 1 do artigo 68° do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1° da Lei n.° 12-A/2010, de 30 de Junho, quando conjugada com o disposto no n.° 1 do artigo 20° da mesma Lei.
2. Tendo apresentado dois requerimentos separados, um relativo à Lei n.° 11/2010, de 15 de Junho, e outro relativo à Lei n.° 12-A/2010, de 30 de Junho, o Presidente da República fundamentou-os do seguinte modo:
A) Requerimento relativo à Lei n.° 11/2010, de 15 de Junho
“1.º
A Assembleia da República aprovou, pela Lei n.º 11/2010, de 15 de Junho, uma alteração ao Código do IRS com o propósito de criar um escalão adicional de tributação, sujeitando os rendimentos anuais superiores a 150.000 euros à taxa de imposto de 45%.
2.º
A Lei n.º 11/2010 foi publicada em 15 de Junho e entrou em vigor em 16 de Junho de 2010.
3.º
O artigo 3.º da Lei n.º 11/2010 dispõe que a entrada em vigor da mesma ocorre no dia seguinte ao da sua publicação.
4.º
Tal norma de entrada em vigor permite a interpretação segundo a qual, por força dos prazos já indicados, as alterações em causa são aplicáveis aos rendimentos auferidos durante todo o ano de 2010.
5.º
Com efeito, a alteração à taxa de imposto irá produzir os seus efeitos relevantes quando se proceder ao apuramento do rendimento colectável e, consequentemente, à concreta aplicação da taxa, o que só ocorrerá após a apresentação, pelos sujeitos passivos da relação jurídica de imposto, das respectivas declarações de rendimentos.
6.º
Todavia, quando tal suceder, de acordo com a solução agora aprovada pelo legislador, a taxa alterada incidirá sobre a totalidade dos rendimentos auferidos durante o ano de 2010, ainda que percebidos em momento anterior ao da entrada em vigor da lei.
7.º
Ora, esta interpretação das normas objecto do requerimento suscita fundadas dúvidas de constitucionalidade porquanto, ao permitir a aplicação de uma taxa de imposto agravada a rendimentos auferidos em momento anterior ao da sua entrada em vigor, parece violar o princípio da irretroactividade da lei fiscal, inscrito no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição.
8.º
Com efeito, prescreve aquela norma Constitucional: “ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”.
9.º
Ao pretender fazer aplicar uma taxa de imposto mais elevada a rendimentos auferidos em momento anterior ao da sua entrada em vigor, a lei revela uma vocação de aplicação retroactiva, em directa contradição com a proibição inscrita no citado preceito constitucional.
10.º
Só a partir da revisão constitucional de 1997 passou a Constituição a consagrar expressamente a proibição de retroactividade da lei fiscal.
11.º
É certo que, tanto a doutrina como a jurisprudência, vinham já sustentando, antes mesmo da revisão constitucional, a existência de um princípio de irretroactividade da lei fiscal baseado nos princípios da legalidade fiscal, da igualdade contributiva, da protecção da confiança dos contribuintes ou da proibição de aplicação retroactiva de leis restritivas.
12.º
Já à luz da nova norma constitucional, o Tribunal desenvolveu jurisprudência consistente no sentido da inconstitucionalidade de norma fiscal agravadora com efeitos retroactivos.
13.º
Entre outras decisões do Tribunal, avulta a declaração com força obrigatória geral de inconstitucionalidade de norma fiscal agravadora retroactiva proferida no acórdão n.º 63/2006.
14.º
Tendo por certa a proibição de aplicação retroactiva da lei fiscal agravadora, importa verificar se, no caso em apreciação, ocorre tal retroactividade.
15.º
Em apoio à interpretação da norma constitucional, é útil convocar o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 12.º da Lei Geral Tributária:
“1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos.
2 - Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”.
16.º
Com efeito, tendo a lei entrado em vigor em 16 de Junho de 2010 e aplicando-se a rendimentos auferidos desde Janeiro do mesmo ano, é clara a sua aplicação a rendimentos anteriores à sua entrada em vigor.
17.º
Tal significa, pois, que os sujeitos passivos cujos rendimentos irão ser submetidos à nova taxa de 45% não contavam, nem podiam legitimamente contar, com a aplicação desta nova taxa de imposto no momento em que auferiram os rendimentos durante a primeira metade do ano.
18.º
Pois se a norma agravadora vai ser aplicada a rendimentos anteriores e se, no momento de cada pagamento, é possível isolar um facto tributário, pode ser feita a interpretação segundo a qual existe aplicação retroactiva da norma fiscal agravadora ou desvantajosa.
19.º
Esta retroactividade é, ainda, susceptível de perturbar a confiança legítima que os contribuintes depositaram no legislador.
20.º
No momento em que os rendimentos anteriores foram auferidos, os sujeitos passivos da relação jurídica de imposto sabiam que a taxa máxima aplicável seria de 42%.
21.º
Sempre se poderia afirmar, é certo, que o facto tributário é de formação sucessiva, atento o princípio da anualidade do imposto. De acordo com esta leitura, os elementos da relação jurídica de imposto só se encontrariam estabilizados uma vez terminado o ano fiscal.
22.º
Não deve, todavia, confundir-se relação jurídica tributária com facto tributário. Este último coincide, tendencialmente, com o momento de recebimento do rendimento. Deste modo, a formação sucessiva do facto tributário estará relacionada com a natureza do rendimento e não com a estabilização dos elementos da relação jurídica tributária.
23.º
Além do mais, a Lei Geral Tributária prescreve a aplicação da lei nova apenas ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor quando o facto tributário seja de formação sucessiva.
24.º
Por outro lado, ao criar um escalão adicional, superior ao mais elevado previsto na tabela em vigor, o legislador sujeitou os sujeitos passivos cujos rendimentos se enquadram neste novo escalão a uma taxa de imposto que estes nunca poderiam prever no momento do percebimento daqueles rendimentos.
25.º
Conclui-se, pois, que existem fundadas dúvidas sobre a constitucionalidade material das normas objecto do pedido, por violação da proibição de retroactividade da lei fiscal agravadora prevista no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição e dos princípios constitucionais da legalidade fiscal, constante do n.º 1 do artigo 103.º e da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.”
B) Requerimento relativo à Lei n.° 12-A/2010, de 30 de Junho
“1.º
A Assembleia da República aprovou, pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, um “conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental que visam reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC)”.
2.º
A Lei n.º 12-A/2010 foi publicada em 30 de Junho e entrou em vigor em 1 de Julho de 2010.
3.º
Entre as várias medidas aprovadas, encontram-se alterações relevantes em matéria fiscal, designadamente no que respeita às taxas gerais aplicáveis em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
4.º
O n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 12-A/2010 dispõe que a entrada em vigor da mesma ocorre no dia seguinte ao da sua publicação.
5.º
Tal norma de entrada em vigor permite a interpretação segundo a qual, por força dos prazos já indicados, as alterações em causa são aplicáveis aos rendimentos auferidos durante todo o ano de 2010.
6.º
Com efeito, a alteração à taxa de imposto irá produzir os seus efeitos relevantes quando se proceder ao apuramento do rendimento colectável e, consequentemente, à concreta aplicação da taxa, o que só ocorrerá após a apresentação, pelos sujeitos passivos da relação jurídica de imposto, das respectivas declarações de rendimentos.
7.º
Todavia, quando tal suceder, de acordo com a solução agora aprovada pelo legislador, a taxa alterada incidirá sobre a totalidade dos rendimentos auferidos durante o ano de 2010, ainda que percebidos em momento anterior ao da entrada em vigor da lei.
8.º
Ora, esta interpretação das normas objecto do requerimento suscita fundadas dúvidas de constitucionalidade porquanto, ao permitir a aplicação de uma taxa de imposto agravada a rendimentos auferidos em momento anterior ao da sua entrada em vigor, parece violar o princípio da irretroactividade da lei fiscal, inscrito no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição.
9.º
Com efeito, prescreve aquela norma Constitucional: “ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”.
10.º
Ao pretender fazer aplicar uma taxa de imposto mais elevada a rendimentos auferidos em momento anterior ao da sua entrada em vigor, e tratando-se de uma norma de incidência fiscal, a lei revela uma vocação de aplicação retroactiva, em directa contradição com a proibição inscrita no citado preceito constitucional.
11.º
A este facto não foi, de resto, alheio o legislador. Na verdade, de acordo com a exposição de motivos que acompanhava a proposta de lei, “no que respeita à tributação adicional em sede de IRS, ela é concretizada através da fixação de uma nova tabela geral de taxas, que incidem formalmente sobre o todo dos rendimentos de 2010 e que, portanto, não afectam situações de tributação pretéritas consolidadas jurídico-fiscalmente. Além disso, de modo a garantir que os contribuintes apenas sofrem acréscimo correspondente a sete meses do ano, as taxas adicionais de 1% e de 1,5% são objecto de uma ponderação, aplicando-se em 2010 apenas em 7/12 do seu valor”.
12.º
A dispersão da taxa ao longo do ano de modo proporcional procura fazer repercutir nos contribuintes um aumento de carga fiscal correspondente a 7 meses do ano de 2010.
13.º
A alteração à tabela que prevê as taxas gerais reflecte isso mesmo: o aumento introduzido nas taxas dos diversos escalões corresponde a 7/12 do aumento pretendido de 1% até ao 3.º escalão, e de 1,5% a partir do 4.º escalão.
14.º
Se é clara a tentativa do legislador de evitar a retroactividade da alteração das taxas bem como é descortinável a solução encontrada para o ensaiar, já não é evidente que o resultado a que chega permita pacificar as dúvidas de constitucionalidade.
15.º
Com efeito, do ponto de vista da retroactividade da lei, é irrelevante que a intenção do legislador tenha sido a de aprovar um aumento superior da taxa de imposto, tendo depois dispersado um incremento proporcional, correspondente ao tempo não transcorrido até final do ano fiscal.
16.º
Tanto mais que, sem prejuízo da dispersão proporcional da taxa, os contribuintes continuaram a sofrer um incremento mantendo-se a natureza agravadora ou desvantajosa da nova lei fiscal.
17.º
O que releva, pois, para o efeito de se aferir da aplicação retroactiva da lei, é saber se a nova taxa agravadora será aplicável a factos tributários anteriores ao momento da sua entrada em vigor, mantendo-se o seu carácter desvantajoso.
18.º
Se tal suceder, ainda que o aumento da taxa seja diminuto ou proporcional em relação a um incremento superior ambicionado, estarão afectados os princípios constitucionais da legalidade fiscal e da protecção da confiança dos contribuintes uma vez que o sujeito passivo de imposto vem a ser surpreendido por um aumento da taxa com o qual não contava, nem podia legitimamente contar, no momento em que recebeu os rendimentos.
19.º
Só a partir da revisão constitucional de 1997 passou a Constituição a consagrar expressamente a proibição de retroactividade da lei fiscal.
20.º
É certo que, tanto a doutrina como a jurisprudência, vinham já sustentando, antes mesmo da revisão constitucional, a existência de um princípio de irretroactividade da lei fiscal baseado nos princípios da legalidade fiscal, da igualdade contributiva, da protecção da confiança dos contribuintes ou da proibição de aplicação retroactiva de leis restritivas.
21.º
O Tribunal Constitucional afirmou não poder admitir-se a retroactividade irrestrita da lei fiscal. Todavia, à míngua de base constitucional, acabou por desenvolver – nos acórdãos n.ºs 66/84 e 67/91 – uma jurisprudência que concedia uma ampla margem de conformação ao legislador ordinário em matéria de retroactividade fiscal.
22.º
Foi porventura esta linha jurisprudencial, acompanhada de alguma doutrina, que levou o legislador constituinte a acabar por procurar dissipar as dúvidas quando, na revisão constitucional de 1997, introduziu expressamente na Constituição a proibição de lei fiscal retroactiva.
23.º
Já à luz da nova norma constitucional, o Tribunal desenvolveu jurisprudência consistente no sentido da inconstitucionalidade de norma fiscal agravadora com efeitos retroactivos.
24.º
Entre outras decisões do Tribunal, avulta a declaração com força obrigatória geral de inconstitucionalidade de norma fiscal agravadora retroactiva proferida no acórdão n.º 63/2006.
25.º
Tendo por certa a proibição de aplicação retroactiva da lei fiscal agravadora, importa verificar se, no caso em apreciação, ocorre tal retroactividade.
26.º
Em apoio à interpretação da norma constitucional, é útil convocar o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 12.º da Lei Geral Tributária:
“1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos.
2 - Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”.
27.º
A este propósito, a doutrina costuma distinguir diversos graus de retroactividade. Será retroactividade de grau máximo a circunstância de a lei nova se pretender aplicar a factos tributários passados e já totalmente consolidados; terá grau intermédio de retroactividade a lei aplicável a factos tributários anteriores mas cujos efeitos ainda se produzem no momento de entrada em vigor da lei nova.
28.º
Alguma doutrina refere-se ainda a retrospectividade – ou retroactividade imprópria – que, não podendo ser reconduzida à figura da retroactividade própria por não se projectar a lei nova em factos já consolidados no momento da sua entrada em vigor, ainda assim será constitucionalmente censurável na medida em que ponha em crise, de forma intolerável, o princípio da protecção da confiança.
29.º
Concretamente quanto ao problema da alteração da taxa de imposto durante o ano fiscal, pretendendo o legislador a sua aplicação aos rendimentos auferidos durante o ano, antes mesmo da entrada em vigor da lei, são conhecidas diversas opiniões doutrinárias.
30.º
Aqui podem conceber-se, em síntese, as seguintes opiniões: i) o imposto sobre o rendimento é qualificável como um imposto periódico pelo que o período de tributação só se estabiliza no fim do ano fiscal, em 31 de Dezembro de cada ano, estando, pois, afastada a retroactividade; ii) a alteração da taxa de imposto só pode ser aplicável aos rendimentos do ano seguinte, sob pena de retroactividade, uma vez que a taxa de imposto deve ser definida no momento inicial do ano fiscal e, por isso, no dia 1 de Janeiro de cada ano; iii) é admissível uma aplicação da nova taxa pro rata temporis, isto é, apenas aos rendimentos auferidos após a sua entrada em vigor (Vd. NUNO SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, 1997, p. 417 a 420).
31.º
Muito relevante para a apreciação da retroactividade na questão em apreço, é, pois, a definição de facto tributário e do momento em que este ocorre.
32.º
Estabelece a lei geral tributária, no n.º 1 do artigo 36.º, que “a relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário”.
33.º
Facto tributário não se confunde, pois, com relação jurídica tributária: esta relação constitui-se com a verificação do facto tributário que, assim, se encontra delimitado no tempo (Acórdãos do TC n.ºs 110/2002, 128/2009 e 85/2010).
34.º
Deste modo, no que respeita às normas em apreciação, e tendo em conta a opção doutrinária exposta em iii), o facto tributário pode ser isolado no momento da percepção dos rendimentos individualmente considerados.
35.º
Esta mesma convicção parece ter estado presente no espírito do legislador quando fraccionou o ano em 12, aplicando o aumento na proporção de 7/12, correspondente a 7 meses do ano.
36.º
Tal solução só é explicável se se considerar como facto tributário o percebimento mensal dos rendimentos.
37.º
A solução ignora, contudo, outras categorias remuneratórias, desde logo os casos muito frequentes de profissionais que não auferem um rendimento mensal fixo.
38.º
Nestes casos, pode bem suceder que uma parte substancial do rendimento – se não mesmo a sua totalidade – tenha sido auferido na primeira metade do ano de 2010.
39.º
Com efeito, não resultando o incremento percentual anunciado nem a sua dispersão proporcional de factos materialmente comprováveis, mas antes de decisões de natureza política, os sujeitos passivos serão submetidos a um aumento de carga fiscal que lhes é desvantajosa e que incide sobre rendimentos auferidos antes da entrada em vigor de tal incremento.
40.º
A interpretação aqui em apreciação parece conduzir à aplicação retroactiva da lei fiscal.
41.º
Pois se a norma agravadora – ainda que de forma proporcional – vai ser aplicada a rendimentos anteriores e se, no momento de cada pagamento, é possível isolar um facto tributário, parece claro que existe aqui a aplicação retroactiva da norma fiscal agravadora ou desvantajosa.
42.º
Sempre se poderia afirmar que o facto tributário é de formação sucessiva, atento o princípio da anualidade do imposto. De acordo com esta leitura, os elementos da relação jurídica de imposto só se encontrariam estabilizados, uma vez terminado o ano fiscal.
43.º
Mas ainda que assim se entendesse, prescreve a Lei Geral Tributária que, nos casos em que o facto tributário seja de produção sucessiva, a lei nova só se aplica ao “período decorrido após a sua entrada em vigor”.
44.º
Parece, contudo, como se deixou dito, ser possível isolar o facto tributário. É aliás esta susceptibilidade de individualização que permite, ao longo do ano, a aplicação parcial da retenção na fonte.
45.º
É certo que a retenção na fonte não implica a definitividade da relação jurídica de imposto uma vez que esta só será estabilizada no fim do ano fiscal, designadamente, para apuramento da taxa de imposto concretamente aplicável.
46.º
Mas só será concebível a exigibilidade pelo Estado de uma determinada retenção se se puder isolar cada percebimento de rendimento como um facto tributário autónomo.
47.º
Conclui-se, pois, que existem fundadas dúvidas sobre a constitucionalidade material das normas objecto do pedido, por violação da proibição de retroactividade da lei fiscal agravadora prevista no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição e dos princípios constitucionais da legalidade fiscal, constante do n.º 1 do artigo 103.º e da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição. ”
3. Por despacho do Presidente do Tribunal, com fundamento em que as questões jurídicas em causa são essencialmente idênticas, foi determinada a incorporação do processo n.º 524/10 nos autos do processo n.º 523/10.
4. Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Presidente da Assembleia da República, em resposta, ofereceu o merecimento dos autos e juntou documentação relativa aos trabalhos preparatórios das Leis nos 11/2010, de 15 de Junho, e 12-A/2010, de 30 de Junho, precedida dos respectivos índices.
5. Após discussão em Plenário do memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir de harmonia com o que então se estabeleceu.
II – Fundamentação
A questão de constitucionalidade
6. A Assembleia da República aprovou, em Junho de 2010, dois diplomas que alteram o n.º 1 do artigo 68.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS).
Este imposto incide sobre os rendimentos das pessoas singulares, sejam esses rendimentos de carácter mais permanente ou ocasional e resultem esses mesmos rendimentos de relações de trabalho dependente, de prestações de trabalho independente, de proventos de bens patrimoniais mobiliários ou imobiliários ou de qualquer outra fonte que a lei especifique. O mencionado n.º 1 do artigo 68.º do CIRS fixa os diferentes escalões e taxas aplicáveis aos contribuintes não isentos deste imposto.
6.1. A Lei n.º 11/2010, de 15 de Junho - cuja entrada em vigor ficou determinada para o dia seguinte ao da sua publicação - aprovou uma alteração ao n.º 1 do artigo 68.º do CIRS, que introduziu um novo escalão de rendimento anual para os agregados familiares ou contribuintes individuais com rendimentos globais superiores a 150.000 euros, ao qual passou a corresponder uma nova taxa de 45%.
Anteriormente, por força da Lei do Orçamento de Estado, aprovada um mês e meio antes, estes mesmos contribuintes estavam sujeitos ao último escalão aplicável aos rendimentos superiores a 64.623 euros a que correspondia a taxa da 42%.
Esta medida é acompanhada de uma disposição transitória (o artigo 2.º) que estabelece o seu âmbito de aplicação temporal: 'A taxa de 45 % prevista na tabela do artigo 68.º do Código do IRS e as adaptações decorrentes da sua criação são aplicáveis aos rendimentos obtidos entre os anos de 2010 e 2013, inclusive'.
Resulta, pois, claro que o novo escalão, tendo legalmente um carácter anual, se pretende aplicar unitariamente ao presente ano de 2010 e, consequentemente, a todos os rendimentos obtidos durante este ano, mesmo os rendimentos obtidos, no passado, antes da entrada em vigor da lei.
6.2. Posteriormente, a Assembleia da República aprovou uma nova alteração ao n.º 1 do artigo 68.º do CIRS, através da Lei n.º 12-A/2010, tendo-se procedido ao aumento do valor das taxas de todos os escalões, incluindo a taxa introduzida pela mencionada Lei n.º 11/2010. Esta outra versão do artigo 68.º do CIRS entrou em vigor, em conjunto com o diploma onde se insere, no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, a 1 de Julho de 2010.
A questão de saber se a lei se aplicava ou não a todos os rendimentos auferidos no ano de 2010 colocou-se durante os trabalhos preparatórios da mesma.
Assim, na Reunião Plenária da Assembleia da República, de 2 de Junho de 2010, em que se debateu, na generalidade, a Proposta de Lei n.º 26/XI (1ª), tendo sido questionado sobre a eventual retroactividade, o Ministro de Estado e das Finanças respondeu que a solução é “proporcional, pois, embora abranja o rendimento do ano, tem em conta somente sete meses”. Quer dizer: o acréscimo de taxa corresponderia apenas a 7/12 de 1% ou 1,5%, consoante os casos, e que teria por finalidade evitar a solução de 'os contribuintes e os serviços terem de fazer duas liquidações de IRS no mesmo ano' o que, segundo o Ministro, seria 'impraticável e impensável' (DAR I Série - n.º 64, de 4 de Junho de 2010, p. 55).
Além disso, foi rejeitada, em sede de votação na especialidade, a proposta de um aditamento à Proposta de Lei n.º 26/XI, que constava de um artigo 1.º-A, e que visava a salvaguarda das situações passadas (DAR I Série - n.º 66, de 11 de Junho de 2010, p. 39), ou seja, entre 1 de Janeiro e a data da entrada em vigor da lei, como melhor se verá adiante.
Ambas as leis se inserem no âmbito do Plano de Estabilidade e Crescimento (PEC) e pretendem responder à conjuntura financeira, fazendo face à urgência da redução do défice e dos custos da dívida pública acumulada, através da obtenção de uma maior receita fiscal.
O Requerente não põe em causa o agravamento fiscal, resultante do aumento das taxas e do número de escalões, nas duas modificações sucessivas do n.º 1 do artigo 68.º do CIRS. Pelo contrário, a questão de constitucionalidade – que nos é colocada nos dois casos – é a de saber se será admissível aplicar tal agravamento aos rendimentos auferidos antes da entrada em vigor das leis que estamos a considerar, ou seja, o problema que se coloca é o da retroactividade das duas alterações ao n.º 1 artigo 68.º do CIRS.
7. O teor das normas é o seguinte:
Lei n.º 11/2010, de 15 de Junho
Artigo 1.º
Alteração ao Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
O artigo 68.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, abreviadamente designado por Código do IRS, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 442 -A/88, de 30 de Novembro, passa a ter a seguinte redacção:
«Artigo 68.º
1 — […]
Rendimento Colectável (em euros)
Taxas (em percentagem)
Normal (A)
Média (B)
Até 4 793
10,5
10,5000
De mais de 4 793 até 7 250
13
11,3471
De mais de 7 250 até 17 979
23,5
18,5996
De mais de 17 979 até 41 349
34
27,3039
De mais de 41 349 até 59 926
36,5
30,1546
De mais de 59 926 até 64 623
40
30,8702
De mais de 64 623 até 150 000
42
37,2050
Superior a 150 000
45
-----
2— […]
Artigo 2.º
Disposição transitória
A taxa de 45 % prevista na tabela do artigo 68.º do Código do IRS e as adaptações decorrentes da sua criação são aplicáveis aos rendimentos obtidos entre os anos de 2010 e 2013, inclusive.
Artigo 3.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho
Artigo 1.º
Alteração ao Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
Os artigos 68.º, 71.º, 101.º e 102.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, abreviadamente designado por Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, passam a ter a seguinte redacção:
«Artigo 68.º
1. […]
Rendimento Colectável (em euros)
Taxas (em percentagem)
Normal (A)
Média (B)
Até 4 793
11,08
11,080
De mais de 4 793 até 7 250
13,58
11,927
De mais de 7 250 até 17 979
24,08
19,179
De mais de 17 979 até 41 349
34,88
28,053
De mais de 41 349 até 59 926
37,38
30,944
De mais de 59 926 até 64 623
40,88
31,667
De mais de 64 623 até 150 000
42,88
38,049
Superior a 150 000
45,88
-----
Artigo 20.º
Entrada em vigor
1 — A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
Indicação de sequência
8. Partindo do princípio que se demonstrará, em seguida, de que a Constituição da República Portuguesa proíbe a retroactividade fiscal, no artigo 103.º, n.º 3, CRP, a resposta à questão de constitucionalidade colocada pelo Requerente, implica, num primeiro momento, a delimitação do conceito de retroactividade fiscal constante daquele preceito.
Num segundo momento, importará averiguar se as normas, cuja constitucionalidade é posta em causa, são, ou não são, contrárias à proibição da retroactividade fiscal imposta pela Lei Fundamental, pelo que será necessário determinar qual o momento em que se verifica o facto tributário, ou seja, qual o momento em que nasce a obrigação tributária, no caso de um imposto sobre o rendimento das pessoas – IRS – que é o que está em causa nos presentes autos.
Num terceiro momento, se as normas em apreciação não estiverem feridas de inconstitucionalidade por violação do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, então ainda se deverão submeter aos testes resultantes do princípio do Estado de Direito, como seja a protecção da confiança.
A consagração constitucional da proibição da retroactividade da lei fiscal
8.1. Contrariamente à generalidade das Constituições europeias, a Constituição da República Portuguesa proíbe, expressamente, a retroactividade fiscal, no artigo 103.º, n.º 3, o qual estabelece o seguinte:
'Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei'.
Alguma doutrina criticou a introdução desta proibição na Lei Fundamental. Casalta Nabais apelida-a mesmo de “novorriquismo constitucional” (in Direito Fiscal, 5ª ed., Coimbra, 2009, p. 146, nota 33) e Saldanha Sanches considera-a “fruto do ocaso político da referida revisão constitucional” (in Manual de Direito Fiscal, 3ª ed., Coimbra, 2007, p. 190), prosseguindo o Autor com a afirmação de que não se resolveu a questão essencial que era a de saber se a retroactividade foi consagrada num sentido forte ou fraco, questão essa que continua remetida para a jurisprudência (Manual de Direito Fiscal, p. 191). Outros Autores, como é o caso de Bacelar Gouveia ('A Irretroactividade da Norma Fiscal na Constituição Portuguesa', in Ciência e Técnica Fiscal, 1997, p. 51 e segs), mostraram-se menos críticos.
É certo que o artigo 103.º, n.º 3, da CRP só foi introduzido no texto constitucional na revisão de 1997, mas o princípio da não retroactividade da lei fiscal desfavorável já decorria do princípio da protecção de confiança e da ideia de Estado de Direito, nos termos do artigo 2.º da CRP, mesmo antes da sua expressa consagração (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra, 2007, p. 1092 e ss).
8.2. Antes da revisão constitucional de 1997, a Comissão Constitucional (cfr. Parecer n.º 25/81, Acórdão n.º 444, Parecer n.º 14/82) e, posteriormente, o Tribunal Constitucional (cfr. Acórdão n.º 11/83 e Acórdãos n.º 66/84 e n.º 141/85) tiveram diversas oportunidades de se ocupar desta questão, tendo decidido que, apesar de não se poder retirar da Constituição uma proibição radical de impostos retroactivos, tal deveria considerar-se constitucionalmente vedado quando essa retroactividade fosse «arbitrária e opressiva» e violasse «de forma intolerável a segurança jurídica e a confiança que as pessoas têm obrigação (e também o direito) de depositar na ordem jurídica que as rege». «A retroactividade tributária terá o beneplácito constitucional» se a confiança dos destinatários da norma for «materialmente injustificada» ou se ocorrerem «razões de interesse geral que a reclamem e o encargo para o contribuinte não se mostrar desproporcionado» (cfr. Parecer n.º 14/82).
Para J. M. Cardoso da Costa “[a] linha demarcadora do âmbito da retroactividade fiscal constitucionalmente admissível passará, desde logo, pela distinção entre situações tributárias «permanentes» e «periódicas» e «factos» cuja eficácia fiscal se esgota ou se firma «instantaneamente», para cada um deles «de per si» (maxime, pela distinção entre «impostos periódicos» e «impostos de obrigação única»), e passará provavelmente, depois, no que concerne àquele primeiro tipo de situações, pela distância temporal que já tiver mediado entre o período de produção dos rendimentos e a criação (ou modificação) do correspondente imposto. Isto, de todo o modo, sem prejuízo do relevo de outras circunstâncias, cujo possível peso não poderá ignorar-se.” (Cfr. Cardoso da Costa, 'O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal', in Perspectivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição, Vol. II, Coimbra, 1997, p. 418).
Recentemente, no acórdão n.º 128/2009, o Tribunal considerou que a natureza necessariamente fluida dos critérios utilizados levou a que, “em diversos arestos, o Tribunal viesse dar como boas leis fiscais retroactivas. Foi o que sucedeu, por exemplo, nos Acórdãos n.º 11/83 e 66/84 (este último em Acórdãos, 4.º Vol. p. 35) e ainda nos Acórdãos n.ºs 67/91, 1006/96, 1204/96 e 416/02 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Noutros casos, ao invés, o Tribunal entendeu que, por inexistirem razões de interesse público que prevalecessem sobre o valor da segurança jurídica, as normas retroactivas seriam intoleráveis e, consequentemente, constitucionalmente ilegítimas (Cfr., por exemplo, os Acórdão ns.º 409/89, 216/90, 410/95 e 185/2000, também disponíveis no mesmo lugar).”
8.3. Após a revisão constitucional de 1997, com a consagração expressa do princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal, a jurisprudência do Tribunal não pôde deixar de ter em conta esta alteração (cfr., entre outros, acórdãos n.ºs 172/00, 604/05 e 63/06).
Note-se, porém, que as questões de constitucionalidade que se suscitaram perante o Tribunal relativamente à proibição da retroactividade fiscal, após a revisão constitucional de 1997, não se assemelham à questão que se coloca nos presentes autos.
O sentido da retroactividade na CRP
9. Proibindo a Constituição a retroactividade da lei fiscal, cumpre salientar que o seu sentido não é unívoco.
Como sustenta Alberto Xavier, não basta afirmar que a lei fiscal não pode ser retroactiva, pois a concretização deste princípio envolve sérias dificuldades, atendendo a que se podem descortinar dentro dele diversos graus, sendo que, do ponto de vista constitucional, alguns são mais gravemente desvalorados do que outros (Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, Lisboa 1974, p. 196 e segs; idem, 'O problema da retroactividade das leis sobre imposto de renda', in Textos Seleccionados de Direito Tributário, coord. de Sampaio Dória, São Paulo, 1983, p. 77 e segs. Mais recentemente, cfr. Américo Fernando Brás Carlos, Impostos – Teoria Geral, 3ª ed., Coimbra, 2010, p. 142 e segs).
Assim, um caso em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga e um outro caso em que o facto tributário tenha ocorrido ao abrigo da lei antiga, mas os seus efeitos, designadamente os relativos à liquidação e pagamento, ainda não estejam totalmente esgotados não terão necessariamente o mesmo desvalor constitucional, uma vez que a primeira situação é do ponto de vista da eventual afectação da situação jurídica do contribuinte mais grave que a segunda. E estes dois casos diferenciam-se também de um terceiro em que o facto tributário que a lei nova pretende regular na sua totalidade não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes se continua formando na vigência da lei nova, como acontece nos presentes autos.
A qualificação que a doutrina atribui a cada uma destas situações não é de todo convergente, verificando-se, todavia, um certo consenso em considerar a primeira situação descrita como retroactividade autêntica (cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, p. 147; Américo Fernando Brás Carlos, Impostos, p. 145 e segs.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, Lisboa, 1996, p. 414 e segs.). Em relação aos segundo e terceiro casos enunciados, há quem considere que ambas as situações se enquadram na retroactividade inautêntica, enquanto outros apenas incluem a segunda situação nesta categoria, defendendo que o terceiro caso já não se integra em qualquer tipo de retroactividade, mas sim na retrospectividade (cfr. Américo Fernando Brás Carlos, Impostos, p. 145 e segs.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, Lisboa, 1996, p. 419 e 420).
Independentemente da terminologia utilizada pela doutrina para qualificar cada uma destas situações, o que interessa nos presentes autos é a delimitação rigorosa do âmbito da proibição constitucional da retroactividade.
9.1. Ora, os trabalhos preparatórios da IV Revisão Constitucional revelam-se, neste domínio, particularmente elucidativos.
A ideia da não retroactividade da lei fiscal (impositiva) foi apresentada em várias propostas que a incluíam, em locais distintos, tendo três delas sido objecto de discussão na reunião da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, de 9 de Outubro de 1996 (cfr. DAR, II Série, RC, n.º 36, de 10 de Outubro de 1996, p. 1081).
O teor dessas propostas era o seguinte:
a) Proposta apresentada pelo PS:
«A lei fiscal não pode ser aplicada retroactivamente, sem prejuízo de as normas respeitantes a impostos directos poderem incidir sobre os rendimentos do ano anterior».
b) Proposta apresentada pelo PCP:
«A lei que criar ou aumentar impostos não pode ter efeito retroactivo, sendo vedada a tributação relativa a factos geradores ocorridos antes da respectiva lei».
c) Proposta apresentada pelo PSD:
«Ninguém poder ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».
Da sua discussão em Comissão resulta, claramente, o seguinte:
1.º) Verificou-se um certo consenso no sentido da consagração da proibição da retroactividade pura e simples da lei fiscal, como o demonstram, em especial, as intervenções dos Deputados José Magalhães, Octávio Teixeira e Maria Eduarda Azevedo. Assim, logo na sua primeira intervenção, a propósito do actual n.º 3 do artigo 103.º CRP, o Deputado José Magalhães afirma que ”(… ) há um consenso inicial no sentido de se clarificar este ponto, objecto de abundante controvérsia doutrinal e jurisprudencial (…)”. No mesmo sentido se expressou o Deputado Octávio Teixeira: “em relação a esta questão da retroactividade (…), o que nos interessa fundamentalmente é constitucionalizar o princípio da não retroactividade”. A Deputada Maria Eduarda Azevedo assevera mesmo que “estamos todos na mesma linha quanto às propostas apresentadas” (cfr. DAR, II Série, RC, n.º 36, de 10 de Outubro de 1996, p. 1081 e segs).
2.º) A retroactividade só é proibida para as leis que criem ou aumentem impostos e não para as que diminuam ou eliminem impostos.
3.º) Não se pretendeu abranger as situações – que, aliás, ocorrem, frequentemente, nos Orçamentos – de alteração de taxas sobre rendimentos do ano anterior no que diz respeito aos impostos sobre o rendimento, como é caso do IRS. A primeira intervenção neste sentido coube a José Magalhães: “a nossa formulação (…) visa clarificar (…) o que é e o que não é retroactividade, designadamente salvaguardar, como é evidente, o princípio de que as normas respeitantes a impostos directos que incidem sobre os rendimentos do ano anterior não devem ter efeitos retroactivos. Obviamente sempre assim terá de ser.” (cfr. DAR, II Série, RC, n.º 36, de 10 de Outubro de 1996, p. 1081 e segs). Também a intervenção do Deputado Octávio Teixeira corrobora este entendimento: “(…) aquando da primeira leitura, todos os partidos políticos presentes nesta Comissão disseram que não queriam confundir o seguinte: quando nos Orçamentos para o ano X ou para o ano N se alteram, por exemplo, as taxas, as deduções, os abatimentos, ou o que quer que seja aos impostos sobre os rendimentos – quer o IRS quer o IRC – essas alterações aplicam-se aos rendimentos do ano N menos 1” (cfr. DAR, II Série- RC, n.º 99, de 4 de Junho de 1997, p. 2920 e segs.).
4.º) O escopo da norma era o de impedir a criação de impostos extraordinários, como o que tinha ocorrido em 1983 (imposto extraordinário) e não se deveria estender, nos casos dos impostos directos, como o IRS e o IRC, à possibilidade de alterar as taxas sobre rendimentos do ano anterior (cfr., de novo, a intervenção do Deputados Octávio Teixeira, in DAR, II Série- RC, n.º 99, de 4 de Junho de 1997, p. 2920 e segs.).
Em suma, dos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1997 retira-se, por um lado, que o legislador da revisão apenas pretendeu incluir, no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, a proibição da retroactividade autêntica, própria ou perfeita da lei fiscal, o que não é contrariado pela letra do preceito, uma vez que o texto constitucional apenas se refere à natureza retroactiva tout court. Por outro lado, resulta igualmente dos trabalhos preparatórios, de forma cristalina, que não se pretenderam integrar no preceito as situações em que o facto tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova, pelo menos, quando estão em causa impostos directos relativos ao rendimento (como é claramente o caso dos presentes autos).
9.2. Aliás, o próprio Tribunal Constitucional, na sua mais recente jurisprudência em matéria fiscal, designadamente nos acórdãos n.os 128/2009 e 85/2010, também considerou que a retroactividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, CRP é somente a autêntica. Disse-se no primeiro acórdão:
“Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroactivas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroactiva, sendo a expressão «retroactividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.”
E mais adiante, no referido acórdão, reitera-se:
“A retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroactividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a retroactividade que se traduz na aplicação de lei nova a factos (no caso, factos tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da lei nova).”
Note-se, contudo, que, nestes dois arestos, o Tribunal decidiu que, nos casos em apreciação, não havia qualquer retroactividade, ou seja, não havia aplicação da lei a factos anteriores à sua entrada em vigor.
Na doutrina, Autores há que consideram que o âmbito de aplicação do artigo 103.º, n.º 3, CRP abrange somente a retroactividade autêntica e não a imprópria ou 'inautêntica' (Casalta Nabais, Direito Fiscal, p. 147; Rui Guerra da Fonseca, Comentário à Constituição Portuguesa, II volume, coordenação de Paulo Otero, pp. 872 e segs., Américo Fernando Brás Carlos, Impostos, p. 145 e segs.), enquanto outros mostram mais simpatia pela posição contrária, como é o caso de Paz Ferreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo II, Coimbra, 2006, p. 223, seguindo a posição de Diogo e Mónica Leite de Campos e Jorge Bacelar Gouveia).
9.3. Dito isto, vejamos se as normas das duas leis fiscais – as Leis n.os 11/2010 e 12-A/2010 – que introduzem alterações ao n.º 1 do artigo 68.º do CIRS, cuja entrada em vigor ocorreu no dia seguinte ao da sua publicação, estão ou não feridas de retroactividade autêntica.
A resposta a esta questão afigura-se relativamente simples, uma vez que nenhuma destas normas se pretende aplicar a factos tributários que tenham produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, pelo que não se verifica a retroactividade autêntica.
Para uma melhor compreensão do que está em causa nos presentes autos, há que proceder a um breve excurso acerca do imposto sobre o qual incidem as leis em apreço, ou seja, o IRS.
Breve excurso sobre o imposto sobre rendimento das pessoas singulares
10. O IRS caracteriza-se, em primeiro lugar, por ser um imposto directo, em que se tributam os rendimentos das pessoas singulares. Este imposto assenta em factos tributários de formação sucessiva, sendo que o facto tributário sujeito a imposto só está completo no último dia do período de tributação. O facto tributário que dá origem ao imposto é, pois, complexo.
A configuração do elemento temporal do facto tributário é, no IRS, duradoura, pelo que se trata de um imposto periódico. Ou seja, a relação jurídica fonte da obrigação de imposto tem na sua base situações estáveis que se prolongam no tempo.
Nos termos do artigo 22.º, n.º 1, do CIRS, “o rendimento colectável em IRS é o que resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, depois de feitas as deduções e os abatimentos”. Ou seja, trata-se de um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si (embora a retenção na fonte possa, por vezes, obnubilar esta realidade), mas sim o englobamento de todos os rendimentos recebidos num determinado ano. O que significa que só no final do ano de 2010 se pode apurar a taxa do imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere.
10.1. Acresce ainda que as normas relativas à caducidade do direito à liquidação e à prescrição apontam igualmente no sentido do carácter anual do imposto. Assim, o artigo 45.º, n.º 4, da LGT estabelece que nos impostos periódicos o prazo de caducidade se conta a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e o artigo 48.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, determina que as dívidas tributárias prescrevem nos impostos periódicos, no prazo de oito anos, contados a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário. Quer dizer, para efeitos de caducidade do direito à liquidação e de prescrição cada facto gerador de rendimento individualmente considerado não é por si só considerado um facto tributário autónomo.
10.2. Tendo em conta que as normas ora em apreciação foram publicadas já no decurso do período de tributação, importa averiguar se sofrem de inconstitucionalidade, não já por violação do princípio da não retroactividade (autêntica) contido no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, mas antes por violação de outros princípios, designadamente, do princípio da protecção da confiança.
A protecção da confiança e a retroactividade inautêntica
11. Como já mencionámos, o Tribunal Constitucional considerou, designadamente nos acórdãos n.os 128/2009 e 85/2010, que a 'retroactividade inautêntica' não é proibida pelo artigo 103.º, n.º 3, da CRP.
No fundo, o alcance prático desta tese é o de admitir que - nos casos de retroacção limitada ao período fiscal em que a lei entrou em vigor, que seria, como vimos, o caso dos autos - é possível, no que diz respeito aos impostos periódicos, a aprovação de leis no decurso do período de tributação que se destinem a produzir efeitos em relação a todo esse período, ficando, no entanto, tais leis sujeitas ao teste resultante dos princípios do Estado de Direito, como seja o teste da protecção da confiança.
11.1. Se antes da revisão constitucional de 1997, o Tribunal fundamentava o princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal no princípio da segurança e da confiança (cfr., por exemplo, Acórdão n.º 67/91), após 1997, embora não possa deixar de dar relevo à corporização do princípio no texto constitucional, o Tribunal continua a considerar que, nas situações de retroactividade imprópria, se deve ponderar a confiança que os contribuintes depositaram na norma fiscal.
Como se afirmou no Acórdão n.º 172/00, “os fundamentos de proibição da retroactividade respeitam à segurança dos cidadãos. Assim, tal segurança é afectada perante alterações legislativas que, no momento da prática ou ocorrência dos factos que os envolvem, nem poderiam ser previstas nem tinham que o ser. Mas tal segurança também é afectada onde o seja a vinculação do Estado pelo Direito que criou, através de alteração de situações já instituídas ou resolvidas anteriormente.”
11.2. Em jurisprudência recente deste Tribunal, pode ler-se 'ao textualizar a proibição de normas fiscais retroactivas, a Constituição conferiu uma especial corporização ao princípio, corporização essa que se traduz na necessária ausência de ponderações sempre que ocorram casos [de leis tributárias] que sejam retroactivas em sentido próprio ou autêntico. Nesses casos (…) não há lugar a ponderações: a norma retroactiva é, por força do n.º 3 do artigo 103.º, inconstitucional. Mas tal não significa que, por causa disso, se tenha esgotado ou exaurido a «utilidade» do princípio da confiança em matéria tributária. Pode haver outras situações – de retroactividade imprópria, ou até de não retroactividade – que convoquem a questão constitucional que é resolvida pela tutela da confiança.' (cfr. Acórdãos n.ºs 128/2009 e 85/2010).
11.3. Na doutrina não existe consenso quanto à questão do fundamento do princípio da irretroactividade da lei fiscal, podendo, no essencial, distinguir-se três posições:
Para alguns Autores, este princípio funda-se na segurança jurídica e na protecção da confiança (cfr. Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra, 1998 p. 399; Idem, Direito Fiscal, 5ª ed., Coimbra, 2009, p. 146; Américo Fernando Brás Carlos, Impostos – Teoria Geral, 3ª ed., Coimbra, 2010, p. 142). O primeiro Autor citado afirma, expressamente, que “a proibição da retroactividade não pode deduzir-se indirectamente, quer do princípio da legalidade fiscal, quer do princípio da proibição das leis retroactivas restritivas de direitos, liberdades ou garantias” (Casalta Nabais, O Dever Fundamental…, p. 399).
Para outros Autores, a proibição da retroactividade fiscal baseia-se no princípio da legalidade tributária (cfr. Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, Vol. II, Lisboa, 1996, p. 432).
Uma terceira corrente, procurando conciliar as duas posições anteriores defende que “no quadro normativo-constitucional actual [leia-se após a revisão de 1997], a proibição da retroactividade em matéria fiscal deve ser vista não apenas à luz do princípio em presença [leia-se: princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos], mas também nas relações que estabelece com os princípios da legalidade e a igualdade tributária” (neste sentido, Jónatas Machado/Paulo Nogueira da Costa, Curso de Direito Tributário, Coimbra 2009, p. 60).
As normas sub judicio e a protecção da confiança
12. Vejamos, então, se as normas em apreço passam o teste da protecção da confiança.
A jurisprudência do Tribunal nesta matéria é abundante. Para uma síntese, veja-se o Acórdão n.º 128/2009:
“a «mobilização» do princípio da confiança em matéria tributária obriga a um juízo que não prescinde de ponderações: saber se a norma é ou não inconstitucional (por violação da protecção da confiança) obriga a que se tenha em conta, e se pondere, tanto o contexto da administração tributária quanto o contexto do particular tributado.
8.2. No Acórdão n.º 287/90, de 30 de Outubro, (…) o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de «retroactividade autêntica» e o tratamento a conferir aos casos de «retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.”.
Antes de mais, deve notar-se que, para efeitos dos juízos de ponderação acabados de enunciar, não se vislumbram diferenças substanciais entre as alterações do artigo 68.º, n.º 1, do CIRS provenientes da Lei n.º 11/2010, a qual introduziu um novo escalão e as que constam da Lei n.º 12-A/2010 que procedeu ao aumento do valor das taxas de todos os escalões.
12.1. Começando pelo teste relativo à questão de saber se existe afectação de expectativas, em sentido desfavorável, e se essa afectação constitui uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não teriam podido contar, importa averiguar, desde logo, se a Constituição tutela a expectativa dos contribuintes de que não haja alterações dos escalões e das taxas de IRS desde o início do ano fiscal até ao seu final – de 1 de Janeiro até 31 de Dezembro.
Ora, apesar de a introdução do novo escalão de 45% bem como o aumento da taxa do IRS em todos os escalões terem, por certo, como consequência o aumento do montante do imposto a pagar no momento da liquidação e cobrança do mesmo, isso não significa que exista uma expectativa constitucionalmente tutelada de que essas alterações tenham de ser todas efectuadas pelo legislador logo no dia 1 de Janeiro de cada ano.
No caso em apreço, várias foram as razões que levaram o legislador a proceder a essas alterações já no decurso do ano fiscal.
Em primeiro lugar, tendo em conta a conjuntura económico-financeira internacional, incluindo a situação dos mercados internacionais, a avaliação da situação financeira portuguesa por parte das instâncias internacionais, designadamente do FMI e da OCDE, bem como as medidas tomadas em Estados-Membros da União Europeia em idêntica situação, como foram os casos da Grécia e da Espanha, não seria razoável pensar que Portugal ficaria imune a esta tendência.
Em segundo lugar, não é possível afirmar que esta medida fosse algo com que os contribuintes por ela afectados não pudessem razoável e objectivamente esperar, tendo em conta que um dos modos de fazer face à situação económico-financeira do País e, nomeadamente, ao desequilíbrio orçamental, é pela via do aumento da receita fiscal. Além disso, o anúncio reiterado, no debate político e no espaço público, da necessidade de medidas conjuntas de combate ao défice orçamental e aos custos da dívida pública acumulada apontava no mesmo sentido.
Em terceiro lugar, deve notar-se que a produção de efeitos das normas em apreço, desde 1 de Janeiro de 2010, não se afigura intolerável nem insuportável para os contribuintes. Senão vejamos:
Em relação aos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 11/2010, o novo escalão (que é um valor de rendimento a partir do qual se deverá aplicar uma taxa superior) tem também associado a si uma determinada taxa. Essa taxa era de 42%, de acordo com o Orçamento de Estado para 2010 e subiu para 45 %, com a Lei n.º 11/2010. Ora, na lógica da progressividade do IRS, essa taxa apenas se aplica aos rendimentos brutos que excedam os € 150.000,00. Ou seja, supondo que um contribuinte tem € 200.000,00 de rendimento, essa nova taxa não se aplica a todos os seus rendimentos, mas apenas aos € 50.000,00 que excedem os € 150.000,00 do novo escalão.
O carácter excessivo ou não do ónus imposto pelo novo escalão tem de ser aferido em função da proporção dos valores aí implicados. Ora, o aumento de 3% que corresponde ao novo escalão poderia ser excessivo em outros patamares de rendimento mas não o é em valores que excedem os € 150.000,00.
No que diz respeito à Lei n.º 12-A/2010, o aumento de 0,58 % das taxas gerais deste imposto aplicáveis até ao 3.º escalão de rendimentos e em 0,88 % a partir do 4.º escalão, tem igualmente em conta a progressividade do imposto. Além disso, o legislador manifesta alguma moderação na alteração das taxas, uma vez que, não obstante ter como certo que o aumento deveria ser de 1 % e de 1,5 %, respectivamente, acabou por proceder a um menor aumento, devido ao ajustamento das taxas em função dos meses do ano. Ora, segundo o próprio legislador, esse ajustamento foi introduzido para obviar ao impacto da eventual retroactividade do imposto. Senão vejamos:
Na exposição de motivos da Lei n.º 12-A/2010 pode ler-se o seguinte:
“No que respeita à tributação adicional em sede de IRS, ela é concretizada através da fixação de uma nova tabela geral de taxas, que incidem formalmente sobre o todo dos rendimentos de 2010 e que, portanto não afectam situações de tributação pretéritas consolidadas jurídico-fiscalmente. Além disso, de modo a garantir que os contribuintes apenas sofrem acréscimo correspondente a sete meses do ano, as taxas adicionais de 1% e de 1,5% são objecto de uma ponderação, aplicando-se em 2010 apenas em 7/12 do seu valor. Só no contexto do Orçamento do Estado para 2011 se introduzirão os ajustamentos necessários à tabela de modo a reflectir a aplicação plena das novas taxas no próximo ano.”
Por outro lado, o aumento da percentagem da taxa em 0,58 % e em 0,88 % não é de tal forma relevante que possa vir a colidir, de modo intolerável e opressivo, com decisões de vida que os contribuintes, eventualmente, tenham tomado.
12.2. Por último, refira-se que o grau de tolerância da medida legislativa tomada face ao princípio da confiança é directamente correspondente ao grau de relevância do interesse público constitucionalmente tutelado.
Segundo o legislador, existem razões imperiosas de interesse público que justificam quer uma nova taxa de IRS no valor de 45% para sujeitos passivos ou agregados familiares que obtenham um valor anual de rendimentos superiores a € 150000,00, a qual veio a ser criada pela Lei n.º 11/2010, quer uma tributação adicional em sede de IRS, mediante aumento de 0,58 % das taxas gerais deste imposto aplicáveis até ao 3.º escalão de rendimentos e em 0,88 % a partir do 4.º escalão, a qual consta da Lei n.º 12-A/2010.
Ora, não tem este Tribunal razões que lhe permitam pôr em causa que a prossecução do interesse público, em face da situação económico-financeira do País, exige a adopção de medidas deste tipo. Aliás, na exposição de motivos da Proposta de Lei 26/XI (1ª) que deu lugar à Lei n.º 12-A/2010 afirma-se, peremptoriamente, que “no quadro de uma política comum adoptada na zona euro com vista a devolver a confiança aos mercados financeiros e aos seus agentes e fazer face ao ataque especulativo à moeda única (...) torna-se necessário propor à Assembleia da República a aprovação de um conjunto de medidas motivadas pelo interesse geral, numa conjuntura económico-financeira excepcional de instabilidade e de ataques especulativos nos mercados financeiros que afecta vários Estados da União Europeia, à qual Portugal não é alheio.
Apesar de o mesmo não suceder na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 15/XI (1ª), trata-se de um facto público e notório, pelo que as normas dos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 11/2010 estão igualmente justificadas por razões de interesse público constitucionalmente tutelado.
O legislador considerou que, tanto a Lei n.º 11/2010, que cria um novo escalão de imposto, com um carácter transitório para valer nos anos de 2010 a 2013 como a Lei n.º 12-A/2010 que aumenta o valor das taxas de todos os escalões, se inserem num conjunto mais vasto de medidas de combate ao défice orçamental e que só a sua aplicação ao ano presente permite obter, com a necessária celeridade, a receita fiscal que o legislador pretende com esta específica medida.
Note-se que, confrontado com o carácter meramente simbólico da medida relativa à criação do novo escalão, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais defendeu no Parlamento esse mesmo carácter simbólico, mas acrescentando que 'esse simbolismo (…) é algo mais do que poesia; é o simbolismo por detrás da Constituição da República Portuguesa e de todo o Estado social português'. Afirmou então: 'Não julgamos que se trate apenas de uma medida simbólica; trata-se de uma medida com efeitos, também significativos, sobre a receita, e a receita que esperamos arrecadar com a taxa é, efectivamente de 30 milhões' (DAR, I Série, n.º 55/XI, de 8 de Maio de 2010, p. 12 e 13).
Ambas as leis têm, portanto, como finalidade, a prossecução de um legítimo e premente interesse de obtenção de receita fiscal para fins de equilíbrio das contas públicas.
E nem se diga que não foram equacionadas outras soluções alternativas, supostamente, menos gravosas.
Em relação à Lei nº 12-A/2010, a solução pro rata temporis foi objecto de discussão durante os trabalhos preparatórios (DAR I Série - n.º 64, de 4 de Junho de 2010, p. 55). Com efeito, a proposta de aditamento à Proposta de Lei nº 26/XI (1ª) consistiria na divisão do ano em dois períodos, aplicando-se um acréscimo de taxas de 1% ou 1,5%, consoante os casos, apenas aos rendimentos resultantes de factos tributários ocorridos no período posterior à entrada em vigor da lei. Ou seja, a solução seria fazer recair a carga fiscal adicional apenas sobre factos tributários ocorridos na parte do ano fiscal de 2010 ainda não decorrida.
Esta proposta seria, todavia, considerada pelo legislador 'impraticável e impensável' (cfr. DAR I Série - n.º 64, de 4 de Junho de 2010, p. 55), pelo que foi rejeitada, em sede de votação na especialidade, com base fundamentalmente em dois argumentos. O primeiro foi o de que apesar de a lei pretender aplicar-se a factos passados, esta 'não [seria] uma verdadeira retroactividade, porque o rendimento colectável é um rendimento anual'. O segundo argumento foi no sentido de que a cláusula de não retroactividade levantaria um problema relativamente aos contribuintes da categoria B que tinham o rendimento e os custos concentrados em um dos semestres (DAR I Série - n.º 66, de 11 de Junho de 2010, p. 39).
Quer dizer, segundo o legislador, uma medida deste tipo até poderia ter como efeito a obtenção da receita fiscal que se pretendia, mas o carácter do imposto em causa tornava-a inviável.
12.3. Em conclusão, do exposto resulta que as Leis n.ºs 11/2010 e 12-A/2010 prosseguem um fim constitucionalmente legítimo, isto é, a obtenção de receita fiscal para fins de equilíbrio das contas públicas, têm carácter urgente e premente e no contexto de anúncio das medidas conjuntas de combate ao défice e à dívida pública acumulada, não são susceptíveis de afectar o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito, pelo que não é possível formular um juízo de inconstitucionalidade sobre a normas dos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 11/2010, de 15 de Junho, nem sobre as normas dos artigos 1.º e 20.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, na medida em que estes preceitos se destinam a produzir efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2010.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 68.º, n.º 1, do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 11/2010 e, posteriormente, pelo artigo 1.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho.
Lisboa, 27 de Outubro de 2010.- Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão – Catarina Sarmento e Castro – Carlos Fernandes Cadilha – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral (vencida, nos termos da declaração de voto junta) – José Borges Soeiro (vencido, de harmonia com a declaração de voto, que junto) – Carlos Pamplona de Oliveira. Vencido conf. declaração. – João Cura Mariano (vencido pelas razões constantes da declaração que junto) – Rui Manuel Moura Ramos (Vencido, parcialmente, pelas razões constantes da declaração de voto junta).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida, pelas razões seguintes:
1. A argumentação do Acórdão estrutura-se em torno de três premissas iniciais. Em primeiro lugar, sustenta-se que a Constituição, no nº 3 do artigo 103º, só proíbe a retroactividade autêntica; em segundo lugar, entende-se que as medidas legislativas em juízo, ao criar mais um escalão de IRS e ao aumentar todas as taxas do imposto, não são autenticamente retroactivas; para além disso, conclui-se ainda que tais medidas não lesam os princípios do Estado de direito, “como seja a protecção da confiança”.
A fundamentar a primeira premissa apresenta o Acórdão, basicamente, duas razões. A primeira é a dos trabalhos preparatórios da IV Revisão Constitucional, de 1997, que introduziu a actual redacção do nº 3 do artigo 103º da CRP.
Não entrarei agora na discussão, vasta e impossível de travar neste lugar, sobre os métodos de interpretação constitucional. Particularmente, sobre a questão de saber se, e em que medida, pode tal interpretação repousar (a propósito de qualquer questão; mas, sobretudo, a propósito de uma questão como esta, que se prende com a determinação do conteúdo e alcance da proibição da retroactividade fiscal) no argumento dos trabalhos preparatórios, de modo a conferir-lhe a autoridade, que aqui se lhe quis atribuir, de argumento último e definitivo. Limito-me a salientar que os termos em que decorreu a discussão parlamentar estão longe de permitir a conclusão, que o Acórdão considera “cristalina”, segundo a qual o legislador de revisão só terá pretendido proibir a retroactividade própria ou autêntica, não integrando por isso o preceito (o nº 3 do artigo 103º) a chamada retroactividade inautêntica ou retrospectividade. Quando muito, o que desses trabalhos se retira é a convicção segura de que o mesmo legislador, sabendo que o fenómeno da retroactividade se poderia revestir de gradações diferentes, teve consciência das dificuldades de interpretação que a redacção do novo texto por certo traria. Assim sendo, fica por compreender – ainda na lógica estrita dos cânones clássicos de interpretação, que é aquela que o Acórdão adopta – por que motivo não explicitou ele, na letra do nº 3 do artigo 103º, que a retroactividade que aí proibia era, apenas, a “própria” ou “autêntica”. Se era esta a sua inequívoca vontade, resultante dos trabalhos preparatórios, o silêncio do texto quanto a ela, não sendo facilmente compreensível, não se oferece também como elemento tranquilizador.
2. Em segundo lugar, e para provar que a proibição constitucional da retroactividade tem apenas o alcance restrito que se afirma ter, o Acórdão invoca jurisprudência anterior do Tribunal (Acórdão nº 128/09).
Entendo, contudo, que se extraiu desta jurisprudência algo bem diverso do que ela quis dizer.
Na interpretação que dele faço, não pretendeu o Tribunal, no Acórdão nº 128/09, romper com o lastro anterior da sua jurisprudência. Nomeadamente, não pretendeu sustentar que, após a revisão de 1997, o nº 3 do artigo 103.º pudesse viver isoladamente, sendo, em si mesmo, portador de um sentido que, além de fixo e invariável, se mostrasse apreensível à margem das ponderações que os princípios da proporcionalidade e da protecção da confiança (estruturantes do Estado de direito) oferecem ao aplicador do Direito. O que se pretendeu – em contexto, aliás, de controlo concreto – foi apenas retirar consequências da consagração, em texto, da proibição da retroactividade, lendo nela um sinal forte de censura quanto às situações mais gravosas de efeitos retroactivos ditos “autênticos”.
De resto, a revisão de 97 não pode ter tido como efeito o impossível. E impossível se mostra destacar o princípio constitucional da retroactividade da lei fiscal dos seus antecessores lógicos – o princípio da proporcionalidade e da protecção da confiança – de modo tal que o campo da retroactividade proibida seja mecanicamente determinado sem a intervenção daqueles princípios.
Ao afirmar, logo de início e à margem de qualquer leitura sistémica, que o nº 3 do artigo 103.º da CRP só proíbe a retroactividade autêntica, e ao ponderar depois se a “retroactividade” existente no caso (e que já se concluiu não ser proibida nos termos do artigo 103.º) lesa ou não os princípios do Estado de direito, o Acórdão opera, em meu entender, uma cisão lógica e metodológica entre o princípio do nº 3 do artigo 103.º e os princípios do artigo 2.º que a jurisprudência anterior do Tribunal não efectuou, e que nenhuma regra de interpretação constitucional legitima.
3. Assim, e retirando-se do texto revisto em 97 um sinal forte de censura, pelo menos, da retroactividade autêntica, o que, a meu ver, a questão colocada exigiria ao Tribunal seria a ponderação, à luz dos princípios que estruturam o Estado de direito e que dão corpo ao nº 3 do artigo 103.º da CRP, entre o “tipo” de retroactividade existente nas medidas legislativas sob juízo e o fim relevantíssimo de interesse público que levou o legislador a adoptá-las.
Neste contexto, entendi – de acordo com memorando inicialmente apresentado, e que não obteve vencimento – que o aumento das taxas de IRS, operado pelas normas pertinentes da Lei nº 12-A/2010, de 30 de Junho, se mostrava excessivo porque não necessário. A “compensação” de 7/12, afirmada pelo Executivo e invocada pelo Acórdão (a par das dificuldades de realização prática dos meios não retroactivos) para justificar a inexistência de lesão do princípio da protecção da confiança, não é meu ver suficiente para anular o carácter excessivo da medida legislativa. Sendo o excesso aferido, não em função da escolha “aumento/não aumento das taxas”, mas em função da escolha aumento retroactivo/aumento não retroactivo, entendi que ficara por provar que ao legislador ordinário só restava, como único meio possível de consecução dos fins relevantes de interesse público, a via do aumento retroactivo, constitucionalmente censurada.
Por isso, votei a inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 68º do Código de IRS, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei nº 12-A/2010, de 30 de Junho, quando conjugado com o nº 1 do artigo 20º da mesma Lei.
4. Dos pressupostos de que parti decorre o juízo de não inconstitucionalidade relativo à criação, com efeitos retroactivos, de mais um escalão de IRS, operada pelas normas pertinentes da Lei nº 11/2010, de 15 de Junho. E isto, por dois motivos fundamentais.
Em primeiro lugar, pela natureza inevitavelmente anual do escalão. A anualidade (estrutural e não prática) da medida tornaria impossível ao legislador a escolha do meio mais benigno ou menos oneroso para as pessoas, que seria – recorde-se – não a de deixar de criar mais um escalão de imposto, mas a de deixar de lhe atribuir efeitos de retroacção ao início do ano.
Acresce que a medida de criação de mais um escalão se harmoniza com o princípio da progressividade do imposto sobre o rendimento, princípio esse que estrutura o sistema constitucional de justiça fiscal.
Assim, sendo bem diversos, num caso e noutro (ou seja: no caso de criação de mais um escalão de IRS e no caso de aumento generalizado de todas as suas taxas) os universos das pessoas afectadas e a intensidade da afectação, diverso terá que ser, no meu entendimento, o juízo sobre cada uma das medidas legislativas.- Maria Lúcia Amaral.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti do aresto que fez vencimento pela seguinte ordem de razões:
1. Após a revisão constitucional de 1997 e a consequente introdução do artigo 103.º, n.º 3 – irretroactividade da lei fiscal –, a jurisprudência do Tribunal Constitucional vem entendendo que o princípio da não retroactividade assume uma dimensão categórica.
Diz-se no Acórdão n.º 128/2009: “Ao textualizar a proibição de normas fiscais retroactivas, a Constituição conferiu uma especial corporização ao princípio, corporização essa, que se traduz na necessária ausência de ponderações sempre que ocorram casos (de leis tributárias) que sejam retroactivas em sentido próprio ou autêntico. Nesses casos (…) não há lugar a ponderações: a norma retroactiva é, por força do nº 3 do artigo 103.º, inconstitucional”.
Isto significa, ainda segundo o mesmo acórdão, que o princípio da não retroactividade deixa de se poder consumir totalmente em princípios de maior abrangência como a protecção da confiança e a proporcionalidade.
Ele ganha “autonomia normativa” e aplica-se, de forma ampla, a todas as normas fiscais que penalizem os contribuintes, sejam elas relativas a impostos ordinários ou extraordinários, periódicos ou sobre factos instantâneos, refiram-se eles à definição do facto tributário ou à determinação do montante do imposto através de taxas, escalões ou deduções. As normas fiscais que agravem a situação dos contribuintes não se podem aplicar a factos passados.
No dizer de Gomes Canotilho (“Direito Constitucional…”, 7ª ed., pag. 261): “Retroactividade consiste basicamente numa ficção: (…) decretar a validade e vigência de uma norma a partir de um marco temporal (data) anterior à data da sua entrada em vigor. (…) Fala-se em retroactividade em sentido restrito (…) Haverá uma retroactividade autêntica quando uma lei fiscal publicada em Dezembro retroage os seus efeitos a 1 de Janeiro do mesmo ano.”
Também Paz Ferreira defende a tese de merecer a censura constitucional fazer retroagir as normas fiscais ao início do ano em que são aprovadas.
Refere: “as duas posições possíveis são a de aceitar a aplicação a partir daí, procedendo-se à divisão de rendimentos ou a de afirmar que a alteração só se aplica no ano seguinte, como defendem Diogo e Mónica Leite Campos e Bacelar Gouveia, por exemplo, posição com que se tende a simpatizar porque há de facto uma integração na constituição financeira que leva a que se deva considerar que existe um princípio de anualidade que é igualmente aplicável aos impostos” (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo II, 2006, pag. 223).
Propendemos para defender a primeira tese, no que se refere à problemática que envolve a Lei nº 12/A/2010 – divisão de rendimentos – (“pro rata temporis”), porquanto mesmo a considerar o rendimento anual como um todo, os factos tributários que dão origem são susceptíveis de autonomização.
Na lição de Alberto Xavier (in “Manual de Direito Fiscal”, Lisboa, 1974, pag. 201) “o rendimento é um facto complexo de formação sucessiva. Complexo, porque consiste num conjunto de factos, circunstâncias ou eventos em que se decompõe; de formação sucessiva, porque se vai desenvolvendo ao longo de uma fracção de tempo que é o período do imposto. A unificação do facto pelo elemento temporal – se é relevante para certos efeitos – não tem a força bastante para destruir o carácter complexo e continuativo do facto e a sua consequente possibilidade de fragmentação legal”.
Explicita bem esta afirmação a situação dos factos tributários relativos ao IRS serem autonomizáveis a circunstância da “retenção na fonte” incidir sobre cada facto gerador de rendimento individualmente considerado, bem como os aludidos rendimentos terem “origens diversas”.
Poderia, assim, o legislador, na linha que se vem defendendo, ter operado, nesta sede, “pro rata tempore”, isto é proceder à divisão proporcional do ano de harmonia com a ocorrência do respectivo facto tributário, conforme também é propugnado por Nuno Sá Gomes, (in “Manual de Direito Fiscal”, Vol. II, 1997, Pag. 417 e segs).
Desta forma, e, contrariamente ao sustentado no acórdão que fez vencimento, considero que a interpretação dada à Lei nº 12 – A/2010, entrada em vigor a 1 de Julho, no sentido de que as novas taxas agravadas de IRS por ela instituídas são aplicáveis aos factos tributários ocorridos antes do início da sua vigência é inconstitucional por violação do princípio da irretroactividade fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição.
2. Dissenti, também, do juízo formulado, no que se refere à Lei n.º 11/2010, que aprovou um novo escalão de IRS, para rendimentos superiores a €150.000. Conforme já se referiu “supra”, existe uma integração na constituição financeira que leva a que se deva considerar que existe um princípio de anualidade que é igualmente aplicável aos impostos, com maior grau de incidência nos escalões. Corresponde à exigência constitucional da progressividade dos impostos sobre o rendimento (artigo 104.º, n.º 1, da Constituição) e incidem, no actual quadro fiscal, sobre o rendimento anual dos agregados familiares.
Na verdade, e, como já foi assinalado, enquanto as taxas podem ser diferentes em diferentes períodos do ano, já que os factos tributários são autonomizáveis, os escalões de imposto são, ao invés, por força da lei referidos a todo o ano.
Na lição de Guilherme de Oliveira Martins e alt. (in “Lei de Enquadramento Orçamental Anotada e Comentada”, 2007, Almedina, pag. 22), a anualidade dos impostos consubstancia uma regra com consagração financeira formal, não só porque a própria ideia de periodicidade resultava da concepção do orçamento, tal como surgia na Constituição (artigo 108º, na redacção da revisão de 1982), mas também porque se apontava implicitamente para a anualidade no artigo 93.º, alínea c), também na redacção da revisão de 1982.
De qualquer forma, a regra da anualidade regressou ao texto constitucional, por força da redacção do artigo 106.º, nº 1, dada pela revisão constitucional de 1997.
Assim “desde a restauração desta regra orçamental básica, fica dissipada qualquer dúvida que pudesse subsistir quanto à inconstitucionalidade directa da violação da anualidade orçamental”.
Desta forma, o novo escalão de 45% só poderia iniciar a sua vigência no início do ano subsequente ao da sua aprovação, isto é, em 1 de Janeiro de 2011.
Por conseguinte, e, contrariamente ao sustentado no acórdão que fez vencimento, considero que a interpretação dada ao artigo 2.º da Lei n.º 11/2010, entrada em vigor a 16 de Junho, com o propósito de criar um escalão adicional de tributação, sujeitando os rendimentos anuais superiores a €150.000 à taxa de imposto de 45% ser aplicável aos factos tributários ocorridos antes do início do ano subsequente à sua vigência é inconstitucional por violação do princípio da irretroactividade fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição.- José Borges Soeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido essencialmente pelos motivos enunciados pela Senhora Conselheira Maria Lúcia Amaral nos pontos 1., 2., e 3. na sua Declaração de Voto, para os quais, com a devida vénia, remeto. Tais razões conduzem-me, no entanto, a concluir pela inconstitucionalidade das normas submetidas ao julgamento do Tribunal, sem qualquer limitação. - Carlos Pamplona de Oliveira.
DECLARAÇÃO DE VOTO
À noção de Estado é inerente o poder de lançar impostos, como manifestação de soberania, visando o financiamento das despesas da sua estrutura e o desenvolvimento das suas políticas sociais.
A obrigação fiscal nasce por isso por simples iniciativa dos órgãos do Estado e tem repercussões ablativas no património dos cidadãos.
Perante um longo passado de abusos e arbitrariedades no lançamento e cobrança de impostos, a introdução do princípio da legalidade nesta matéria veio conferir-lhe um estatuto de cidadania no mundo do Direito.
Para que o Estado possa cobrar um imposto ele terá que ser previamente aprovado pelos representantes do povo e terá que estar perfeitamente determinado em lei geral e abstracta. Só assim se evitará que esse poder possa ser exercido de forma abusiva e arbitrária, indigna de um verdadeiro Estado de direito.
E nos casos em que o imposto aprovado pelo parlamento incida sobre rendimentos obtidos pelo contribuinte, o mesmo princípio da legalidade não poderá deixar de exigir que ele só possa atingir os rendimentos que o contribuinte venha a auferir após a entrada em vigor da lei.
Na verdade, caso se permitisse que a lei tributária dispusesse para o passado, com efeitos retroactivos, prevendo a tributação de actos praticados quando ela ainda não existia, estaria a permitir-se que o Estado impusesse determinadas consequências a uma realidade, posteriormente a ela se ter verificado, sem que os seus actores tivessem podido adequar a sua actuação de acordo com as novas regras.
Esta exigência revela as preocupações do princípio da protecção da confiança dos cidadãos, também ele princípio estruturante do Estado de direito democrático, reflectidas na vertente do princípio da legalidade, segundo a qual, a lei, numa atitude de lealdade com os seus destinatários, só deve reger para o futuro.
Em matéria fiscal, tal como em matéria penal, apesar das conhecidas diferenças de valoração dos interesses perseguidos, só o estrito e absoluto respeito por estas ideias garantirá uma relação íntegra e leal entre o cidadão e o Estado, que permitirá a este a utilização da designação de Estado de direito democrático.
É nesse sentido que deve ser lida a introdução pelo legislador constituinte, na Revisão de 1997, da regra da proibição da criação de impostos com natureza retroactiva (nullum tributum sine lege praevia), no artigo 103.º, n.º 3.
Não se visou explicitar uma simples refracção do princípio geral da protecção da confiança dos cidadãos, inerente a toda a actividade do Estado de direito democrático, mas sim expressar, numa matéria nevrálgica, uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis criadoras ou agravadoras de impostos, prevenindo, assim, a existência de um perigo abstracto de grave violação daquela confiança.
Não há, pois, que efectuar, em qualquer caso, um juízo de proporcionalidade relativamente a qualquer medida legislativa com eficácia retroactiva, para verificar se a mesma afecta desrazoavelmente a confiança dos cidadãos, estando essa validade temporal absolutamente proibida pela regra inserida no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
É certo que os trabalhos preparatórios desta reforma do texto constitucional evidenciam que alguns dos parlamentares que intervieram naquele processo de Revisão Constitucional, numa atitude de condescendência com situações de atraso na aprovação do orçamento anual, não pretenderam abranger com esta proibição as situações de alteração das taxas de imposto relativas ao ano em curso, no que diz respeito aos impostos sobre o rendimento, como é caso do IRS, mesmo quando essa alteração fosse desfavorável ao contribuinte. Contudo essa excepção não ficou expressa no texto constitucional, pelo que o intérprete goza de ampla liberdade na definição do âmbito da proibição constitucional da retroactividade da lei fiscal.
Ora, face às razões e princípios que cimentam esta regra, não é possível estabelecer qualquer distinção entre a lei que cria um novo imposto e a lei que altera a taxa de um imposto já existente em desfavor do contribuinte. Em ambas as situações se estabelecem consequências danosas para o património deste para actos ocorridos em data anterior à previsão por lei dessas consequências, em manifesto desrespeito pela lealdade que deve, necessariamente, caracterizar as relações entre um Estado de direito democrático e os seus cidadãos.
Do mesmo modo não se justifica, como faz o presente acórdão, exportar para este domínio a distinção entre retroactividade autêntica e inautêntica, uma vez que o que releva, face aos princípios constitucionais enunciados, não é o momento em que se produzem os efeitos de um imposto, mas sim o momento em que ocorre o acto que determina o pagamento desse imposto. É esse acto que vai dar origem à constituição de uma obrigação tributária, pelo que é nessa altura, em obediência ao princípio da legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da protecção da confiança, que se exige, como medida preventiva, que já se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento desse imposto, de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento.
As normas cuja fiscalização sucessiva foi peticionada introduzem novas taxas e um novo escalão no Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares, agravando a situação dos contribuintes abrangidos, pelo que lhes estava vedada qualquer eficácia retroactiva.
Contudo, as mesmas entraram em vigor apenas em 16 Junho e 1 de Julho de 2010 para se aplicarem aos rendimentos obtidos durante todo o ano de 2010.
O rendimento colectável em IRS é o que resulta do englobamento dos rendimentos das várias categorias auferidos em cada ano, depois de feitas as deduções e os abatimentos previstos na lei. Ou seja, trata-se de um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos recebidos num determinado ano, deduzidos dos montantes previstos na lei.
Estamos, pois, perante o agravamento da tributação de um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, por acto legislativo que começou a vigorar após o início da verificação do facto tributário complexo duradouro, mas antes do seu termo.
Tendo-se já iniciado a prática do facto que vai dar origem à obrigação tributária posteriormente agravada por lei nova, as razões que presidiram à consagração da regra de proibição da retroactividade neste domínio estão integralmente presentes, uma vez que também aqui importa prevenir o risco abstracto de que a lei publicada medio temporis provoque agravos financeiros desrazoáveis, pela impossibilidade financeira em que se encontravam os cidadãos afectados, vinculados a tais factos já pendentes, de prever e prover quanto às suas consequências tributárias, determinadas por lei futura.
Também, relativamente a estes impostos, não pode uma lei, sob pena de violação da proibição imposta no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, agravar o seu montante, relativamente ao período fiscal em curso aquando da sua entrada em vigor.
Assim, tendo as normas cuja fiscalização de constitucionalidade foi pedida pelo Presidente da República entrado em vigor em 16 de Junho e 1 de Julho de 2010, ao determinarem a sua aplicação ao IRS relativo ao período fiscal do próprio ano de 2010, violaram a referida proibição constitucional, pelo que me pronunciei pela declaração da sua inconstitucionalidade.- João Cura Mariano.
DECLARAÇÃO de voto
1. Votei parcialmente vencido a presente decisão. Contrariarmente ao que foi decidido pelo Tribunal, pronunciei-me pela declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 68º, nº 1, do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei nº 12-A/2010, de 30 de Junho, quando conjugado com o disposto no nº 1 do artigo 20º da mesma lei, na medida em que pretende aplicar-se a factos tributários ocorridos anteriormente ao início da sua vigência, por violação do princípio da não retroactividade das leis fiscais consagrado no artigo 103º, nº 3, da Constituição. Cumpre agora explicitar as razões desta divergência, que começam no discurso do acórdão quanto à retroactividade fiscal proibida na Constituição e se prolongam no julgamento do sentido normativo que resulta da conjugação daqueles preceitos legais.
2. No que respeita ao primeiro aspecto citado, a leitura que faço do sentido e alcance da regra constitucional da proibição da retroactividade das leis fiscais difere de facto da que resulta do acórdão. Tenho para mim que o princípio da irretroactividade fiscal, expressamente consagrado no artigo 103º, nº 3, da Constituição com a Revisão Constitucional de 1997, já valia objectivamente antes dessa data, como resulta da jurisprudência constitucional, que ancorava então aquela proibição no princípio da protecção da confiança e na ideia de Estado de Direito ínsita no artigo 2º da Constituição. Entendo no entanto que tal consagração expressa, ao invés de constituir, como parece decorrer do discurso argumentativo do acórdão, uma via paralela de apreciação das normas fiscais retroactivas, não pode deixar de se repercutir na força, alcance e vigor do princípio, tal como ele é reconhecido no texto constitucional. Aquela consagração, ao invés de limitar o reconhecimento do princípio, como até agora acontecia, a uma decorrência de parâmetros mais fluidos como a segurança, a protecção da confiança e a ideia de Estado de Direito, vem afinal confirmar a autonomia normativa do princípio, que se liga a exigências mais precisas de legalidade, isto é, ao princípio da legalidade tributária (assim Jónatas Machado/Paulo Nogueira da Costa, Curso de Direito Tributário, Coimbra, 2009, p. 60). Neste sentido, o legislador fica obrigado a não aprovar leis fiscais retroactivas.
A afirmação de que o princípio da não retroactividade das leis fiscais ganha autonomia normativa, deixando por isso de se poder consumir em princípios de maior abrangência como a protecção da confiança e a proporcionalidade, não exclui que ele não conheça excepções, mas supõe, quando a justificação das normas que o lesem se pretenda fazer com base na necessidade urgente de obtenção de uma maior receita fiscal, que se demonstre que não havia meios alternativos não retroactivos de obtenção daquela receita.
É esta a leitura que cremos resultar da expressa formulação de uma regra proibitiva da retroactividade fiscal, que expressamente textualiza o princípio da irretroactividade que até 1997 a jurisprudência deste Tribunal fazia decorrer do princípio da protecção da confiança ínsito na ideia de Estado de Direito consagrada no artigo 2º da Constituição.
Independentemente do cuidado que deve merecer, em termos de hermenêntica constitucional, a mobilização do elemento histórico da interpretação jurídica, em particular dos trabalhos preparatórios, não cremos que a discussão parlamentar que precedeu a aprovação da modificação do texto constitucional permita concluir pela existência de uma vontade do legislador histórico que afaste o sentido que acabamos de expressar.
3. A alteração ao nº 1 do artigo 68º do CIRS decorrente da Lei nº 12-A/2010 pretende abranger factos tributários ocorridos antes da sua entrada em vigor (pois que as taxas aí previstas se aplicarão ao rendimento fiscal com expressa inclusão do que foi gerado na vigência de distintas taxas de imposto). É certo que elas não pretendem agir sobre rendimentos gerados em anos anteriores, tendo pois a retroactividade aí consagrada um carácter limitado no tempo, na medida em que a nova lei se limita a retroagir ao início do ano fiscal em que as alterações são aprovadas. Esta circunstância permite falar de uma retroactividade imprópria ou inautêntica, na medida em que a situação dos contribuintes se não encontra ainda perfeitamente consolidada, o que possibilita mitigar a dimensão categórica do princípio da irretroactividade, admitindo, em situação de necessidade, a aprovação de leis fiscais retroactivas, com sujeição expressa das leis em causa ao controlo dos princípios da proporcionalidade e da protecção da confiança (assim, na Alemanha, o Bonner Kommentar zum Grundgesetz, Bd. 5. 142. Aktualiz, Heidelberg, 2009, p. 741).
A admissibilidade de uma retroactividade inautêntica, isto é, da possibilidade de aprovação de leis retroactivas agravadoras da carga fiscal relativa a impostos periódicos (como o IRS) que não retroajam para além do início de ano fiscal em que foram aprovadas (como ocorre no caso vertente) supõe assim que se faça o teste resultante dos princípios do Estado de Direito como o da confiança e da proporcionalidade, tendo em conta a dimensão categórica que resulta da expressa consagração da irretroactividade fiscal agravadora.
A irretroactividade inautêntica ou imprópria será assim possível se as medidas legislativas que a implicam tiverem por finalidade um legítimo e premente interesse de obtenção de receita fiscal para fins de equilíbrio das contas públicas, tiverem carácter necessário, por inexistirem alternativas não retroactivas viáveis, dentro do mesmo tipo de imposto, para obtenção da mesma receita fiscal, e não puserem em causa de forma excessiva a posição jurídica dos contribuintes impondo-lhes ónus quantitativamente excessivos ou que lesem de forma intolerável as suas legítimas expectativas.
4. Se se não contesta que as providências legislativas em questão possam prosseguir um legítimo e premente interesse de obtenção da receita fiscal para fins de combate ao défice orçamental e de equilíbrio das contas públicas, já não cremos porém que a medida aprovada pela Lei nº 12-A/2010 passe o teste da necessidade, resultante da inexistência de medidas não retroactivas viáveis de idêntica natureza.
Na verdade, a norma contida nos artigos 1º e 20º, nº 1 da Lei nº 12-A/2010, que só entrou em vigor 1 de Julho, agravou as taxas de IRS para todo o ano de 2010, assumindo pois tal agravamento natureza retroactiva. A receita fiscal assim obtida (e resultante de um aumento de 0,58 e 0,88 nas taxas de imposto aplicáveis aos diversos escalões do IRS) poderia no entanto ser obtida de forma não retroactiva, com a elevação das respectivas taxas em 1% e 1,5% apenas a partir da entrada em vigor da lei, e isto porque, como decorre também do acórdão, o referido aumento de 0,58 e 0,88 nas taxas aprovadas mais não pretende ser do que uma fracção de um aumento de taxas de 1% e 1,5% dispersas por todo o ano, incluindo pois os rendimentos recebidos antes da entrada em vigor da Lei.
A adopção de tal medida não retroactiva suporia a divisão do ano fiscal em dois períodos aplicando-se as novas taxas apenas no período subsequente à entrada em vigor da nova lei. Tal permitiria aplicar as novas taxas de forma não retroactiva, isto é, apenas aos rendimentos recebidos após a sua entrada em vigor. Sendo o rendimento um facto complexo de formação sucessiva, a sua modificação pelo elemento temporal correspondente ao período de imposto não tem a força bastante para destruir o carácter complexo e continuativo do facto e a sua consequente possibilidade de fragmentação real. A natureza do rendimento como facto continuativo legitima a sua divisão pro rata temporis, entendendo como factos verificados ao abrigo da lei antiga os rendimentos gerados desde o início do período de imposto até à data de entrada em vigor da nova lei; e, simultaneamente, como factos verificados ao abrigo da lei nova os rendimentos gerados a partir da sua entrada em vigor (Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, Lisboa, 1974, p. 201).
Esta solução fiscal é aliás objecto de expressa consagração legal no nosso ordenamento jurídico, a propósito da aplicação no tempo da lei fiscal, ao menos a partir de 1998, precisamente no nº 2 do artigo 12º da Lei Geral Tributária (Lei nº 14/98) que, ao dispor que “se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”, parece consagrar a aludida posição de Alberto Xavier (expressamente neste sentido veja-se a Lei Geral Tributária comentada e anotada, 3ª edição, Lisboa 2003, Vislis Editores, de Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a ps. 82-84). A expressa consagração legal deste critério aplicativo não permite assim que as suas consequências sejam dadas por impraticáveis e impensáveis, contrariamente ao que faz o acórdão, a partir de afirmações produzidas no debate parlamentar que precedeu a aprovação das medidas a que nos reportamos.
Assim, existindo alternativas não retroactivas à norma sob sindicância (que, repete-se, prescreve a aplicação das novas taxas agravadas de IRS instituídas pela Lei nº 12-A/2010, entrada em vigor a 1 de Julho, aos factos tributários ocorridos antes do início da sua vigência) tal norma é para nós inconstitucional por violação do princípio da irretroactividade fiscal consagrado no artigo 103º, nº 3 da Constituição.
5. O mesmo se não dirá, e aqui o nosso juízo coincide com o do acórdão, quanto à norma resultante dos artigos 1º e 2º da Lei n.º 11/2010, que criaram um novo escalão de imposto, com um carácter transitório, para valer nos anos de 2010 a 2013.
A Lei n.º 11/2010 aprovou um novo escalão de IRS para rendimentos superiores a 150.000 euros, ao qual se aplica a taxa de 45% e que pretende vigorar para todos os rendimentos obtidos desde o início do ano de 2010.
Na doutrina, Paz Ferreira, Bacelar Gouveia e Diogo e Mónica Leite de Campos defendem que, para as leis fiscais aprovadas a meio do ano, se deverá estabelecer uma dilação temporal in futurum, o que significa que o novo escalão só poderia valer para os anos seguintes de 2011 a 2013 (veja-se, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, org., Tomo II, Coimbra, 2006, p. 223).
Esta solução é congruente com o carácter anual dos escalões, que correspondem à exigência constitucional de progressividade dos impostos sobre o rendimento (artigo 104.º, n.º 1, da Constituição) e incidem, no actual quadro fiscal, sobre o rendimento anual dos agregados familiares. Enquanto as taxas podem ser diferentes em diferentes períodos do ano (pois como se verificou os factos tributários são autonomizáveis), os escalões de imposto, pelo contrário, são, por força da lei, necessariamente referidos a todo o ano. Referem-se necessariamente ao rendimento globalmente obtido nesse ano. Neste domínio específico faz sentido falar de anualidade: não de anualidade da totalidade dos aspectos do imposto, mas apenas da anualidade específica dos escalões de imposto - recorde-se, com Tipke (“La Retroactività nel Diritto Tributario”, in Tratatto di Diritto Tributario, dirig. por Andrea Amatucci, vol. I, Pádua 1994, pg. 442), que a regra da anualidade tem um alcance delimitado e não geral. Especificamente em matéria de escalões não é todavia possível dividir o ano, dado que eles são relativos ao rendimento colectável anual englobado. Deste modo, as alterações relativas aos escalões terão, num quadro legal como o actualmente existente, de vigorar para todo o ano.
Importa contudo verificar, como fizemos atrás a propósito do aumento das taxas, se a retroactividade inautêntica consubstanciada na aplicação do novo escalão a todo o ano de 2010 será constitucionalmente tolerável nos termos dos testes inicialmente avançados.
A criação do novo escalão, prevista no Plano de Estabilidade e Crescimento, insere-se num conjunto mais vasto de medidas de combate ao défice orçamental, só a sua aplicação ao ano presente permitindo obter com a necessária celeridade a receita fiscal que o legislador pretende com esta específica medida.
Devemos ter presente que, confrontado com o carácter meramente simbólico da medida, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais defendeu no Parlamento esse mesmo carácter simbólico, mas acrescentando que 'esse simbolismo (…) é algo mais do que poesia; é o simbolismo por detrás da Constituição da República Portuguesa e de todo o Estado social português'. Afirmou então: 'Não julgamos que se trate apenas de uma medida simbólica; trata-se de uma medida com efeitos, também significativos, sobre a receita, e a receita que esperamos arrecadar com a taxa é, efectivamente de 30 milhões' (DAR, I Série, n.º 55/XI, de 8 de Maio de 2010).
A lei tem portanto, como finalidade, a prossecução de um legítimo e premente interesse de obtenção de receita fiscal para fins de equilíbrio das contas públicas, nos exactos termos do primeiro teste acima definido.
Teremos, então, de verificar se haveria alternativas não retroactivas viáveis do tipo das adoptadas pela nova lei. Não seria, evidentemente, o caso de se aumentar mais as taxas dos outros escalões, pois essa seria já uma medida de outra natureza ou de outro tipo. Por seu turno, a possibilidade de se estabelecer uma tributação adicional sobre os rendimentos colectáveis de maior volume, nos quadros do IRS, também não é uma alternativa: é precisamente o que o legislador fez ao criar o novo escalão de imposto, com a Lei n.º 11/2010.
Não havendo alternativas não retroactivas dentro do mesmo tipo de medida fiscal, resta, então (e diferentemente do que se passou com a norma da Lei nº 12-A/2010 acima analisada em que a existência de medidas alternativas não retroactivas tornava inútil a prossecução da análise), fazer ainda o terceiro teste que acima formulámos, para as hipóteses de retroactividade imprópria, e que acresce aos restantes: o teste decorrente dos princípios da proporcionalidade e da protecção da confiança.
Não é possível afirmar que esta medida fosse algo que os contribuintes por ela afectados não pudessem esperar, tendo em vista o anúncio reiterado, feito nomeadamente através de membros do Governo, da necessidade de medidas conjuntas de combate ao défice orçamental e aos custos da dívida pública acumulada.
Como se esclarece nos Acórdãos n. os 128/2009 e 85/2010, 'a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar'. Ora não é o que, no caso, sucedia.
No que respeita ao ónus que é imposto ao contribuinte, devemos começar por dizer que o novo escalão (que é um valor de rendimento a partir do qual se deverá aplicar uma taxa superior) tem também associado a si uma determinada taxa. Essa taxa era de 42% de acordo com o Orçamento de Estado para 2010 e subiu para 45 %, com a Lei n.º 11/2010. Ora, na lógica da progressividade do IRS, essa taxa apenas se aplica aos rendimentos brutos que excedam os 150.000 euros. Ou seja, supondo que um contribuinte tem 200.000 euros de rendimento, essa nova taxa não se aplica a todos os seus rendimentos, mas apenas aos 50.000 euros que excedem os 150.000 do novo escalão.
O carácter excessivo ou não do ónus imposto pelo novo escalão tem de ser aferido em função da proporção dos valores aí implicados. Ora o aumento de 3% que corresponde ao novo escalão poderia ser excessivo em outros patamares de rendimento mas não o é em valores que excedem os 150.000 euros. Note-se que este valor corresponde a um rendimento bruto de cerca de 12 500 euros por mês, algo de que apenas 1% dos contribuintes beneficia o que constitui uma parcela muito menor ainda da população, visto que há pessoas cujos rendimentos não lhes permitem contribuir, em termos de IRS.
E assim, não sendo contestável que a lei prossegue um legítimo e premente interesse de obtenção de receita fiscal para fins de equilíbrio das contas públicas, não existindo alternativas viáveis do mesmo tipo das que constam da lei e que permitam obter a mesma receita ao mesmo tempo, estando, além disso, confirmado que a medida, no contexto de anúncio das medidas conjuntas de combate ao défice orçamental e à dívida pública acumulada, não é susceptível de afectar de modo intolerável a confiança legítima dos contribuintes e sendo certo, ainda, que o aumento de imposto implicado no escalão não é desproporcional dado incidir apenas sobre o valor marginal dos rendimentos superiores a 150.000 euros, não é possível formular um juízo de inconstitucionalidade sobre a norma do artigo 2.º da Lei n.º 11/2010, que determina a aplicação ao ano de 2010 do novo escalão fiscal por ela introduzido.
Rui Manuel Moura Ramos