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Processo n.º 276/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. e Mulher, inconformados com a decisão sumária proferida a 10 de Maio de 2010, vêm dela reclamar dizendo o seguinte:
“ (...) Pelo que, a interpretação do art. 498°, n° 1 do C. Civil, no sentido em que o foi na sentença recorrida é inconstitucional por violar o disposto nos art. 20°, n° 1 e 22° da C.R.P.
Por estas razões, nunca os ora reclamantes pensaram, ou sequer supuseram, poder o Tribunal de primeira instância vir a ter entendimento diverso há cerca da interpretação da conduta perpetrada pelos serviços médicos militares do Estado Português.
Razão pela qual, nem por mera cautela, invocaram, durante o processo, a eventual questão de uma interpretação inconstitucional do preceito supra referido.
Pelo que, foi com surpresa que os Autores viram o Tribunal de primeira instância absolver o Réu Estado Português com fundamento na prescrição dos direitos invocados pelos primeiros.
Não podiam os ora reclamantes ter suscitado a questão da inconstitucionalidade que ora invocam noutro momento que não aquando do recurso interposto da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra. O que, efectivamente, lograram fazer.
Deste modo, mui respeitosamente, se discorda da decisão sumária de que ora se reclama, por se entender que não podiam os reclamantes ter suscitado a questão da inconstitucionalidade que ora invocam até à prolação da decisão final.
De facto, a interpretação contida na recorrida decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra surge de forma inovadora nos presentes autos, constituindo uma decisão surpresa para efeitos de dispensa do ónus de suscitação atempada da questão de constitucionalidade.
Não era, deste modo, de todo razoável exigir aos ora Recorrentes que adivinhassem vir a primeira instância a acolher tão inesperada interpretação e aplicação dos citados preceitos legais.
Da análise do requerimento de interposição de recurso apresentado pelos Recorrentes, bem como da consideração dos princípios gerais aplicáveis no domínio do processo civil, designadamente daqueles que concernem à tramitação dos recursos, facilmente se constata que não poderiam os Recorrentes ter suscitado, durante o processo (leia-se, em momento anterior à data da prolação da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra) e de forma processualmente adequada, qualquer questão de constitucionalidade normativa reportada ao art. 498°, n° 1 do C. Civil, na estrita medida, e tão somente porque, tal questão de inconstitucionalidade só surge depois da prolação daquela decisão.
Assim sendo, não poderiam os Recorrentes, por verdadeira e manifesta impossibilidade jurídica e táctica, ter suscitado tal questão em momento anterior — seja, durante o processo — simplesmente porque a mesma não se tinha ainda colocado, até porque, e como já tivemos oportunidade de salientar, se trata de uma questão que se reporta in totum à fase de recurso.
Muito menos poderiam os Recorrentes, e ao contrário do que nos conduz a decisão sumária, ter antecipado tal questão, pois sempre, e tão só, se trataria de uma mera hipótese, não estando os Recorrentes, de qualquer modo, obrigados a agir processualmente em razão de meras previsões, e sem que, em qualquer caso, tal possa constituir impedimento de aqueles formularem e ver atendida — pelo menos, apreciada — pretensão legítima e determinativa da intervenção daquela que é a instância suprema de defesa e controlo da Lei Fundamental.
Mais ainda, salienta-se também que os Recorrentes suscitaram tal questão no requerimento de interposição de recurso dado que, após a prolação da decisão pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, aquele foi o momento processual imediatamente subsequente — e o único momento que permitiria que tal questão fosse suscitada.
Deste modo, nada mais resta senão concluir que o caso sob judice configura uma daquelas situações excepcionais, que legitimam e permitem que o Tribunal Constitucional dispense os Recorrentes do cumprimento do ónus de suscitar, durante o processo, a questão de constitucionalidade normativa, atendendo à inexistência de oportunidade processual para cumprir tal ónus — cf. por todos, o Acórdão n° 155/95 do Tribunal Constitucional, in http://www.tribunalconstitucional.pt.
Por seu turno, seguramente devido a lapso de escrita, refere a decisão sumária de que ora se recorre que os recorrentes não suscitaram a inconstitucionalidade do art. 496°, n° 1 do C. Civil, acrescentando que a única norma que viu a respectiva inconstitucionalidade arguida foi o art. 496°, n°3 daquele código.
Na verdade, se atentarmos às alegações de recurso apresentadas pelos recorrentes junto deste Venerando Tribunal, verificar-se-á que a norma cuja inconstitucionalidade se suscita é do art. 498°, n° 1 do C. Civil.
Com efeito, esta norma, efectivamente aplicada pelo Supremo Tribunal Administrativo e pelo Tribunal de primeira instância, reduzindo o prazo de prescrição dos direitos invocados pelos recorrentes para três anos, em vez de cinco, como resultaria da aplicação do art. 498°, n° 3 do C. Civil, impossibilita estes de recorrerem aos tribunais para verem ressarcidos os danos patrimoniais e não patrimoniais que resultaram da morte do seu filho.
Tal aplicação restringe, sem margem para dúvidas, o direito de acesso aos tribunais plasmado no art. 200, n° 1 da CRP, segundo o qual ‘a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (...)’.
Da mesma forma, a aplicação do n° 1 do art. 498° do C. Civil, permite a ‘fuga’ do Estado Português às responsabilidades que, no caso sub judice, não podem deixar de lhe ser assacadas, assim, se violando, igualmente, o art. 22° da CRP., segundo o qual ‘o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem’.
No entender dos ora reclamantes foi produzida, ao longo da audiência de discussão e julgamento, prova bastante para se poder imputar ao Estado Português o homicídio por negligência do militar Paulo José, pelo que, para aqueles, nunca poderia ter aplicação, para efeitos de contagem do prazo de prescrição, o preceituado no n° 1 do art. 498° do C. Civil, mas sim o disposto no seu n°3.
Daí se ter erradamente referido, nas alegações de recurso da decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância, a esse mesmo n° 3 em vez do n° 1 do citado art. 498° do C. Civil.
De todo o modo, não podem os recorrentes deixar de pedir a este Venerando Tribunal que se pronuncie sobre a aplicação, ao caso sub judice, do referido n° 1 do art. 498° do C. Civil, em vez do seu n° 3 quando, no seu entender, dos autos resulta claramente, apesar de nisso não ter consentido nem o Tribunal de primeira instância, nem o Supremo Tribunal Administrativo, que houve negligência na realização dos exames médicos por parte dos serviços médicos militares aquando da selecção e classificação do mancebo Paulo José.
Negligência esta que causou a morte deste jovem e que não pode deixar de ser compensada por quem nela teve responsabilidade.”
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“5. Profere-se decisão sumária ex vi artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), por não se encontrarem preenchidos os pressupostos necessários ao conhecimento do recurso, na medida em que o despacho de admissão do mesmo, proferido pelo tribunal a quo, não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76.º, n.º 3 daquele diploma).
5.1. O conhecimento do recurso de constitucionalidade que os Recorrentes pretenderam interpor – previsto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, depende da prévia verificação de vários requisitos, nomeadamente a suscitação durante o processo, de inconstitucionalidade de norma ou dimensão normativa. Na resposta ao despacho-convite, os Recorrentes circunscrevem o objecto do recurso ao artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil com a interpretação que resulta do Acórdão ora recorrido. É de salientar desde logo que tal delimitação não cumpre as exigências mínimas de um objecto idóneo de um recurso de constitucionalidade – não basta alegar que se contesta uma norma na interpretação que dela foi feita pelo tribunal recorrido: é essencial que o recorrente constitucional concretize essa mesma interpretação. De outro modo, o Tribunal Constitucional estaria a substituir-se ao recorrente na tarefa de delimitação do objecto do recurso. Ainda assim, o recurso não é admissível por um outro motivo.
5.2. Como já se referiu, os recursos da alínea b) versam as normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, isto é, até à prolação da decisão final (nos termos do artigo 666.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, coincidindo tal momento com a extinção do poder jurisdicional do juiz a quo). No entanto, durante o processo os Recorrentes não suscitaram a inconstitucionalidade do artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil, ao contrário do que sustentam na resposta que ofereceram ao despacho-convite. A única norma que viu, então, a respectiva inconstitucionalidade arguida foi o artigo 496.º, n.º 3 daquele Código.
5.3. O certo é que tiveram oportunidade processual bastante para o fazer na medida em que a aplicação do direito que resulta da decisão do Supremo Tribunal Administrativo não assume o carácter de decisão-surpresa, limitando-se a mesma, aliás, a reiterar a interpretação que havia já sido feita pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra.
Resta concluir pela impossibilidade de conhecimento do recurso.”
3. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Em sede de reclamação, cumpre apreciar se se encontram, de facto, preenchidos os requisitos necessários ao conhecimento do recurso tentado interpor. Com efeito, o conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, como sucede nos autos, depende da prévia verificação de vários requisitos, nomeadamente a suscitação, pelo recorrente, de inconstitucionalidade de uma norma durante o processo, constituindo essa norma fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida, bem como o prévio esgotamento dos recursos ordinários. Adiante-se, desde já, que a presente reclamação se encontra votada ao insucesso.
4.1. Como se salientou na decisão sumária reclamada, não existe coincidência entre a norma cuja inconstitucionalidade é suscitada durante o processo, nomeadamente no recurso interposto para o STA, e a norma que os Reclamantes pretenderam posteriormente integrar no objecto do recurso de constitucionalidade.
4.2. Assim, durante os autos, foi suscitada a inconstitucionalidade do artigo 498.º, n.º 3 do Código Civil. No entanto, na sequência do convite que lhes foi feito posteriormente para virem suprir as deficiências do requerimento de interposição do recurso, os então Recorrentes vieram indicar a norma do artigo 498.º, n.º 1 do mesmo Código (é bem de ver, como os mesmos reconhecem, que as referências ao artigo 496.º são um lapso evidente, sendo as mesmas dirigidas ao artigo 498.º).
4.3. Deste modo, nada do que os Reclamantes invocam a propósito da impossibilidade de suscitação da questão antes de proferida a decisão do TAF, releva para os efeitos por eles pretendidos. Por um lado, a expressão “durante o processo” significa que a questão de constitucionalidade deve ser suscitada até que seja proferida a decisão final nos autos, o que no caso em apreço seria até à decisão do STA. Por outro lado, e face à decisão da 1.ª instância, assistiu oportunidade processual suficiente aos Reclamantes para suscitarem tal questão, em moldes processualmente adequados, no recurso que interpuseram.
4.4. Tendo-o feito a propósito do artigo 498.º, n.º 3 do Código Civil – em moldes que, aliás, não cumpririam o ónus da suscitação adequada da questão de constitucionalidade – não podem posteriormente pretender alterar o objecto do recurso para norma diferente.
Reitera-se, pois, o já decidido na decisão sumária.
III – Decisão
5. Assim, acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelos Reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 16 de Junho de 2010
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos