Imprimir acórdão
Processo n.º 344/2010
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vitor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O relator proferiu a seguinte decisão sumária:
«1. A., SA., e Outros, vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Fevereiro de 2010, que negou a revista, confirmando, embora com diferente fundamentação, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que declarara a nulidade dos contratos em causa nos autos e a improcedência dos pedidos reconvencionais.
Não obstante a formulação genérica utilizada no requerimento de interposição quanto à identificação dos recorrentes – “A.… e Outros, recorrentes …” –, entende-se que o presente recurso é apenas interposto por A., SA., que são representadas pelo advogado subscritor do requerimento e foram as únicas recorrentes no recurso de revista, tendo ficado vencidas.
No requerimento de interposição de recurso invocam as recorrentes que:
“ (…) que as normas dos artigos 4.º da Concordata da Santa Sé com a República Portuguesa, celebrada em 1940, do Decreto da Conferência Episcopal Portuguesa e do artigo 35.º dos Estatutos da Recorrida Colégio B. na interpretação e aplicação conjunta que delas foi feita no acórdão recorrido violam os princípios constitucionais do Estado de Direito, da Igualdade, da tipicidade dos actos normativos, Reserva de Lei, da Segurança Jurídica e da Protecção da confiança dos cidadãos na justiça (Acesso à Justiça), questão de constitucionalidade que a recorrente suscitou nas Alegações de Recurso que interpôs do acórdão da Relação de Guimarães de 04.06.2009 (em especial nos itens 98 a 103 daquele articulado e conclusões XIX, XX e XXI)” e
“ (…) que, ainda que independentemente de se considerar inconstitucional a interpretação das citadas normas, a sua aplicação pelo Supremo Tribunal de Justiça viola aquele mesmo princípio constitucional do Estado de Direito (incluído o dever de apreciação/decisão judicial das questões/litígios e da fundamentação lógica daquelas decisões de acordo com a Lei) e o especifico dever de fundamentação das decisões judiciais dos artigos 204.º e 205.º da C.R.P. questão de constitucionalidade que a recorrente igualmente suscitou nas Alegações de Recurso que interpôs do acórdão da Relação de Guimarães de 04.06.2009 (em especial nos itens 98 a 103 daquele articulado e conclusões XIX, XX e XXI).”
2. O recurso foi admitido no tribunal a quo, mas não pode prosseguir, o que imediatamente se decide, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC) (cfr. artigo 76.º, n.º 3, da LTC), por não ocorrerem os pressupostos do tipo de recurso em causa, e, quanto à segunda questão, pelo facto de não ter objecto idóneo para recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade tal como a Constituição (artigo 280.º da CRP) e a LTC (artigo 70.º) o configuram.
3. Com efeito, o controlo de constitucionalidade confiado ao Tribunal Constitucional é um controlo da constitucionalidade de normas jurídicas, e não um contencioso de decisões, designadamente de decisões judiciais a que sejam imputadas ponderações violadoras da Constituição.
Ora, no que toca à segunda questão, não pretendem os recorrentes a apreciação da constitucionalidade das normas aplicadas pela decisão recorrida, mas antes, independentemente de se considerar inconstitucional a interpretação das citadas normas, o que questionam é a aplicação dessas mesmas normas de direito ordinário ao caso concreto, que entendem violar os princípios constitucionais do Estado de Direito (incluído o dever de apreciação/decisão judicial das questões/litígios e da fundamentação lógica daquelas decisões de acordo com a Lei) e o especifico dever de fundamentação das decisões judiciais dos artigos 204.º e 205.º. Não há no enunciado do objecto (material) do recurso interposto, que as recorrentes têm o ónus de definir no requerimento de interposição (artigo 75.º-A da LTC) e que acima se transcreveu, a sujeição de uma norma (ou normas) ou de um critério normativo à verificação de constitucionalidade. O que se apresenta ao Tribunal para objecto de confronto com os princípios constitucionais é a decisão judicial em si mesma. É a “aplicação das normas” de direito infraconstitucional pela decisão recorrida e não qualquer critério normativo desse acto diferenciável que se considera violador da Constituição.
4. No que respeita à apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 4.º da Concordata da Santa Sé com a República Portuguesa, celebrada em 1940, do Decreto da Conferência Episcopal Portuguesa e do artigo 35.º dos Estatutos da Recorrida Colégio B., na interpretação e aplicação conjunta que delas foi feita no acórdão recorrido, e independentemente de saber se os decretos da Conferência Episcopal e as disposições estatutárias em causa integram o conceito de norma para efeitos de recurso de constitucionalidade (questão que não importa averiguar face ao que se vai decidir), importa reter o que sobre esta matéria as recorrentes invocaram durante o processo.
Os pontos do texto das alegações e das respectivas conclusões do recurso de revista indicados pelas recorrentes como relevantes para a questão em apreço são do seguinte teor:
“98. Com efeito, a Constituição da República Portuguesa define o que são actos normativos, dispondo que: [reproduz-se o artigo 112º da Constituição]
99. Nenhuma das normas constantes dos Estatutos do Colégio Autor – ou de qualquer Pacto constitutivo de outra pessoa Colectiva – aparecem qualificados no dispositivo constitucional como acto normativo.
100. Bem ao invés, o n.º 5 do citado normativo constitucional dispõe expressamente que nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
101. Este normativo constitui o enunciado constitucional do princípio da tipicidade ou do numerus clausus das fontes, garantido que só são fontes de direito as normas constitucionalmente previstas ou legitimadas.
102. Os Estatutos do Colégio Autor e os Decretos da Conferência Episcopal Portuguesa não são, por isso, actos normativos e muito menos normas de carácter imperativo (cfr. ainda art. 1.º do CCiv).
103. Ou seja, a interpretação (constante do Acórdão Recorrido) de que “as disposições estatutárias relativas à necessidade de autorização são actos normativos com eficácia externa é claramente contrária e violadora dos princípio basilares do nosso Estado de Direito, designadamente os princípios constitucionais da tipicidade dos actos normativos, da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos.
(…)
XIX. Ora, as disposições estatutárias não são normas jurídicas e muito menos se tratam das “normas jurídicas imperativas” a que se refere o art. 294.º do CCiv..
XX. Os Estatutos do Colégio Autor e os Decretos da Conferência Episcopal Portuguesa não são, à face da nossa Constituição, actos normativos e muito menos normas de carácter imperativo.
XXI. Ou seja, a interpretação (constante do Acórdão Recorrido) de que ‘as disposições estatutárias relativas à necessidade de autorização são actos normativos com eficácia externa é claramente contrária e violadora dos princípio basilares do nosso Estados de Direito, designadamente os princípios constitucionais da tipicidade dos actos normativos, da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos.
(…).”
Conforme resulta das conclusões que antecedem e do texto das alegações, não suscitaram as recorrentes qualquer questão de constitucionalidade referente à norma do artigo IV da Concordata da Santa Sé com a República Portuguesa, celebrada em 1940, e do Decreto da Conferência Episcopal Portuguesa, nem da interpretação conjunta daquela norma da Concordata com o Decreto da Conferência Episcopal Portuguesa e o artigo 35.º dos Estatutos da Recorrida Colégio B..
O que os recorrentes invocaram foi que os Estatutos do Colégio Autor e os Decretos da Conferência Episcopal não são, face à nossa Constituição, actos normativos e muito menos de carácter imperativo e que a interpretação (constante do Acórdão Recorrido) de que as disposições estatutárias relativas à necessidade de autorização são actos normativos com eficácia externa é claramente contrária e violadora dos princípio basilares do nosso Estado de Direito, designadamente os princípios constitucionais da tipicidade dos actos normativos, da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, mas sem qualquer referência à constitucionalidade das normas aplicadas subjacentes a uma tal interpretação.
Ora, a “normatividade e vinculatividade” das disposições estatutárias de que falam as recorrentes, na perspectiva do acórdão recorrido, não resulta directamente delas próprias, mas das normas de direito convencional e do direito civil português que lhes conferem esse estatuto.
Sendo o Colégio B. uma fundação pública de direito canónico e, simultaneamente, uma instituição particular de solidariedade social, entendeu-se na decisão recorrida que esta instituição se regia pelas normas gerais para a Regulação das Associações de Fiéis, pelo Código de Direito Canónico de 1983 (CDC) e pela lei civil portuguesa, incluindo o Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social. Mais se entendeu que os seus bens são eclesiásticos e estão sob a gestão da Igreja, regendo-se a sua disposição pelo direito canónico e pelos estatutos da instituição (cfr. cânones 113.º, § 2, 115.º, § 3, 118.º e 1257.º, § 1, do CDC), e que o poder jurisdicional do Papa, previsto no cânone 1273.º do CDC, na interpretação que se faz deste preceito, «integra o poder de exercer os actos de administração ordinária e extraordinária que competem a outros sobre bens eclesiásticos, qualquer que seja a sua natureza e o lugar em que se encontrem, com a particularidade de que quando assume o exercício deste poder exclui, em razão da supremacia, as faculdades do administrador inferior».
Foi em consonância com estas disposições e com os decretos da Conferência Episcopal, que se enquadraram e interpretaram os estatutos do Colégio B., tidos como normas corporativas válidas como fonte de direito na ordem jurídica portuguesa, por força do artigo 1.º do Código Civil, e entendeu-se que a transacção em causa, por constituir um acto de “administração extraordinária”, para ser válida teria que ser licenciada pela Santa Sé. Por outro lado, acrescentou-se que se chegaria a idêntica conclusão “mesmo que o não o determinassem os Estatutos do A. [Estatutos que mais não são do que a reprodução da lei canónica, admitida pela lei portuguesa pela força da concordata], porque, de acordo com o valor desses actos de “administração extraordinária”, nunca o A. os poderia praticar, à face da lei canónica e do determinado pelo referido Decreto da CEP, nem, por outro lado, o podia fazer, em seu nome, o Presidente do Conselho de Administração ou ele e outro membro do Conselho [Artigo 27.º, 1, dos Estatutos]”.
Mas, o aresto recorrido, após concluir que face à lei canónica o B. não podia outorgar no contrato em causa, chegou a idêntica conclusão face à aplicação da lei portuguesa, por aplicação dos artigos III e IV da Concordata de 1940, celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa, que julgou ser a aplicável ao caso dos autos, e as normas do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, que, nas disposições especiais para as instituições da igreja católica, reconhece os estatutos das instituições canonicamente erectas, não carecendo de escritura pública, bastando serem aprovados e autenticados pela Conferência Episcopal (cfr. artigos 44.º a 46.º).
É neste contexto normativo que se compreende a afirmação contida na decisão recorrida de que «… não há qualquer violação do artigo 112.º da CRP – pois a inexistência dos negócios jurídicos referidos nos autos fundamenta-se nas disposições legais acima mencionadas».
Deste modo, além de as recorrentes não terem suscitado adequadamente durante o processo a questão de constitucionalidade, como antes se referiu, o que por si só obstaria ao conhecimento do recurso, também não indicam no requerimento de interposição as normas do direito civil português que, conjuntamente com as disposições da concordata conferiram normatividade aos Decretos da Conferência Episcopal e às disposições estatutárias, a saber, os artigos 44.º a 46.º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, e, bem assim, o artigo 1.º do Código Civil.
4. Em face do exposto, decide-se, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas a cargo das recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 7 unidades de conta.»
2. As recorrentes reclamam desta decisão, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembr0 (LTC), alegando, em síntese:
– Que, ao aplicarem as normas constantes do Decreto da Conferência Episcopal Portuguesa e do artigo 35.º dos Estatutos do Colégio B., as decisões do Tribunal da Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça violaram, entre outros, o disposto nos artigos 8.º, n.º 2 e 119.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa;
– Que essa inconstitucionalidade foi invocada nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça;
– Que ao interpretarem as normas do referido Decreto e Estatutos como limitando a livre transmissão da propriedade do Colégio as decisões dos tribunais da causa violaram os mais elementares regras de direito, designadamente os princípios da separação entre o Estado e a Igreja, o princípio da hierarquia das normas jurídicas e ainda o princípio da reserva de Lei ou de Decreto-Lei, inconstitucionalidades que também foram invocadas perante o Supremo Tribunal de Justiça;
– Que as decisões recorridas, designadamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, fundando a sua decisão na imperatividade daquelas normas que não constituem fonte de direito aplicável pelos tribunais comuns portugueses, violaram o dever de fundamentação imposto pelo artigo 205.º da Constituição.
Os recorridos pugnam pelo indeferimento da reclamação, salientando que os recorrentes invocam a inconstitucionalidade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça e não de quaisquer normas jurídicas concretamente aplicadas.
3. A reclamação não logra infirmar os fundamentos da decisão reclamada.
Efectivamente, como na decisão sumária se refere, as reclamantes não suscitaram perante o Supremo Tribunal de Justiça a inconstitucionalidade de quaisquer normas jurídicas. O que alegaram foi que os Estatutos do Colégio B. e os Decretos da Conferência Episcopal Portuguesa não são, face à Constituição, actos normativos e muito menos normas de carácter imperativo, violando o entendimento contrário os princípios constitucionais da tipicidade dos actos normativos, da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos. A violação de tais princípios constitucionais é directamente imputada às decisões judiciais, que atribuíram força normativa a actos que o não têm (no entender das recorrentes) face à Constituição da República. É o reconhecimento de normatividade e imperatividade a tais actos eclesiásticos pelos tribunais da causa que, no entender das recorrentes, viola a Constituição. Não é questionada a constitucionalidade de qualquer norma – que as recorrentes afirmam não existir – que atribua a tais actos essa força normativa.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional só pode fiscalizar a observância do princípio da tipicidade dos actos normativos se essa violação foi imputada a actos do poder normativo público e não quando resulte da errada consideração por parte da decisão judicial, de que determinados actos de uma pessoa colectiva estavam sujeitos a autorizações externas por força de disposições estatutárias pelas quais essa pessoa se regula.
Finalmente, a violação do artigo 205.º da Constituição é também imputado aos termos da concreta fundamentação adoptada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e não a quaisquer normas relativas à fundamentação das decisões judiciais de que esse acórdão tenha feito aplicação.
4. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar as recorrentes nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 11 de Outubro de 2010.- Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.