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Processo n.º 78/2010
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. reclamou para o Tribunal Constitucional do despacho proferido pelo Tribunal da Comarca de Vila do Conde que não admitiu o recurso de constitucionalidade que a reclamante pretendera interpor para aquele Tribunal, ao abrigo, entre outras que refere, da alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da LTC.
2. A Reclamante interpusera recurso para o Tribunal Constitucional, sustentando, designadamente, o seguinte:
«(…) 4. A legitimidade para recorrer resulta da parte ter suscitado anteriormente a questão de inconstitucionalidade e de legitimidade, nomeadamente invocando que, a aliás muito douta sentença ofendeu o disposto (no n.º 1 do art.º 20 da C.R.P.), tendo a Ré direito de ver apreciada a impugnação por si deduzida relativamente ao tempo dispendido.
SÃO FUNDAMENTOS:
Nos termos do n.º 3 do art.º 100 do EOA na fixação dos honorários deve o advogado atender, entre outros factores, “ao tempo dispendido”.
A Ré contestou a nota de honorários não aceitando, entre o demais o tempo dispendido.
A Autora, por sua vez, na petição inicial, elencou as diversas actividades exercidas a favor da Ré mas, não alega o tempo efectivo, concreto, que de(i)spendeu no exercício da mesma.
Limita-se, aliás, no seu artigo 10º, a concluir que na fixação dos honorários “se teve em atenção o tempo dispendido” não concretizando nem em dias, horas ou minutos.
Por isso, a Ré, no seu articulado, sob o nº 17, impugnou tal conclusão, alegando que as actividades jurídicas exercidas pela Autora “não justificam um estimar de horas de trabalho justificativa do preço reclamado”.
A Senhora Juíza a quo está vinculado(a) pela lei, artºs 202, 203 e 205, 1 da CRP.
Pelo que é tema de ponderação, exigível ao Tribunal, que a Senhora Juíza atente no factor “tempo dispendido” para concluir da bondade dos honorários apresentados.
(…)
Se assim é, para o(a) Autora, a Senhora Juíza a quo também não pode interpretar o nº 3 do art.º 100 do EOA com o sentido de que “é indiferente” o número de horas ou dias dispendidos”, para se fixarem os honorários.
Os honorários não são fixados apenas pelo prudente arbítrio do advogado e do julgador.
Têm que ser motivados, fundamentados.
Por exposto,
A decisão em causa, ao interpretar o nº 3 do art.º 100 do EOA no sentido de ser indiferente o tempo concreto dispendido na actividade da Autora ao serviço da Ré, ofende os princípios constitucionais consagrados no art.º 20, nº 1 e 202, 203 e 205, 1 da CRP.
A Senhora Juíza a quo está vinculada à motivação constituída por todos os factores de cálculo constantes do referido nº 3 do art.º 100 da EOA.
Entendemos, consequentemente, como melhor se mostrará em alegações, que esta decisão é susceptível de recurso, por forças das alíneas b), c) e f) do art.º 70º da Lei 85/89, de 7.9.».
3. O Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde não admitiu este recurso, com a seguinte fundamentação:
«(…) Ao longo do processo – e ao contrário do que é afirmado pela recorrente no requerimento de interposição de recurso – não foi nunca suscitada a inconstitucionalidade de qualquer norma legal que tenha sido aplicada na sentença recorrida. Nem mesmo no requerimento de interposição de recurso é suscitada a inconstitucionalidade de qualquer norma legal: o que a recorrente alega é que o tribunal interpretou, indevidamente, o art. 100.º do EOA (e não a conformidade de qualquer segmento normativo deste com a CRP, designadamente com o n.º 1 do art. 20.º).
Ora, entre outras situações que manifestamente não estão verificadas nos autos, apenas cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (art. 70.º, n.º 1, b), da LCT).
Não se verificando essa hipótese, a decisão não admite recurso.
Por outro lado, ainda que assim se entendesse, sempre diríamos que a requerente carece de legitimidade para o interpor, por nunca ter arguido a inconstitucionalidade de qualquer norma (no requerimento em que pediu a reforma da sentença, referiu apenas que esta violou o art. 20.º da CRP).
Em último caso, diríamos que o recurso é manifestamente improcedente, visto que nele não se questiona a conformidade de uma norma com o texto fundamental, mas apenas a interpretação e aplicação de uma norma pelo tribunal judicial, o que está excluído dos poderes de cognição do tribunal constitucional.
Consequentemente, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 76.º da LCT, rejeita-se o recurso. (…)».
4. Insatisfeita, a reclamante dirigiu a presente reclamação ao Tribunal Constitucional, invocando as seguintes razões:
«(…) A reclamante suscitou, em sede de contestação, diversos argumentos, sendo de especial relevância os alegados nos artºs 16 e 17.
Nesses dois artigos a Ré alegava que a elencação das motivações da nota de honorários fazia desde logo extrair a conclusão de “que não foram realizadas actividades jurídicas de especial complexidade e merecedores da remuneração pretendida”.
O segundo argumento foi o de “as actividades jurídicas desenvolvidas não justificarem um estimar de horas de trabalho justificativo do preço reclamado – por isso exagerado e não justificado nas suas premissas”.
(…)
Fazendo uso do disposto no nº 2 do art.º 669 do CPC, a aqui reclamante veio solicitar a reforma da sentença.
E alegou que na contestação a aí Ré expressamente impugnou as horas de trabalho dispendidas e inscritas na nota de honorários, pelo que, considerar como provados que a Ré acordou na contestação — nesse item, nomeadamente — com tal facto alegado pela Autora, é errado.
E ainda, que sobre o “tempo gasto” pela Autora da nota de honorários, não foi produzida qualquer prova.
Alegou-se que a ignorância da tese sustentada pela Ré em sede de contestação, ofendia o princípio consignado no nº 1 do art.º 20.º da CRP.
Dispõe, com efeito, o nº 1 do art.º 202 da CRP que a todos é assegurado a defesa dos seus direitos e interesses legítimos.
Pelo que,
Impondo o art.º 100 do EAO (EOA) no seu n.º 3 que na fixação dos honorários o advogado (e o Tribunal) deve atender, entre outros factores “ao tempo dispendido”, e como a Autora não alegou o tempo concreto que de(i)spendeu, incumbindo-lhe o ónus da alegação e prova, o facto contestado pela Ré de que os trabalhos executados não “justificam um estimar de horas de trabalho justificativo do preço reclamado” é suficiente para pôr em causa o facto que é determinativo, entre outros, do preço dos honorários.
Contudo,
A Senhora Juíza a quo ignorou quer a falta d(e) alegação deste facto fundamental para distinguir uma sentença arbitrária e não motivada de uma sentença assente nas teses apresentadas pela Autora e pela defesa;
Quer a aceitação de qualquer quantidade de tempo como justificativo do preço alegado de exagerado e não justificado nas suas premissas, pela Ré.
Ora,
O n.º 1 do art.º 20 da CRP contém um princípio de basilar importância e que impõe ao julgador o dever de apreciar o direito que a Ré invoca em sua defesa e em defesa dos seus interesses.
Quando a Senhora Juíza a quo — por quem aliás se tem em grande e douta consideração — ignora o conteúdo do alegado pela Ré nos seus artigos 16 e 17 da contestação, ofende o referido princípio constitucional.
(…)
Sustenta ainda a Senhora Juíza a quo, que a alegação da inconstitucionalidade não foi deduzida nos te(r)mos do art.º 70 da LTC, no processo.
Também, salvo mais douto entendimento, não concordamos com tal orientação.
Com efeito,
Não era previsível que a Ré imaginasse que a Senhora Juíza a quo que deve obediência à lei, não atendesse a que as premissas exigidas pelo art.º 100 EOA não estavam, relativamente ao “tempo gasto”, deduzidas como lhe incumbia na petição inicial apresentada.
E, ainda, que a contestação da Ré que expressamente alegou esse facto, não fosse aceite como defesa e fosse ignorada, assim violando o referido preceito constitucional inscrito no nº 1 do art.º 20 CRP, como se referiu no pedido de reforma da sentença.
Só com a sentença, é que a agressão a este princípio constitucional se processou.
Só com o conhecimento desta sentença é que a Ré soube que os factos e as razões de direito por si alegadas não tinham acesso a serem apreciados pelo Tribunal.
E a sentença, não motivada no n.º 3 do art.º 100 do EOA, atribuiu à Autora o preço dos seus serviços tão só pelo número dos actos e não pelo tempo gasto nesses actos.
Só perante a decisão proferida é que a reclamante teve a possibilidade de arguir a inconstitucionalidade em causa, tendo-o feito logo no primeiro momento que se impunha fazê-lo, ou seja no requerimento das interposições do recurso.
Tem sido esta orientação, também, o decidido em vários acórdãos desse Tribunal Constitucional.
(…)»
A contestação, nos artigos 16.º e 17.º, invocados pela reclamante, refere o seguinte:
«(…)16. E basta analisar a elencação da motivação da nota de honorários, junta aos autos, para, sem adjectivos se extrair que não foram realizadas actividades jurídicas de especial complexidade e merecedoras da remuneração pretendida.
17. Nem justificam um estimar de horas de trabalho justificativo do preço reclamado, que por isso a Ré considera exagerado e não justificado nas suas premissas.
(…)».
5. O Ministério Público, notificado da presente reclamação, pronunciou-se no sentido do seu indeferimento, porque:
«(…) 3. No recurso que interpôs para este Tribunal Constitucional a recorrente pretende ver apreciada a questão da inconstitucionalidade do nº 3 do artigo 100º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) interpretada “no sentido de ser indiferente o tempo concreto dispendido d(n)a actividade da Autora ao serviço da Ré”.
4.Ora, esta foi, no fundo, a questão que a recorrente levantou quando pediu a reforma da sentença, não se vislumbrando que na altura, tivesse suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
5.Por outro lado, como resulta claramente da sentença e da decisão que apreciou o pedido de reforma, a norma não foi aplicada na dimensão que a recorrente pretende ver apreciada.
6. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação».
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentação
6. A reclamante interpôs, junto do tribunal a quo, recurso de constitucionalidade do despacho relativo ao seu pedido de reforma da sentença (decisão que não identifica no requerimento), recurso que aquele tribunal não admitiu, com fundamento no não cumprimento do ónus da suscitação prévia, bem como por haver considerado não ter sido trazida perante o tribunal uma questão de constitucionalidade normativa. Mesmo sem curar de saber se a reclamante suscitou uma questão normativa no requerimento de interposição do recurso, resulta de modo claro dos elementos constantes dos autos que a reclamante não suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa durante o processo (embora a reclamante alegue tê-lo feito na contestação).
Tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º da LTC – embora no caso presente fossem, sem razão, invocadas também as alíneas c) e f) – a admissibilidade do recurso depende, entre outros requisitos, de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar dela obrigado a conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Ora, como efectivamente resulta dos autos, e foi verificado pelo despacho reclamado, a reclamante não suscitou uma questão de constitucionalidade normativa durante o processo.
Na reclamação, respondendo a este fundamento da decisão reclamada, a reclamante invoca que «suscitou em sede de contestação diversos argumentos, sendo de especial relevância os alegados nos artºs 16 e 17», atrás transcritos. Mas estes são argumentos que reforçam o decidido no despacho reclamado, por deles não resultar a suscitação de qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Este foi, aliás, um dos argumentos também apontados pelo Ministério Público, único de que aqui curamos por ser suficiente para se confirmar a decisão do tribunal a quo de não admissão do recurso de constitucionalidade interposto.
Assim sendo, importa julgar improcedente a reclamação apresentada.
III
Decisão
7. Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, proferida nestes autos em 10 de Novembro de 2009.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma), sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 5 de Julho de 2010
Catarina Sarmento e Castro
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos