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Processo nº: 114/10
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido B., foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea b), da CRP e do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da LTC, do acórdão proferido, em conferência, pela 1ª Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, em 30 de Setembro de 2009 (fls. 475 a 490), posteriormente complementado por acórdão proferido, pela mesma Secção e Tribunal, em 09 de Dezembro de 2009 (fls. 500 e 501), nos termos do qual se procedeu a correcção de erro material e se indeferiu pedido de reforma.
O recorrente pretende que seja apreciada a inconstitucionalidade dos “artigos 3º, nº 1, 173º, nº 1 e 179º, nº 1, todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, normativos estes subjacentes, ainda que não expressamente invocados, ao Douto Acórdão (…)” (fls. 510).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 516), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que não foram preenchidos algum ou alguns desses pressupostos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. O recorrente afirma [a fls. 511, alínea d)] ter cumprido o ónus de prévia e adequada suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa que pretende ver apreciada por este Tribunal, conforme lhe era legalmente exigido (artigo 72º, n.º 2, da LTC). Sucede, porém, que tal não corresponde ao processado nos autos.
Compulsadas as referidas contra-alegações perante o tribunal recorrido e a resposta ao parecer do Ministério Público, não se vislumbra qualquer referência a uma alegada inconstitucionalidade de qualquer norma extraída dos artigos 3º, n.º 1, 173º, n.º 1 e 179º, n.º 1, todos do CPTA. Com efeito, das referidas contra-alegações retira-se que o recorrente apenas alegou o seguinte:
“Em terceiro e último lugar, não podia o Tribunal «a quo», no entender do Recorrido, deixar de considerar, tendo-o feito e bem, o entendimento da própria Administração quanto ao modo de reintegração dessa legalidade urbanística, sob pena de violação do princípio da separação de poderes e interdependência de poderes, consagrado no artigo 111º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, é certo que sobre a Administração Pública recai o dever de dar execução à sentença, dever este cujo cumprimento ou incumprimento são susceptíveis de apreciação em sede judicial, mas não menos certo é que o mesmo dever se exerce, antes de mais, no âmbito e respeito dos espaços de valoração próprios do exercício da função administrativa.” (fls. 435).
E, mais tarde, em sede de resposta ao parecer do Ministério Público:
“Assim, ao contrário do defendido nessa parte do Douto Parecer do M.P., a escolha do modo concreto de reintegração da legalidade cabe à Câmara Municipal, a quem compete, no cumprimento do dever de executar a Decisão judicial, e devidamente considerados os princípios que lhe enformam a acção, encontrar a melhor solução para o caso concreto, sendo que entendimento diverso consubstancia violação do princípio da separação e interdependência de poderes, consagrado no artigo 111º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa” (fls. 464).
De ambas as citadas intervenções processuais nos autos, resulta que o recorrente nunca suscitou, de modo individualizado, preciso e determinado, a inconstitucionalidade de quaisquer normas jurídicas, muito menos as que constituem objecto do presente recurso. Pelo contrário, o recorrente limitou-se a discordar da decisão proferida pelo tribunal de segunda instância, aduzindo a favor da sua argumentação o princípio constitucional da separação de poderes. Porém, o recorrente nunca imputou o vício de inconstitucionalidade a qualquer norma jurídica extraída dos artigos 3º, n.º 1, 173º, n.º 1 e 179º, n.º 1, todos do CPTA. Ora, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da inconstitucionalidade de “normas jurídicas” (cfr. artigo 277º, n.º 1, da CRP), não lhe sendo possível conhecer de questões de inconstitucionalidade da própria decisão jurisdicional recorrida, enquanto tal.
Em suma, a mera invocação de um princípio constitucional – in casu, o da separação de poderes (artigo 111º, n.º 1, da CRP) – não pode ser considerada como bastante para demonstrar o cumprimento do ónus de prévia suscitação da inconstitucionalidade, pelo que se torna forçoso concluir pela impossibilidade de conhecimento do objecto do presente recurso, por força do artigo 72º, n.º 2, da LTC..
4. Para além disso, o próprio recorrente reconhece que as normas que podiam ser extraídas dos artigos 3º, n.º 1, 173º, n.º 1 e 179º, n.º 1, todos do CPTA, nem sequer foram expressamente invocadas pela decisão recorrida. Independentemente da mais profunda análise sobre se aquelas poderiam ter sido, ainda que apenas implicitamente, aplicadas pela decisão recorrida, certo é que não constituíram a razão fundamental e determinante da decisão proferida (“ratio decidendi”).
Como tal, também por força do artigo 79º-C da LTC, não deve este Tribunal conhecer do objecto do presente recurso, na medida em que é apenas competente para apreciar questões de inconstitucionalidade de normas que tenham sido efectivamente aplicadas, enquanto razão determinante da decisão proferida pelo tribunal recorrido.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.»
2. Inconformado com a referida decisão, o recorrente veio apresentar reclamação, cujos termos relevantes ora se sintetizam
«(…)
Tal entendimento da Veneranda Conselheira-Relatora, do qual, com o devido respeito, se discorda, deverá, salvo melhor entendimento, ficar prejudicado em face da demonstração, que se procurará fazer, no sentido em que a inconstitucionalidade de tais normas foi suscitada durante o processo e que as mesmas foram aplicadas.
4. Resulta desde logo do teor da Decisão sumária ora reclamada que a mesma não teve em consideração todo o processo, e concretamente não considerou a suscitação da inconstitucionalidade das normas jurídicas em causa feita pelo Recorrente em sede de recursos, tendo-se limitado a apreciar as contra- alegações perante o tribunal recorrido e a resposta ao parecer do Ministério Público.
5. Não obstante, conforme foi decidido no Acórdão nº 347/2007, desse Tribunal Constitucional proferido em Conferência no processo nº 507/07, da lª secção, tal apreciação deve considerar tudo o que foi impugnado ou suscitado durante o processo”:
«É abundante a jurisprudência deste Tribunal Constitucional relativamente à adequada interpretação da expressão “durante o processo” constante dos artigos 280º, n. ° 1, alínea b) da Constituição e 70. °, n. ° 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional. Com efeito, o conhecimento do recurso interposto ao abrigo destas normas — apreciação, em concreto, da constitucionalidade de normas cujo respectivo vício haja sido impugnado ou suscitado pelo respectivo recorrente — impõe que tal formulação tenha ocorrido durante o processo. Resulta este imperativo do carácter difuso do sistema português de fiscalização concreta da constitucionalidade.
A propósito deste requisito, referem Gomes Canotilho e Vital Moreira que “(...) ele significa que a questão da inconstitucionalidade deve ser suscitada durante a pendência da causa, ou seja, até ser proferida a decisão recorrida: qualquer pessoa que seja parte num processo pode arguir de inconstitucional a norma ou normas aplicáveis à causa, e se elas vierem a ser ainda assim aplicadas, pode recorrer para o TC da decisão que as aplicou. O recorrente não pode suscitar a questão da inconstitucionalidade apenas depois de proferida a decisão recorrida, quando o tribunal recorrido já aplicou (e não pode agora desaplicar) as normas arguidas de inconstitucionalidade.”
Significa isto, portanto, que, sendo o Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se sobre determinada questão de constitucionalidade adequadamente suscitada durante o processo, em sede de recurso de constitucionalidade, essa pronúncia só poderá ocorrer perante uma pronúncia prévia, por parte do tribunal recorrido, sobre tal matéria. Como observam Inês Domingos e Margarida Meneres Pimentel, “este entendimento assenta na regra de que, visando os recursos alterar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova, o recurso para o TC só se justifica na medida em que, relativamente à norma aplicada, se tenha formado um juízo sobre a sua (in)constitucionalidade (...) “».
6. Ora, facto é que o ora Recorrente, logo em sede de recurso de Apelação interposto da Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal para o Tribunal Central Administrativo Sul, alegou e invocou designadamente a violação do disposto nos artigos 111°, n.º 1, da CRP, e 3º, n.º 1. 173°, n.º 1 e 179°, n.º 1, do CPTA (cfr. item VIII das respectivas alegações, e alínea v) das conclusões, para os quais se remete),
7. O mesmo se verificando, ainda que de forma menos explicita, em sede de contra-alegações de recurso de Revista apresentadas pelo ora Recorrente (cfr. Item II, para o qual se remete),
8. Bem como em sede de Resposta do ora Recorrente ao Parecer do Ministério Público (cfr. respectiva alínea A), para a qual se remete),
9. Conforme, aliás, foi referido pelo Recorrente em sede de requerimento de recurso para esse Tribunal Constitucional (cfr. alíneas c), d) e f)).
10. E, pese embora os Tribunal Central Administrativo Sul e Supremo Tribunal Administrativo lhe tenham negado razão, o facto é que o Recorrente suscitou atempadamente, ou seja, durante o processo, a questão - normativa e constitucional - da conformidade ao mencionado preceito constitucional das normas constantes nos artigos 3º, nº 1, 173º, nº 1 e 179º, nº 1, do CPTA, quando interpretadas no sentido de imporem a demolição da moradia em causa, apesar da possibilidade legal de alteração de alvará de loteamento, bem como da possibilidade de novo licenciamento construtivo, isento dos vícios do anterior, substituindo-se assim indevidamente à Administração no espaço de valoração própria desta, em violação do principio da separação de poderes (art. 111º, nº 1 da CRP).
11. Pelo que, salvo entendimento diverso, se monstra cumprido o alegado ónus de prévia suscitação, de modo individualizado, preciso e determinado, da inconstitucionalidade de normas jurídicas durante o processo,
12. Havendo assim que admitir o presente recurso,
13. Posto que, como crê e espera ter demonstrado, as questões que integram o objecto do recurso apresentado perante esse Tribunal Constitucional são de natureza normativa e constitucional, e foram oportunamente suscitadas durante o processo.» (fls. 542 a 544)
3. Após notificação, o recorrido B. deixou expirar o prazo sem que viesse aos autos apresentar qualquer resposta:
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Comecemos pela questão de saber se seria bastante que o recorrente tivesse invocado a questão de inconstitucionalidade normativa perante um tribunal de instância que não correspondesse ao tribunal recorrido.
Em suma, afirma o ora reclamante que o requisito processual da prévia e adequada suscitação da inconstitucionalidade normativa (artigo 72º, n.º 2, da LTC) estaria preenchido desde que fosse possível, em qualquer momento processual, detectar uma suscitação daquele tipo, independentemente do tribunal perante o qual a mesma teria tido lugar. Acresce que, no caso concreto ora em apreço, o reclamante afirma ter invocado tal inconstitucionalidade em sede de alegações de recurso de apelação interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal para o Tribunal Central Administrativo Sul, mais especificamente, no §. VIII daquelas alegações (fls. 293 e 294) e na alínea v) das respectivas conclusões (fls. 308).
Como tal, o reclamante entende que a decisão sumária deveria ter apreciado todas as peças processuais incluídas nos autos – incluindo as alegações de recurso de apelação –, já que bastaria a suscitação da inconstitucionalidade normativa numa dessas peças processuais para que se desse por preenchido o referido pressuposto processual.
Sucede, porém, que essa não corresponde à interpretação que resulta da Lei – artigo 72º, nº 2 da LTC, onde claramente se estatui que o recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão […] perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida […].
Tanto basta para que, neste ponto a reclamação não possa proceder.
5. Acresce que, embora tal suscitação fosse irrelevante, também não corresponde à verdade que o ora reclamante tenha suscitado, de modo adequado, a inconstitucionalidade normativa resultante dos artigos 3º, n.º 1, 173º, n.º 1 e 179º, n.º 1, todos do CPTA perante o Tribunal Administrativo Central do Sul, uma vez que na aludida alínea v) das conclusões (cfr. fls. 308), limita-se a afirmar o seguinte:
«v) Nesta consequência, e conforme supra melhor exposto no ponto VIII, a Sentença recorrida viola o princípio da separação de poderes, e desse modo, o disposto nos arts. 3º, nº 1, 173º, nº 1, e 179º, nº 1, do CPTA, sendo que esta interpretação divergente a este respeito viola por sua vez o disposto nos seguintes normativos e princípios constitucionais: 2º (princípio do Estado de Direito); 3º (princípio da subordinação do Estado à Constituição e à legalidade democrática), 111º, nº 1 (princípio da separação de poderes».
Para além disso, os §§ 45. a 54. das respectivas alegações do recurso de apelação (cfr. fls. 293 e 294) limitam-se a reflectir considerações genéricas sobre o princípio do contraditório, nunca se referindo expressamente à inconstitucionalidade de uma ou de várias interpretações normativas concretas e especificadas. Como tal, nem sequer nessa sede – ou seja, através do recurso de apelação interposto para o Tribunal Central Administrativo do Sul – se deu cabal cumprimento ao ónus de prévia e adequada suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa que constituiu objecto do presente recurso.
Tanto assim é que aquele tribunal nem sequer julgou a inconstitucionalidade das normas extraídas dos artigos 3º, n.º 1, 173º, n.º 1 e 179º, n.º 1, todos do CPTA. E tal constitui a segunda razão para manter o entendimento de que o reclamante estaria onerado com o dever de renovação de uma (alegada) suscitação de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Administrativo.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 2 de Junho de 2010
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão