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Processo n.º 595/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
A – Relatório
1 – A., Lda., com os demais sinais dos autos, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma dos artigos 2.º, n.º 2, 11.º, n.º3 e 13.º-A e 16.º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações (CIMSISD), quando interpretada no sentido da sujeição a imposto de sisa do contrato promessa com tradição conjugado com a sua irrelevância para efeitos de caducidade da isenção de sisa, que considera inconstitucional por violação do disposto nos artigos 13.º, 103.º e 104.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
2 – O recurso foi interposto do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13 de Maio de 2009, que assentou na seguinte fundamentação.
“(...)
6 – Apreciando.
6.1. Da questão de saber se a celebração de um contrato promessa de compra e venda acompanhado da tradição do bem realizado dentro do prazo de três, e que deu lugar ao pagamento de IMT nos termos do artigo 2.º, n.º 2, alínea a) do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), constitui “revenda” para o efeito de obstar à caducidade da isenção de sisa de um imóvel adquirido para revenda nos termos dos artigos 11.º, n.º 3, 13.º-A e 16.º do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISD).
O Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações adopta expressamente na definição da incidência do imposto um conceito de transmissão a título oneroso de propriedade imobiliária mais amplo que o seu conceito civilístico (cfr. o art. 2.º, §1.º do CIMSISD), considerando, para o efeito da incidência real da sisa, como transmissão a título oneroso da propriedade imobiliária, designadamente, as promessas de compra e venda ou troca de bens imobiliários, logo que verificada a tradição para o promitente comprador ou para os promitentes permutantes, ou quando aquele ou estes estejam usufruindo os bens (cfr. o n.º 2.º, do §1.º do art. 2.º do CIMSISD).
A razão de ser desta extensão do conceito civilístico de transmissão para efeitos de incidência do imposto encontra-se, como ensina SOARES MARTÍNEZ (Direito Fiscal, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 1993, p. 67) no receio do legislador de que, a fim de evitar o pagamento do imposto de sisa, o promitente comprador não viesse a celebrar o respectivo contrato de compra e venda, contentando-se com uma transmissão de facto.
A referida extensão do conceito civilístico de transmissão resulta de norma expressa nesse sentido que, a não existir, implicaria que o conceito de transmissão onerosa da propriedade imobiliária, originário do direito civil, valesse em princípio para efeitos fiscais com o mesmo sentido com que vale no ramo de direito de que é originário (cfr. o n.º 2 do artigo 18.º da LGT).
Cabe agora perguntar se também o conceito de “revenda” utilizado no artigo 16.º do CIMSISD deve merecer idêntica “deformação funcional”, permitindo considerar como revenda um contrato promessa de compra e venda acompanhado da tradição da coisa (e que deu lugar ao pagamento de IMT).
Partindo da letra da lei, pode desde logo verificar-se que falha neste caso, ao contrário do que se verifica para a definição da incidência do imposto (art. 2.º, n.º 2 do CIMSISD), uma intenção expressa do legislador em operar qualquer extensão do conceito, daí que em princípio o termo “revenda” deva valer para efeitos tributários com o mesmo sentido com que vale no direito comum (art. 11.º, n.º 2 da LGT), para o qual não basta para operar a transmissão do bem a celebração de um contrato promessa de compra e venda acompanhado da tradição do bem. E olhando agora à ratio do preceito, à mesma conclusão somos conduzidos: se é verdade que a “deformação funcional” do conceito de transmissão para efeitos de incidência real de imposto de sisa acautela o receio do legislador na não celebração dos contratos definitivos de compra e venda de imóveis tendo em vista a evitação fiscal, a ratio da caducidade da isenção de imposto nas aquisições de prédios para revenda findos os três anos sem que o prédio tenha sido revendido (art. 16.º, 1.º do CIMISID), parece ser somente a circunstância de ter sido ultrapassado o prazo tido pelo legislador como razoável para efectuar a revenda do bem, cessando a partir daí o desagravamento fiscal estrutural concedido atendendo à natureza empresarial da actividade exercida pelo adquirente para revenda, cujo enquadramento se insere no âmbito da tributação do rendimento e que tem como fim último apenas o de afastar elevados encargos financeiros que, não obstante serem custos dedutíveis para efeitos de determinação do rendimento sujeito a imposto, tenderiam a repercutir-se no preço final da venda dos bens imóveis (Cfr. Reavaliação dos Benefícios Fiscais, Relatório do Grupo de Trabalho criado por Despacho de 1 de Maio de 2005 do Ministro do Estado e das Finanças, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 198, CEF, 2005, pp. 121/122 e J. Silvério Mateus /L. Corvelo de Freitas, Os Impostos sobre o Património. O Imposto do Selo: Anotados e Comentados, Lisboa, Engifisco, 2005, p. 385).
No sentido de que o conceito de revenda utilizado no art. 16.º 1.º do CIMSISD deve ser entendida em sentido técnico-jurídico, concretizando a celebração de um contrato de compra e venda, não se bastando com a celebração de um contrato promessa mesmo que acompanhado da tradição da coisa vejam-se os Acórdãos deste Tribunal de 4/11/1970 (rec. n.º 16201), de 16/6/1972 (rec. n.º 1981), de 11/3/1981 (rec. n.º 1462), de 10/11/1982 (Pleno, rec. n.º 1462), de 6/3/1985 (rec. n.º 2732) e de 8/11/2006 (rec. n.º 642/06).
Não tem, pois, razão a recorrente ao pretender uma equiparação, que a lei não faz nem se justifica, entre a “revenda” exigida pela lei e a celebração de contrato promessa de compra e venda acompanhada da tradição do imóvel, mesmo que tenha dado lugar ao pagamento de IMT por parte dos promitentes-adquirentes.
A sentença recorrida, concluindo deste modo, não merece pois qualquer censura.
6.1.1. Da alegada inconstitucionalidade, por violação dos artigos arts. 13.º, 103.º e 104.º n.º 3 da Constituição de República Portuguesa (CRP), da interpretação dos artigos 2.º, n.º 2 do CIMSISD no sentido da sujeição a imposto do contrato promessa com tradição e a sua irrelevância para efeitos de caducidade da isenção de sisa.
O recorrente alega ainda que “a interpretação do art. 2.º n.º 2 do CIMSISD (actualmente artigo 2.º n.º 2 a) do CIMT) no sentido de que, com a celebração de um contrato promessa com tradição, existe transmissão para efeitos de liquidar o IMT aos promitentes-compradores, mas já não existe transmissão para considerar ter ocorrido a caducidade da isenção do pagamento da SISA, é inconstitucional por violação dos artigos 13.º, 103.º e 104.º n.º 3 da CRP”.
O recorrente alega a inconstitucionalidade, invocando as normas que considera violadas pela interpretação adoptada, mas sem fundamentar qual a razão e em que segmento resultam violados com a interpretação adoptada o princípio da igualdade (art. 13.º da CRP), a norma relativa ao sistema fiscal (art. 103.º da CRP) e a norma constitucional que dispõe que “a tributação do património deve contribuir para a igualdade dos cidadãos” (art. 104.º, n.º 3 da CRP).
O Tribunal não descortina qualquer violação do princípio da igualdade ou de qualquer outra norma ou princípio constitucional ínsito nas normas alegadamente infringidas com a interpretação adoptada, tanto mais que no caso estavam em causa liquidações de impostos diferentes (Sisa e IMT) efectuadas a sujeitos passivos diversos (o adquirente para revenda e cada um dos três promitentes-adquirentes), por factos tributários que não se confundem (a primitiva aquisição para revenda, na parte não revendida e as promessas de aquisição das fracções autónomas objecto de tradição).
Improcede, pois, a alegação de inconstitucionalidade do recorrente.
6.2. Da correcção da liquidação de sisa efectuada pela Administração tributária
O recorrente contesta finalmente a correcção da liquidação de sisa que lhe foi feita pela Administração fiscal, considerando que o imposto devia ter sido liquidado sobre as fracções autónomas não revendidas, às taxas vigentes à data da liquidação e distinguindo consoante a fracção se destinasse a habitação ou ao comércio, e não, como foi feito, aplicando a taxa de 10% sobre a parte do prédio não revendida.
Entendemos, contudo, que não lhe assiste razão e que bem julgou a primeira instância na decisão recorrida.
Vejamos.
Diga-se desde já que o artigo 18.º, n.º 2 do Código do IMT, que o recorrente invoca nas suas alegações de recurso para sustentar a pretensão de lhe ser aplicada a taxa de imposto vigente à data em que a isenção de sisa caducou, é inaplicável ao caso. Trata-se de disposição relativa ao IMT que não à sisa, como bem decidiu a sentença recorrida, sendo além disso disposição inovadora em face da lei anterior (assim, J. Silvério Mateus/L. Corvelo de Freitas, op. cit., pp. 452/453).
A norma aplicável ao caso é antes o artigo 45.º do CIMSISD, que dispunha que “a sisa e o imposto sobre as sucessões e doações serão liquidados pelas taxas em vigor ao tempo da transmissão dos bens”, sendo essa taxa ao tempo de 10% (art. 33.º 1.º do CIMSISD). A isenção de sisa dos prédios para revenda tem características de uma isenção sob condição resolutiva (embora condição imprópria, pois a condição não resulta de estipulação contratual mas da existência de requisitos essenciais para a produção dos seus efeitos – cfr. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, 1987, p. 250, nota 2 ao art. 270.º do CC), e como é próprio do regime jurídico destas, a verificação da condição tem em regra eficácia retroactiva (art. 276.º do CC). Assim, como tem sido decidido por este Tribunal – cfr. o Ac. de 28/1/2009 (rec. n.º 642/08) e jurisprudência aí citada -, “tudo se passa como a liquidação tivesse ficado suspensa no momento da transmissão já que a esta data se deve reportar a não consolidação da referida isenção”.
Não tem, pois, razão a recorrente ao pretender que lhe seja aplicada a taxa de imposto vigente à data da liquidação e a sua incidência real sobre as fracções autónomas não revendidas.
A sentença recorrida não merece também aqui qualquer censura.
O recurso não merece provimento.
(...)”.
3 – Nas suas alegações de recurso, a recorrente sustenta a inconstitucionalidade da norma sindicanda com base no arrazoado discursivo que condensou nas seguinte conclusões:
“(...)
A) Nos presentes autos está em causa a caducidade da isenção de SISA tendo ocorrido a celebração de contratos promessa de compra e venda de imóveis no período de três anos subsequente à aquisição, acompanhados da tradição do bem e do pagamento de IMT pelos promitentes-compradores.
B) A transmissão prevista artigo 2.°, §1.º 2.° do CIMSISD, considera-se perfeita com a celebração do contrato promessa de compra e venda com tradição do imóvel, sendo irrelevante a eventual formalização jurídica da transferência da propriedade através da celebração da respectiva escritura.
C) No caso sub judice, foi liquidado e pago o imposto devido (IMT já em vigor à data) pela celebração dos contratos promessa de compra e venda com tradição do imóvel
D) A administração tributária liquidou (e recebeu) o imposto por considerar existir a efectiva transmissão do bem.
E) Considera a ora recorrente que é inaceitável e verdadeiramente inconstitucional a interpretação dos artigos 2.° n.º 2 do CIMSISD (actualmente artigo 2.° n.º 2 a) do CIMT), 11.º n.º 3 e 13-A e 16.° do CIMSISD no sentido da irrelevância da mesma transmissão para efeitos de caducidade da isenção de sisa
F) Por um lado existe “transmissão” para efeitos de liquidar o imposto ao promitente-comprador, por outro lado já não existe “transmissão” para efeitos de evitar a caducidade da isenção de sisa,
G) E não se diga que esta interpretação visa evitar a fuga ao imposto: o imposto em causa é devido e é pago pelo promitente-comprador aquando da celebração do contrato promessa com tradição, antecipando o pagamento que iria ser feito na escritura de compra e venda.
H) Também não se diga que só com a posição adoptada pela administração fiscal se pode efectuar o controlo e fiscalização da isenção em causa com o fundamento de só com uma compra e venda, devidamente titulada, é possível controlar e fiscalizar a isenção condicionada em causa, o que não seria possível mediante a hipótese de simples contrato promessa de compra e venda.
I) O entendimento defendido pela ora recorrente não prejudica o controlo e fiscalização da isenção do pagamento da SISA, nem facilita a fuga aos impostos.
J) A recorrente não quer beneficiar de isenção sem ter adquirido por escritura pública um imóvel no ano anterior. Pretende que se considere não ter caducado a isenção de IMT que beneficiava porque existiu uma efectiva transmissão (revenda) ao ter celebrado três contratos promessa com tradição e consequente pagamento do IMT por parte dos promitentes compradores.
L) Não está em causa a celebração de um qualquer contrato sem incidência tributária para se obter uma isenção. Foram celebrados três contratos promessa de compra e venda com tradição em que foi pago o devido imposto pelas transmissões (tal como teria sido pago se a transmissão fosse efectuada na escritura de compra e venda)
M) Nenhuma razão existe para não considerar a transmissão prevista no artigo 2.°, §1.° 2.° do CIMSISD uma verdadeira revenda quando o promitente vendedor adquiriu previamente o bem para revenda, como aconteceu no caso sub judice
N) A interpretação em causa estabelece desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer fundamentação objectiva e racional, entre quem transmite o bem através contrato promessa de compra e venda com tradição (com pagamento do imposto devido pelo acto) e por quem transmite através de escritura pública de compra e venda.
O) Nos dois casos a administração fiscal líquida o mesmo imposto (SISA ou mais recentemente IMT) ao adquirente B por considerar existir transmissão perfeita do bem: num caso por escritura de compra e venda, no outro por ter existido contrato promessa com tradição.
P) Mas, estabelece de seguida uma diferença: Com uma das transmissões (escritura de compra e venda) não ocorre a caducidade da isenção de pagamento de SISA, com a outra transmissão (contrato promessa com tradição) ocorre a caducidade da isenção de pagamento de SISA
R) A diferença de tratamento não tem qualquer justificação, nomeadamente porque não existe qualquer perigo de fuga fiscal ou prejuízo para administração fiscal.
S) Em qualquer das duas situações (transmissão por escritura de compra e venda ou transmissão por contrato promessa com tradição) o imposto liquidado e recebido é exactamente igual.
T) A violação do princípio constitucional da igualdade subentende uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminatória, o que ocorre no caso sub judice.
U) É arbitrário e desprovido de fundamento material diferenciar quem transmite o bem através contrato promessa de compra e venda com tradição (com pagamento do imposto devido pelo acto) e por quem transmite através de escritura pública de compra e venda.
V) Isto porque, em ambos os casos, existe transmissão, existe pagamento do (mesmo) imposto devido por essa transmissão e o Estado não é prejudicado em qualquer valor.
X) É também arbitrário e desprovida de fundamento material bastante considerar, com base no mesmo acto, ter ocorrido uma transmissão para uma das partes (promitente-comprador) e já não para a outra parte (promitente-vendedor).
AA) A caducidade da isenção tem como fundamento a presunção que o imóvel passou a destinar-se a uso ou fruição do adquirente, situação em que o bem adquirido passa do activo permutável para o activo imobilizado do adquirente, perdendo a condição de mercadoria que presumidamente tinha.
AB) Com o contrato promessa de compra e venda com tradição, dúvidas não existem que o bem em causa não passou do activo permutável para o activo imobilizado do promitente vendedor, o que, aliás, é reconhecido pela administração fiscal ao liquidar o imposto ao promitente-comprador aquando da celebração do contrato promessa com tradição.
AC) Assim, em consequência da (injusta) caducidade da isenção que gozava o vendedor, está a liquidar-se SISA (ou IMT actualmente) sobre um rendimento ou sobre uma propriedade que não é real porque o bem já foi transmitido para o promitente-comprador.
AD) a interpretação em causa é profundamente injusta, colocando em causa a capacidade contributiva do promitente-vendedor, o princípio da proporcionalidade, da justiça material, da proibição do excesso e de uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
AE) a interpretação dos artigos art. 2.° n.º 2 do CIMSISD (actualmente artigo 2.° n.º 2 a) do CIMT), 11.º n.º 3 e 13-A e 16.° do CIMSISD no sentido da sujeição a imposto do contrato promessa com tradição conjugado com a sua irrelevância para efeitos de caducidade da isenção de sisa (art. 16.° 1.0 do CIMSISD) terá que ser considerada inconstitucional, pelo menos, por violação dos artigos 13.°, 103.° e 104.° n.º 3 da Constituição de República Portuguesa”.
4 – A entidade recorrida não contra-alegou.
B – Fundamentação
5 – O presente recurso tem por objecto a norma que se extrai dos artigos 2.º, n.º 2, 11.º, n.º3 e 13.º-A e 16.º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações (CIMSISD), quando interpretada no sentido da sujeição a imposto da sisa do contrato promessa com tradição conjugado com a sua irrelevância para efeitos de caducidade da isenção de sisa.
Na perspectiva da recorrente, a norma é inconstitucional por violação do disposto no artigo 13.º, 103.º e 104.º, n.º 3, da Constituição.
Vejamos.
6 – No Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações – doravante, abreviadamente, CIMSISD –, o legislador sujeitou a tributação, em sede de sisa, as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, relativamente a bens imóveis (cf. artigos 1.º e 2.º do CIMSISD).
No entanto, como é consabido, tal conceito de transmissão a título oneroso de propriedade imobiliária em sede de incidência abarca outras realidades de facto que não têm idêntica correspondência ao nível do conceptualismo juscivilístico (cfr. o artigo 2.º, §1.º do CIMSISD), como sucede, por exemplo, com as promessas de compra e venda ou troca de bens imobiliários, logo que verificada a tradição para o promitente comprador ou para os promitentes permutantes, ou quando aquele ou estes estejam usufruindo os bens (cf. o n.º 2.º, do §1.º do artigo 2.º do CIMSISD), que se encontram sujeitas ao imposto num momento anterior ao da transmissão jurídica da propriedade do imóvel.
De acordo com J. M. Cardoso da Costa (Curso de Direito Fiscal, Coimbra, 1972, p. 118), estão aí em causa situações de facto que acabam por se revestir “de um significado económico equivalente ou então que permitiriam com maior ou menor facilidade, se não fossem tributados, uma evasão ilegítima ao pagamento da sisa” (no mesmo sentido, v. J. Casalta Nabais, Direito Fiscal, 5.ª ed., Coimbra, p. 639).
Recortada a incidência do imposto nos termos sumariamente expostos, o legislador consagrou, no artigo 11.º do CIMSISD, um conjunto diferenciado de isenções, aí incluindo, no § 3.º, “as aquisições de prédios para revenda, nos termos do artigo 13.º-A, desde que se verifique ter sido apresentada antes da aquisição a declaração prevista no artigo 105.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) ou na alínea a) do n.º 1 do artigo 94.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), consoante o caso, relativa ao exercício da actividade de comprador de prédios para revenda”, prevendo, assim, a paralisação da eficácia do facto constitutivo da obrigação do imposto, de modo a impedir o despoletar dos efeitos fiscais dele decorrentes (cf. Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, Lisboa, 1974, pp. 281-2) sempre que, em termos gerais, o prédio seja adquirido com intenção de revenda e esta ocorra no prazo de três anos, como decorre do estipulado no artigo 16.º, onde se prevê a caducidade do benefício da isenção quando se verifique “que aos prédios adquiridos para revenda foi dado destino diferente ou que os mesmos não foram revendidos dentro do prazo de três anos ou o foram novamente para revenda”.
Nestes casos, segundo Diogo Leite de Campos (“A aplicação no tempo da nova taxa da SISA/IMT, in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 28, 2003, p. 60), “a lei vem dizer que a ‘aquisição’ do bem para revenda não é uma verdadeira aquisição. As particulares características do ‘sujeito passivo’ e a operação jurídica afastam a incidência (...)”.
Ora, o tribunal recorrido interpretou o regime legal supra descrito “no sentido de que o conceito de revenda utilizado no art. 16.º 1.º do CIMSISD deve ser entendida em sentido técnico-jurídico, concretizando a celebração de um contrato de compra e venda, não se bastando com a celebração de um contrato promessa mesmo que acompanhado da tradição da coisa – vejam-se os Acórdãos [...] de 4/11/1970 (rec. n.º 16201), de 16/6/1972 (rec. n.º 1981), de 11/3/1981 (rec. n.º 1462), de 10/11/1982 (Pleno, rec. n.º 1462), de 6/3/1985 (rec. n.º 2732) e de 8/11/2006 (rec. n.º 642/06)”,
Traçado o esquisso do regime legal relevante para a análise da matéria sujeita à fiscalização da constitucionalidade, importa agora perscrutar se a norma em crise viola a Constituição da República ao sujeitar a imposto de SISA o contrato promessa com tradição não admitindo, em contraponto, a sua relevância para efeitos de caducidade da isenção desse imposto.
Começando pela suscitada violação do princípio da igualdade, pode dizer-se que a jurisprudência deste Tribunal tem recortado o alcance desse parâmetro em torno de três dimensões essenciais: “a proibição do arbítrio, a proibição de discriminação e a obrigação de diferenciação, significando a primeira, a imposição da igualdade de tratamento para situações iguais e a interdição de tratamento igual para situações manifestamente desiguais (tratar igual o que é igual; tratar diferentemente o que é diferente); a segunda, a ilegitimidade de qualquer diferenciação de tratamento baseada em critérios subjectivos (v.g., ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social); e a última surge como forma de compensar as desigualdades de oportunidades” (cf. Acórdão n.º 232/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Neste mesmo aresto, considerou o Tribunal que o controlo das constitucionalidade das normas não poderá deixar de ser feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio e de um critério de razoabilidade. Sobre essa exigência e reflectindo sobre os caminhos percorridos ao nível do direito comparado, aí se discreteou:
“(…)
Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma “fundamentação razoável” (vernünftiger Grund), tal como sustentou o “inventor” do princípio da proibição do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. F. Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre nós por Maria da Glória Ferreira Pinto: “[E]stando em causa (...) um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela 'ratio' do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A 'ratio' do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério” (cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de sentido-, sep. do Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, opina a mesma Autora: “[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a 'ratio' do tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar, e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão entre o critério adoptado e a 'ratio' do tratamento jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável à subsistência familiar numa determinada sociedade” (ob. cit., pp. 31-32).
Também a jurisprudência constitucional se orienta nesse sentido. Assim, o Tribunal Constitucional alemão já teve ensejo de afirmar que “(...) um tratamento arbitrário é aquele que (...) não é compreensível por uma apreciação razoável das ideias dominantes da Lei Fundamental” (42 BVerfGE 64, 74) e que “[A] máxima da igualdade é violada quando para a diferenciação legal ou para o tratamento legal igual não é possível encontrar um motivo razoável, que surja da natureza das coisas ou que, de alguma outra forma, seja compreensível em concreto, isto é, quando a disposição tenha de ser qualificada como arbitrária” (1 BVerfGE 14, 52; mais recentemente, cf. 12 BVerfGE 341, 348; 20 BVerfGE 31, 33; 30 BVerfGE 409, 413; 44 BVerfGE 70, 90; 51 BVerfGE 1, 23; 60 BVerfGE 101, 108).
Caminhos idênticos foram percorridos pelo Tribunal Constitucional português (a título meramente exemplificativo, cf. os Acórdãos nºs 44/84, 186/90, 187/90 e 188/90, in AcTC, 3º vol., pp. 133ss, e 16º vol., pp. 383 ss, 395ss e 411ss, respectivamente). No Acórdão nº 39/88, o Tribunal teve ocasião de dizer: “[O] princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo constitucionalmente relevantes (...)” (in AcTC, 11º vol., pp. 233ss). E, curiosamente, também nos Estados Unidos se alude à necessidade de, no estabelecimento de diferenciações, obedecer a um cânone de razoabilidade (reasonableness) (cf. J. Tussman e J. tenBroek, “The equal protection of the laws”, California Law Review, nº 37, 1949, p. 344, cit. por Gianluca Antonelli, “La giurisprudenza italiana e statunitense sul principio di solidarietà”, Studi parlamentari e di politica costituzionale, nºs. 125-126, 1999, p. 89; sobre o princípio da razoabilidade na jurisprudência norte-americana, cf. Giovanni Bognetti, “Il principio di ragionevolezza e la giurisprudenza della Corte Suprema degli Stati Uniti”, in AA.VV., Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale. Riferimenti comparatistici, Milão, 1994, pp. 43ss).
(...).
Projectando estas orientações dogmáticas no caso sub judicio, afigura-se claro que a norma sindicanda não afronta a Constituição na dimensão ora considerada.
Na verdade, o princípio da igualdade não impõe que o conceito de transmissão que recorta a incidência do imposto, nos termos supra referidos, seja absolutamente simétrico ao nível do desenho das situações de isenção que o legislador optou por valorar, como se compreende pela aferição da ratio subjacente ao desagravamento fiscal previsto.
A validade dessa afirmação encontra-se indefectivelmente conexionada com a ratio essendi da própria isenção do imposto em causa que resulta num desvio objectivo à produção dos efeitos decorrentes da verificação do facto tipificado na norma de incidência do imposto, sem a qual, de resto, a própria isenção careceria de fundamento à luz da diferenciação que introduz (cf., Guilherme d’Oliveira Martins, Os benefícios fiscais: Sistema e Regime, Coimbra, 2006, pp. 22 e ss., pp. 23 e ss.).
Quanto a esse aspecto, a decisão recorrida considera que “(...) o desagravamento fiscal estrutural [é] concedido atendendo à natureza empresarial da actividade exercida pelo adquirente para revenda, cujo enquadramento se insere no âmbito da tributação do rendimento e que tem como fim último apenas o de afastar elevados encargos financeiros que, não obstante serem custos dedutíveis para efeitos de determinação do rendimento sujeito a imposto, tenderiam a repercutir-se no preço final da venda dos bens imóveis (Cfr. Reavaliação dos Benefícios Fiscais, Relatório do Grupo de Trabalho criado por Despacho de 1 de Maio de 2005 do Ministro do Estado e das Finanças, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 198, CEF, 2005, pp. 121/122 e J. Silvério Mateus /L. Corvelo de Freitas, Os Impostos sobre o Património. O Imposto do Selo: Anotados e Comentados, Lisboa, Engifisco, 2005, p. 385)”.
Dessa justificação, que aqui se acolhe, resulta explicitada a isenção do imposto enquanto referida às situações de revenda de imóveis adquiridos para essa finalidade no âmbito do “exercício da actividade de comprador de prédios para revenda”, compreendendo-se a razão pela qual o conceito de transmissão aí definido fica aquém do previsto na norma de incidência.
Reside aí o fundamento para o tratamento fiscal diferenciado que é outorgado aos sujeitos passivos do imposto que adquiram, no exercício da sua actividade profissional-empresarial, bens imóveis para revender e os demais.
Importa anotar que, em rigor, a própria recorrente não contesta que a isenção do imposto apenas ocorra relativamente aos imóveis adquiridos para revenda, como quid specificum que autoriza o desagravamento, acabando por insurgir-se contra o facto de a norma exigir a revenda dos imóveis, em sentido técnico-jurídico, com exclusão da mera celebração de contratos-promessa com tradição dos imóveis.
Contudo, ainda que o problema se projecte na esfera dogmática relativa à “igualdade na isenção”, não se afigura difícil concluir pela inexistência de qualquer violação do princípio da igualdade.
Na verdade e nesta óptica, a diferenciação de tratamento entre as situações de “revenda” e as de “celebração de contrato-promessa com tradição” encontra justificação bastante no reconhecimento de que apenas os casos de transmissão onerosa definitiva permitem realizar ou satisfazer a intenção subjacente ao regime destas transmissões em que “o sujeito não paga Sisa no momento da aquisição do bem por este não se lhe destinar” (Diogo Leite de Campos, cit., p. 60).
Ora, só por si, o contrato-promessa, ainda que acompanhado da tradição do imóvel, não tem aptidão jurídica para realizar o pressuposto legal – a transferência de propriedade – que está na base do regime de “transparência fiscal” dos bens adquiridos para revenda, nem a implica forçosamente, razão pela qual não pode dar-se por verificada qualquer violação do princípio da igualdade.
7. Por fim, improcedem também as conclusões da recorrente que sustentam existir violação do princípio da proporcionalidade, do princípio da capacidade contributiva, da justiça material, da proibição do excesso e de uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
Desde logo, de nenhum desses princípios resulta que o legislador esteja constitucionalmente vinculado a proceder a uma delimitação negativa da incidência ou a estabelecer um regime de isenção relativamente à tributação das aquisições de prédios efectuadas com intenção de revenda, pelo que o regime da sujeição desses factos a imposto não colide com nenhum dos mencionados princípios constitucionais.
A não tributação dessa realidade cabe integralmente no plano da discricionariedade normativo-constitutiva do legislador sendo explicada por razões localizadas no plano da extra-fiscalidade.
Por outro lado, a própria tributação dessas aquisições acaba igualmente por ser relevada em sede de determinação do rendimento tributável dos respectivos sujeitos passivos enquanto custos fiscalmente aceites, enquanto expressão negativa da sua capacidade contributiva, razão pela qual, admitindo-se com esse fundamento a relevância dos valores pagos em sede de imposto de sisa, se encontram plenamente acautelados e realizados os princípios constitucionais invocados pela recorrente.
C – Decisão
8 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça fixada em 25 (vinte) UCs..
Lisboa, 17.06.2010
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Catarina Sarmento e Castro
Rui Manuel Moura Ramos