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Processo nº 782/09
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Beja, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão daquele Tribunal de 4 de Junho de 2009.
2. A decisão recorrida julgou “inconstitucional por ofensa do princípio do Estado de direito democrático, enquanto garante da efectivação de direitos, liberdades e garantias (arts. 2º e 9ºb) da CRP), do princípio da proporcionalidade (art. 18º nº.2), e do direito à tutela jurisdicional efectiva (art. 20º), a norma do nº.1 do art. 359º do CPP resultante da redacção introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto”, com a seguinte fundamentação:
«Como resulta da acta da anterior sessão de audiência de julgamento, foi comunicada ao MP, ao Assistente e ao Arguido, nos termos do disposto no art. 359º do CPP, uma alteração substancial de factos dos quais resulta a imputação a este último de um crime diverso – art. 1º f) do mesmo diploma legal.
Em síntese, da prova produzida resultaram factos subsumíveis no tipo de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, sendo que ao arguido vinha imputada a prática de um crime de condução perigosa.
O MP e o Assistente manifestaram a sua concordância.
O Arguido opôs-se.
Uma vez que os novos factos apurados se referem, no essencial, à intenção do arguido, não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo. Pelo que, em face do disposto no nº.1 do referido art. 359º, os autos deveriam prosseguir, sem que ao Tribunal fosse possível ter em consideração os novos factos para efeitos de condenação.
Entendo porém que tal norma ofende o princípio do Estado de direito democrático, enquanto garante da efectivação de direitos, liberdades e garantias (arts. 2º e 9ºb) da CRP), o princípio da proporcionalidade (art. 18º nº.2) e o direito à tutela jurisdicional efectiva (art. 20º), pelas razões que passo a expor:
A função do direito penal é a tutela subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal, entendendo-se bem jurídico como «a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso» - Figueiredo Dias, in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág.43.
É no sistema social como um todo que reside a fonte legitimadora e produtora da ordem legal dos bens jurídicos. E a concretização dos bens jurídicos dignos de tutela penal só pode ser alcançada através da ordenação axiológica jurídico-constitucional. Ou seja, um bem jurídico político-criminalmente tutelável só existe quando se encontre reflectido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido, o que legitima o direito de punir estatal como forma de preservação das condições fundamentais da mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade (arts. 2º e 9º b) da CRP). Assim se justifica a intervenção do Estado na restrição de direitos, liberdades e garantias na estrita medida do necessário à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18º nº.2 da CRP) – ob. cit. págs.47 e 54.
Entre o direito penal e o processual penal existe uma relação de instrumentalidade necessária, sendo este uma sequência de actos juridicamente preordenados e praticados por certas pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão sobre se foi praticado algum crime e, em caso afirmativo, sobre as respectivas consequências jurídicas e sua justa aplicação (definição de Figueiredo Dias, adoptada por Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, Verbo, Volume I, 3ª edição, pág.15).
Todavia, não quer isto dizer que o processo penal não tenha interesses próprios a tutelar. A verificação da ocorrência de um crime e a aplicação da correspondente sanção não se pode fazer com recurso a quaisquer meios. Razões de segurança implicam por vezes a renúncia à descoberta da verdade. Disso são exemplo as regras relativas às proibições de prova, proibição da reformatio in pejus, non bis in idem, prescrição do procedimento. Ou seja, a verdade só pode ser procurada «de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se vêem envolvidas» ob. cit. pág. 25.
Também as normas relativas à fixação do objecto, cuja fonte é o nº.5 do art. 32º da CRP (estrutura acusatória do processo), visam primacialmente as garantias de defesa do arguido e o direito deste ao contraditório.
Em obediência a tal comando constitucional, a autorização legislativa concedida ao Governo para aprovar o Código de Processo Penal (Lei nº. 43/86, de 26 de Setembro), dispunha no seu art. 2º: «parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os actos do processo e incrementação da igualdade material de “armas” no processo; estabelecimento da máxima acusatoriedade do processo penal, temperado com o princípio da investigação (…)».
Desde então, e até hoje, temos que o paradigma do CPP, na fase do julgamento, consiste num processo de estrutura acusatória temperado pelo princípio da investigação judicial, de que a expressão máxima é o art. 340º.
Ora, o princípio da investigação traduz o «poder-dever que ao tribunal incumbe de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e defesa, o facto sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua decisão» ob.cit.pág.73.
Quer isto dizer que, definido o objecto do processo e do julgamento pela acusação, o tribunal deve procurar a reconstrução histórica dos factos, deve procurar por todos os meios processualmente admissíveis alcançar a verdade histórica (verdade material), independentemente ou para além da contribuição da acusação e da defesa, não se bastando assim com uma verdade meramente formal – ob.cit.pág.78, 79.
Ora, ao atribuir ao julgador tal poder-dever, o legislador previu que daí poderia resultar o apuramento de factos, uma reconstrução histórica diferente daquela que consta na acusação ou na pronúncia. E esses novos factos tanto podem resultar em benefício do arguido (ex. causas de justificação), como podem implicar que este seja confrontado com uma realidade diversa (imputação do mesmo tipo de crime mas numa modalidade mais gravosa ou imputação de um crime diverso).
Neste último caso, estamos perante uma alteração substancial dos factos – art. 1º f) do CPP.
Ora, se no primeiro caso não existem quaisquer óbices à consideração de tais factos, uma vez que o fim do processo penal (a realização da Justiça) é atingido na sua plenitude, no segundo caso há que encontrar uma solução equilibrada que, por um lado, garanta a tutela efectiva do bem jurídico violado e, por outro, assegure as garantias de defesa do arguido, mormente o respeito pelo contraditório.
Deixando de parte as situações de factos autonomizáveis, que não levantam dificuldades, quando de factos não autonomizáveis se tratou esse equilíbrio foi encontrado pela doutrina e pela jurisprudência, com o “aval” do Tribunal Constitucional, ao abrigo da anterior redacção do art. 359º do CPP – Cf. Acórdão do TC n.º 237/2007, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Maio de 2007.
Efectivamente, a extinção da instância e a comunicação dos novos factos ao MP para que relativamente a eles proceda assegura plenamente tanto o direito do arguido a um processo justo e equitativo como a tutela efectiva do bem jurídico violado.
Sucede que tal equilíbrio foi quebrado com a solução adoptada pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto. E isto acontece especialmente nos casos em que da alteração dos factos resulta a imputação de um crime diverso e que tutela um bem jurídico diferente daquele cuja imputação foi feita ao arguido na acusação ou na pronúncia, como é o caso dos autos.
Escreveu-se a propósito na exposição de motivos da Proposta de Lei nº. 109/X (Revisão do CPP), «No âmbito da alteração substancial de factos, introduz-se a distinção entre factos novos autonomizáveis e não autonomizáveis, estipulando-se que só os primeiros originam a abertura de novo processo (artigo 359.º). Trata-se de uma decorrência dos princípios non bis in idem e do acusatório, que impõem, no caso de factos novos não autonomizáveis, a continuação do processo sem alteração do respectivo objecto».
Transpondo para o caso concreto, tendo sido produzida toda a prova, haveria lugar à prolação de sentença que, adiante-se, seria necessariamente absolutória dado que não resultou provado nem o dolo de perigo, nem a negligência que o tipo de crime previsto no art. 291º do Cód.Penal exige. Quer isto dizer que a conduta criminosa do arguido, que tentou atropelar o assistente e só não o conseguiu por aquele se ter refugiado a tempo de evitar ser colhido pelo automóvel, escaparia à necessária e adequada reacção da ordem jurídica e, correlativamente, ficaria desprovido de tutela penal o direito fundamental do Assistente à inviolabilidade da sua integridade física (art. 25º da CRP), enquanto titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Assim, e por via de tal alteração, entendeu o legislador sobrevalorizar os direitos do arguido, restringindo desnecessária e injustificadamente o direito daqueles que vêm violados os seus direitos fundamentais à protecção e tutela efectiva desses mesmos direitos, o que viola claramente o disposto no art. 18º nº.2 da CRP.
Paralelamente, acabou por limitar o poder de investigação do juiz, que agora apenas poderá fazer uso dos mecanismos legais ao seu dispor para obter a comprovação dos factos descritos na acusação ou na contestação, sem se preocupar, porque de tarefa inútil se trata, com a reconstrução histórica dos factos, a procura da verdade material, que não raras vezes é bem diferente do relato feito quer pelo MP, quer pelo arguido. Aliás, admitir que um arguido concorde com uma alteração substancial de factos quando daí resulte a imputação de um crime diverso (o que, salvo nos caso de concurso aparente de crimes, conduzirá à absolvição daquele pelo qual está acusado) ou a agravação do limite máximo da pena aplicável (daí podendo resultar a condenação em medida superior ou em pena de diferente e mais gravosa natureza), é algo que não tem qualquer reflexo no dia-a-dia dos tribunais. Já ao abrigo da anterior redacção, tal concordância era uma realidade palpável, dado que o arguido poderia ter interesse em não ter de enfrentar ab initio um novo processo, preferindo aproveitar toda a prova produzida e, porventura, requerer a produção suplementar de prova relativamente aos novos factos.
A restrição de direitos liberdades e garantias como medida de salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos só pode ocorrer quando não é possível a adopção de medidas de equilíbrio que assegure tanto uns como outros. Ora, repita-se, tal equilíbrio é possível e foi alcançado ao abrigo da anterior redacção do art. 359º do CPP.
Mas, acrescente-se, a solução adoptada pelo legislador na Lei 48/2007, de 29 de Agosto, quando ainda estava em preparação e discussão, não mereceu desde logo o consenso de todos os membros da Unidade de Missão para a Reforma Penal (UMRP). Com efeito, estando disponíveis no sítio do Ministério da Justiça as actas das reuniões, pode-se constatar na Acta nº. 25 que a redacção proposta para o art. 359º do CPP foi aceite sem qualquer objecção na parte em que consagrou a doutrina dos factos cindíveis ou autonomizáveis e incindíveis ou não autonomizáveis, tendo como limite o non bis in idem. Porém, no que respeita aos factos não autonomizáveis, foi a seguinte a posição do Prof. Doutor Paulo de Sousa Mendes: (…)
Já com a Lei 48/2007 em vigor, a aplicação do regime novo do art. 359º do CPP foi afastada, com fundamento na sua inconstitucionalidade, pelo Tribunal Colectivo do Círculo Judicial de Faro, no âmbito do Proc.Nº. 81/07.6GCFAR, em que estava em causa precisamente o conhecimento de factos não autonomizáveis, sem que tenha havido concordância do arguido na continuação do julgamento pelos factos novos.
(…)
Interposto pelo MP recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, veio a ser proferido juízo de «não inconstitucionalidade da norma do artigo 359.º do Código e Processo Penal, na redacção resultante da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, interpretada no sentido de que, perante uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, resultante de factos novos que não sejam autonomizáveis em relação ao objecto do processo – opondo-se o arguido à continuação do julgamento pelos novos factos –, o tribunal não pode proferir decisão de extinção da instância em curso e determinar a comunicação ao Ministério Público para que este proceda pela totalidade dos factos» - Acórdão N.º226/2008, in DR 140 II Série de 22-07-2008.
Ainda assim, e com o devido respeito, entendo que tal juízo não deverá vingar, pelas seguintes razões: (…)
Voltando ao caso dos autos (crime contra a integridade física versus crime contra a segurança das comunicações) não está em causa o apuramento de “circunstâncias modificativas especiais”, nem o prosseguimento dos autos permitiria considerar que “o bem jurídico nuclear susceptível de justificar a incriminação encontra ainda o mínimo de protecção penal, sendo apenas escamoteados alguns concretos factores de intensificação dessa protecção”. Isto porque estamos perante bens jurídicos distintos, com uma dimensão normativa e valorativa também ela distinta.
Por outro lado, a afirmação constante na Exposição de Motivos de que a solução dada pelo novo 359º do CPP «trata-se de uma decorrência dos princípios non bis in idem e do acusatório, que impõem, no caso de factos novos não autonomizáveis, a continuação do processo sem alteração do respectivo objecto» é contrariada pelo juízo formulado no Acórdão do TC n.º 237/2007, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Maio de 2007, no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 359.º - redacção anterior - enquanto interpretada no sentido de permitir, nas situações em que os novos factos não eram autonomizáveis em relação ao objecto do processo, a absolvição da instância e a comunicação ao Ministério Público para que este procedesse pela totalidade dos factos».
3. Foi então interposto o presente recurso, mediante requerimento onde se lê o seguinte:
«O recurso é restrito à matéria de inconstitucionalidade, porquanto na decisão recorrida se recusou a aplicação do art. 359º, nº1 do Cód. Processo Penal, na redacção conferida pela Lei nº48/2007, de 29/8, julgando-o inconstitucional, por violação do princípio do Estado de direito democrático, enquanto garante da efectivação de direitos, liberdades e garantias, previsto nos arts. 2º e 9º da Constituição da República Portuguesa; do princípio da proporcionalidade, previsto no art. 18º da Constituição da República Portuguesa; e do direito à tutela jurisdicional efectiva, previsto no art. 20º da Constituição da República Portuguesa».
4. Notificado, o Ministério Público apresentou as seguintes alegações:
«1. Delimitação do objecto do recurso.
1.1. O Ministério Público deduziu acusação contra A. imputando-lhe a prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291º, nº 1, alínea b) do Código Penal, com pena de prisão até três anos.
Na segunda sessão da audiência de julgamento, após a produção de prova, o Senhor Juiz proferiu o seguinte despacho:
“Produzida a prova, resulta no meu entender e por um lado, que não ficaram demonstrados os factos em que a acusação se baseia para imputar no arguido a prática de um crime de condução perigosa de veículo automóvel.
Contrariamente ao dolo de perigo descrito na acusação, o que resulta da prova produzida é que o arguido agiu antes com dolo de resultado, ou seja, com intenção de atingir a integridade física do assistente B., resultado esse que não se verificou por motivos completamente alheios à sua vontade.
Face à idoneidade e particular perigosidade do meio utilizado, considero estarmos antes perante a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada (arts. 146.º, 132.º, n.º 2 al.g) e 22.º e 23.º, todos do C. Penal).
Tratando-se assim da imputação de um crime diverso, tal consubstancia uma alteração substancial de factos (art.º 1.º, al. f) do C. P. Penal), factos estes que não são autonomizáveis que, por isso, dependem da concordância do M.º P.º, do arguido e do assistente para a continuação do julgamento pelos novos factos (art.º 359.º, n.º 3 do C. P. Penal).”
A referência ao artigo 146º, deve-se a mero lapso uma vez que o crime de ofensa à integridade física qualificada, está previsto no artigo 145º.
(…)
1.2. Posteriormente o Senhor Juiz profere decisão em que afirma.
“Uma vez que os novos factos apurados se referem, no essencial, à intenção do arguido, não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo. Pelo que, em face do disposto no nº 1 do referido artº 359º, os autos deveriam prosseguir, sem que ao Tribunal fosse possível ter em consideração os novos factos para efeitos de condenação.
Entendo porém que tal norma ofende o princípio do Estado de direito democrático, enquanto garante da efectivação de direitos, liberdades e garantias (artº. 2º e 9º b) da CRP), o princípio da proporcionalidade (artº. 18º nº 2) e o direito à tutela jurisdicional efectiva (artº. 20º), pelas razões que passo a expor:”
Adiantados todos os argumentos pertinentes para concluir pela violação daqueles princípios constitucionais, o Senhor Juiz acaba recusando a aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade, da norma do nº 1 do artigo 359º do CPP, na redacção resultante da alteração introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto e, repristinando a anterior redacção do preceito, declarou extinta a instância e ordenou que, após o trânsito, se extraísse e remetesse ao Ministério Público certidão de todo o processado.
É desta decisão que, pelo Ministério Público, vem interposto recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional.
Convém desde já referir que mais adiante (2.9) concretizaremos melhor o objecto do recurso.
2. Apreciação do mérito do recurso
2.1. O artigo 359.º do CPP, antes da alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, tinha a seguinte redacção:
(…)
2.2. O Tribunal Constitucional pelo Acórdão nº 226/2008 já apreciou a constitucionalidade da norma dos n.ºs 1 e 2, do artigo 359.º, na actual redacção.
Nesse processo o objecto do recurso foi delimitado da seguinte forma:
“Ou seja, o que verdadeiramente se questiona é a imposição de proferir decisão de mérito (de absolvição ou de condenação), vinculada aos factos descritos na acusação ou na pronúncia, com definitiva desconsideração do efeito agravativo da responsabilidade criminal que resultaria dos novos factos provados (recte indiciados) em fase de julgamento, quando estes não sejam autonomizáveis em relação ao objecto do processo.”
Assim, delimitado o objecto do recurso, o Tribunal acabou por concluir pela não inconstitucionalidade da norma.
Serão os fundamentos constantes daquele aresto transponíveis para o caso dos autos-
A resposta parece-nos negativa, pelas razões que seguidamente adiantaremos.
2.3. Os factos relevantes naquele processo eram os seguintes:
(…)
Ora, no caso dos presentes autos, o arguido estava acusado da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário (artigo 291º, nº 1, alínea b) do Código Penal). Segundo a decisão de fls. 144, não ficaram demonstrados os factos em que baseava a acusação para imputar ao arguido o crime previsto naquele artigo 291.º, n.º 1, alínea b), porque contrariamente ao dolo de perigo descrito na acusação (“o arguido sabendo que invadia o passeio com o automóvel, fê-lo com grande velocidade e sem procurar evitar o peão, sabendo que punha em risco a integridade física deste, quase lhe embatendo com o automóvel”), o que resultava da prova produzida era que o arguido tinha agido com dolo de resultado, ou seja com intenção de atingir a integridade física do assistente, o que só não se tinha verificado por motivos alheios à sua vontade.
Face a esta alteração, o crime em causa seria o de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 145.º, 132.º, n.º 2, alínea g), 22.º e 23.º.
Ou seja, os factos objectivos constantes da acusação (o arguido, que conduzia um veículo automóvel, invadiu o passeio e só não atropelou o assistente por este se ter afastado) verificavam-se, o que apenas não se verificava era o elemento subjectivo daquela infracção.
É certo que a alteração quanto ao elemento subjectivo leva a uma alteração da qualificação.
Parece, pois, que não estamos perante uma simples alteração de qualificação jurídica dos factos, caso equiparável à alteração não substancial dos factos (artigo 358.º, n.º 3, do CPP).
Mas também não estamos perante uma típica alteração substancial dos factos porque em relação a estes, objectivamente considerados, não há qualquer alteração.
E é esta especificidade que faz com que não sejam transponíveis para o caso dos autos a argumentação expendida no Acórdão n.º 226/2008.
(…)
2.4. Tendo sido a conclusão pela não ausência de punição, relevante para o juízo de não inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal Constitucional, vejamos concretamente a situação dos presentes autos.
Se o Senhor Juiz tivesse de proferir sentença ela “seria necessariamente absolutória dado que não resultou provado nem o dolo de perigo nem a negligência que o tipo de crime previsto no artigo 291.º do Código Penal exige” (como diz expressamente aquele Magistrado).
Perante esta decisão poderia, posteriormente, o Ministério Público, com base em certidão extraída desse processo, accionar criminalmente o arguido pelo crime de ofensas à integridade física na forma tentada, sem que dessa forma fosse violado o princípio do “ne bis in iden”-
O que estaria abrangido pelo caso julgado absolutório que se havia formado, uma vez que os factos considerados provados seriam os mesmos, apenas se alterando o elemento subjectivo da infracção-
O recurso à distinção dos bens jurídicos tutelados pelos respectivos tipos legais seria suficiente para admitir um segundo julgamento-
Entramos num campo de dúvidas de não fácil superação, mesmo recorrendo à doutrina e à jurisprudência.
Na sua declaração de voto a Exm.ª Senhora Conselheira Lúcia Amaral, diz o seguinte:
“É certo que a pergunta que a decisão recorrida colocava ao tribunal – por vaga e imprecisa que fosse a sua formulação – dizia respeito ao deficit de protecção de direitos e liberdades pessoais. Pretendia-se saber, afinal, se a norma processual em juízo assegurava suficientemente a protecção necessária de bens jurídicos, constitucionalmente tutelados”.
Ora, face à dúvidas de que anteriormente demos conta – dúvidas que o Tribunal Constitucional, neste momento, não tem, nem pode superar – a resposta à dúvida da Exm.ª Senhora Conselheira, só pode ser esta: a interpretação normativa em causa não assegura, suficientemente, a protecção necessária de bens jurídicos constitucionalmente tutelados.
Entendemos, pois, que a norma é inconstitucional.
As razões dessa inconstitucionalidade, ou seja, a violação do princípio do Estado de direito democrático enquanto garante da efectivação de direitos liberdade e garantias, do princípio da proporcionalidade e do direito à tutela jurisdicional efectiva (artigos 2º e 9º, alínea b), artigo 18º, nº 2, e artigo 20º, da Constituição, respectivamente), vêm expressas e são aprofundadamente referidas na decisão recorrida. Concordando inteiramente com o que aí se diz, quanto a este ponto, remetemos para a fundamentação constante dessa decisão.
2.5. A conclusão pela inconstitucionalidade da norma, parece-nos que sairá reforçada se se pensar em eventuais situações que podem ocorrer.
(…)
2.7. A relação ou equiparação entre uma alteração da qualificação jurídica e alteração de factos, nunca foi isenta de polémica.
Bastará recordar o ocorrido nesta matéria, no que diz respeito à simples alteração de qualificação.
Antes da edição da Lei nº 59/98, esta questão da alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia foi objecto de diversas posições quer na doutrina quer na jurisprudência.
Essa divergência jurisprudencial originou o “Assento nº 2/93 (DR, I-A, de 10 de Março de 1993) segundo o qual não constituía alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convocação) ainda que se traduzisse na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.
No próprio processo em que foi tirado o “Assento” houve recurso para o Tribunal Constitucional que pelo acórdão nº 279/95, julgou inconstitucional as normas na interpretação dada pelo “Assento” mas tão só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se previsse que o arguido fosse prevenido da nova qualificação e se lhe desse, quanto a ela, oportunidade de defesa.
Este acórdão veio, no fundo, confirmar o entendimento do Tribunal sobre esta matéria e já anteriormente expresso no acórdão nº 173/92 que apreciou a constitucionalidade de uma norma do Código de Justiça Militar.
Após o Acórdão nº 279/95, foram proferidos outros, o que levou o Ministério Público a requerer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral. O acórdão que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, foi o Acórdão nº 445/97.
Os acórdãos nºs 518/98 e 519/98 fixaram o sentido da declaração de inconstitucionalidade constante do acórdão nº 445/97.
Posteriormente (15/12/99) o STJ no processo em que tinha sido tirado o “Assento” nº 2/93 e sido proferido acórdão deste Tribunal (o nº 279/95) veio, em cumprimento do decidido por este Tribunal, reformar o anterior acórdão (o nº 2/93) proferindo o “Assento nº 3/2000 (DR, I-A, de 11/2/2000) do seguinte teor:
“Na vigência do regime dos Código de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação e da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa...”.
2.8. No caso que por ora nos ocupa, o Senhor Juiz entendeu que a alteração do elemento subjectivo que levava a uma diferente qualificação, devia ser considerado como alteração substancial.
Embora o Tribunal Constitucional tenha de aceitar tal interpretação do direito ordinário, não podemos deixar de dizer que ela não é a única possível, nem, provavelmente, a única constitucionalmente aceitável.
Bastará recordar que o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 450/2007, não julgou inconstitucional o conjunto normativo integrado pela alínea f), do n.º 1, do artigo 1.º e pelos artigos 358.º e 359.º do CPP (na redacção anterior à Lei n.º 48/2007) na interpretação que qualificava como não substancial a alteração dos factos relativos aos elementos de factualidade típica e à intenção dolosa do agente.
É evidente que se nos presentes autos se tivesse qualificado a alteração como não substancial, não faria sentido a questão da constitucionalidade que temos vindo a tratar. Poderia era questionar-se a constitucionalidade dessa qualificação. A este respeito diremos que decorre da jurisprudência do Tribunal Constitucional que o decisivo para aferir da compatibilidade de uma determinada interpretação das normas pertinentes nesta matéria, com a Constituição, é apenas a questão de saber se essa interpretação impede ou dificulta uma defesa eficaz do arguido, sendo, exclusivamente, as garantias de defesa no processo penal, que podem estar em causa.
Voltando aos presentes autos, a interpretação levada a cabo pelo Senhor Juiz, de aplica o regime vigente para a alteração substancial dos factos, previsto no artigo 359.º, nº. 1, do CPP, nos casos em que se está perante uma alteração de qualificação jurídica decorrente de uma alteração do elemento subjectivo do crime, leva a uma solução inconstitucional, como anteriormente tentámos demonstrar.
Nestes casos, a opção pela extinção de instância revela-se bem mais equilibrada, equilíbrio constitucionalmente aceitável como o Tribunal Constitucional já decidiu (Acórdão n.º 237/2007).
2.9. Como já disse anteriormente, no Acórdão n.º 226/2008, delimitou-se, com rigor, o objecto do recurso e foi a norma dos n.ºs 1 e 2 do artigo 359.º, do CPP, na exacta dimensão em que tinha sido aplicado, que não foi julgada inconstitucional.
Como resulta, claramente, do que se disse até aqui, a dimensão normativa em causa naquele processo não é a interpretação normativa, cuja aplicação foi recusada nos presentes autos.
De tal forma, a dimensão normativa é a nosso ver, diferente, que concordando nós com o decidido pelo Acórdão n.º 226/2008, já, ao invés, entendemos que no presente processo tal norma deve ser julgada inconstitucional.
Na decisão recorrida apenas se diz que se recusa a aplicação da norma do n.º 1, do artigo 359.º do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007.
Haverá, no entanto, também aqui, que concretizar melhor o objecto do recurso.
Ora, face aos factos e aos elementos que constam do processo, maxime da decisão parece-nos que constituirá objecto do presente recurso a questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 359.º do CPP, na redacção dada pela Lei nº 48/2007, interpretada no sentido de ser aplicável nos casos em que a qualificação da alteração como substancial, consiste numa alteração da qualificação jurídica, exclusivamente decorrente de uma alteração dos elementos subjectivos do crime.
3. Conclusão
Nesta conformidade e face ao exposto, conclui-se:
1 – Na decisão recorrida, qualificou-se como alteração substancial dos factos, a alteração da qualificação jurídica, resultante, exclusivamente, da alteração do elemento subjectivo do crime, sendo tal qualificação insindicável pelo Tribunal Constitucional.
2 – Aplicando o regime previsto no n.º 1 do artigo 359.º do CPP, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o juiz terá de proferir decisão de mérito que, no caso dos autos, e segundo a própria decisão, seria absolutória, apenas por não se ter provado “a intenção do arguido”.
3 – Absolvido do crime pela prática do qual o arguido vinha acusado (no caso, o crime previsto e punido no artigo 291.º do Código Penal), é altamente duvidoso que o Ministério Público, com base em certidão extraída do processo, pudesse proceder criminalmente o arguido pelo outro crime (no caso, o crime de ofensas corporais qualificadas, na forma tentada).
4 – Na verdade, sendo os factos objectivamente considerados os mesmos, num e noutro processo, poderá razoavelmente questionar-se se tal não iria contra o princípio do ne bis in iden, que tem consagração constitucional (artigo 29.º, n.º 5, da Constituição).
5 – Desta forma, poderá concluir-se que, nestes casos, a aplicação do regime previsto no n.º 1, alínea a) do artigo 359.º do CPP, poderá levar à desprotecção penal total dos bens jurídicos que se visam proteger com qualquer das incriminações.
6 – Ora, assim sendo, a norma do artigo 359.º, n.º 1, alínea a), na dimensão em causa, é materialmente inconstitucional por violação do princípio do Estado de direito democrático enquanto garante da efectivação de direitos liberdade e garantias, do princípio da proporcionalidade e do direito à tutela jurisdicional efectiva (artigos 2º e 9º, alínea b), artigo 18º, nº 2, e artigo 20º, da Constituição, respectivamente).
7- Temos que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida».
Notificado, o recorrido não contra-alegou.
5. Por despacho da relatora, o recorrente e o recorrido foram notificados para se pronunciarem sobre a possibilidade de ser proferida decisão de não conhecimento do objecto do recurso, com o fundamento seguinte:
«O recorrente abandonou a questão de constitucionalidade que formulou no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal nas alegações aqui produzidas.
No requerimento, peça processual que fixa o objecto do recurso de constitucionalidade, foi requerida a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 359º, nº 1, do Código de Processo Penal, na redacção conferida pela Lei nº 48/2007, de 29/8, por violação do princípio do Estado de direito democrático, do princípio da proporcionalidade e do direito à tutela jurisdicional efectiva, previstos, respectivamente, nos artigos 2º e 9º, 18º e 20º da Constituição da República Portuguesa; das alegações decorre que o recorrente questiona a constitucionalidade da “norma do artigo 359º, nº 1, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei nº 48/2007, interpretada no sentido de ser aplicável nos casos em que a qualificação da alteração como substancial, consiste numa alteração da qualificação jurídica, exclusivamente decorrente de uma alteração dos elementos subjectivos do crime”, por violação do princípio do Estado de direito democrático, do princípio da proporcionalidade e do direito à tutela jurisdicional efectiva (artigos 2º e 9º, alínea b), 18º, nº 2, e 20º da Constituição, respectivamente)».
6. O Ministério Público veio dizer o seguinte:
«1- Na parte decisória, a sentença de fls.148 a 154 julgou-se inconstitucional a norma do nº 1 do artigo 359º, do CPP, resultante da redacção introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto.
2- Dessa decisão, interpôs, o Ministério Público, recurso obrigatório, porquanto nela se tinha recusado, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação do artigo 359º, nº 1, do CPP, na redacção conferida pela Lei nº 48/2007.
3- Como no nº 1 do artigo 359º do CPP, na redacção dada pela Lei nº 48/2007, se surpreendem, naturalmente, diversas dimensões, o Ministério Público, neste Tribunal, nas Alegações proferidas, limitou-se a concretizar a questão de inconstitucionalidade, tendo em atenção a dimensão normativa efectivamente em causa.
4- Se não fosse delimitado o objecto do recurso, como poderiam ser produzidas Alegações, simplesmente sobre a inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 359º do CPP, na redacção da Lei nº 48/2008-
Se a delimitação não tivesse sido feita, era possível o Tribunal estar a pronunciar-se sobre “a inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 359º do CPP, na redacção saída da Lei 48/2007”, sem mais-
A resposta, parece-nos, é claramente negativa.
5-Efectivamente, nos recursos obrigatórios interpostos pelo Ministério Público ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, quando o requerimento de interposição do recurso tem um carácter genérico tem sido seguido, no Tribunal Constitucional, a seguinte prática: a) O Senhor Conselheiro Relator notifica o Ministério Público para concretizar melhor o objecto do recurso (v.g. Proc. Nº 605/09, onde foi proferido o Acórdão nº 84/2010); b) O Senhor Conselheiro Relator, ele próprio, delimita o objecto do recurso, mandando alegar seguidamente (v.g. Procº nº 342/09, onde foi proferido acórdão nº 609/99); c) O Ministério Público, nas Alegações, concretiza melhor esse objecto (vg Procº 342/09, onde foi proferido acórdão nº 15/2010); d) o Tribunal, no Acórdão que profere, especifica com rigor, qual a dimensão que entende que é, ou não, inconstitucional.
6- Um exemplo evidente no que anteriormente dissemos, pode ver-se no Acórdão nº 226/2008.
Nesse processo foi também recusada a aplicação do artigo 359º do CPP, na redacção dada pela Lei nº 48/2007, tendo nas alegações do Ministério Público, na Alegação, concretizado qual a dimensão normativa em causa, o Tribunal Constitucional, ainda especificou melhor, qual era o objecto do recurso, pronunciando-se, a final, sobre o seu mérito.
7- Quando na decisão recorrida não se especifica a exacta dimensão normativa, cuja aplicação se recusa e o Ministério Público, no requerimento de interposição do recurso, também não o faz, essa tarefa pode e deve ser levada a cabo nas Alegações.
8- Importante é que a delimitação caiba no âmbito do requerimento de interposição do recurso – o que no caso dos autos nos parece evidente – e que também esteja em consonância com que consta da decisão recorrida, designadamente da sua fundamentação, o que parece que também se verifica e que, aliás, não vem posto em causa, no douto despacho de fls 183 e 184.
9- Nestas circunstâncias, e uma vez que não abandonámos a questão formulada no requerimento de interposição do recurso – que, como resulta do que atrás dissemos, só com base naquele requerimento, temos, e o Tribunal teria, sérias dificuldade em identificar – antes nos limitámos, de forma que nos parece correcta, a concretizar o objecto do recurso, entendemos que deverá conhecer-se do seu objecto (…)».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Nos presentes autos foi requerida, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, a apreciação do artigo 359º, nº 1, do Código de Processo Penal (CPP), na redacção conferida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto.
O artigo onde se contém a norma cuja apreciação foi requerida tem a seguinte redacção:
«Artigo 359º
(Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
1. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2. A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
3. Ressalvam-se do disposto no n.º 1 os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
4. Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário» (itálico aditado).
2. Nas alegações produzidas, o recorrente conclui pela inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 359º do CPP, na redacção dada pela Lei nº 48/2007, interpretada no sentido de ser aplicável nos casos em que a qualificação da alteração como substancial, consiste numa alteração da qualificação jurídica, exclusivamente decorrente de uma alteração dos elementos subjectivos do crime, por violação do princípio do Estado de direito democrático enquanto garante da efectivação de direitos, liberdades e garantias, do princípio da proporcionalidade e do direito à tutela jurisdicional efectiva (artigos 2º e 9º, alínea b), 18º, nº 2, e 20º da Constituição, respectivamente).
Notificado para se pronunciar sobre a possibilidade de ser proferida decisão de não conhecimento do objecto do recurso, por as alegações não incidirem sobre a questão de constitucionalidade posta no requerimento de interposição de recurso, o Ministério Público respondeu que procedeu apenas à delimitação do objecto do mesmo, o que é admissível desde que caiba no âmbito do requerimento de interposição de recurso e esteja em consonância com o que consta da decisão recorrida.
3. Nos presentes autos não se verificam, porém, estas duas condições.
Do requerimento de interposição de recurso resulta que o tribunal recorrido recusou a aplicação do nº 1 do artigo 359º do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade, requerendo-se, consequentemente, a apreciação da norma contida nesta disposição legal, segundo a qual “uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância” (itálico aditado).
A este Tribunal foi requerida a apreciação da norma na sua totalidade e não segundo determinada interpretação, em consonância com o que decorre da decisão recorrida quanto à norma que o tribunal teve como aplicável ao caso e cuja aplicação recusou depois com fundamento em inconstitucionalidade. Com efeito, porque da prova produzida, em audiência de julgamento, resultaram novos factos, com o efeito de levar à imputação de um crime diverso do que vinha imputado ao arguido (crime de ofensa à integridade física qualificada em vez de crime de condução perigosa) e porque os novos factos não eram autonomizáveis em relação ao objecto do processo, o tribunal teve como aplicável ao caso o artigo 359º, nº 1, do CPP. De harmonia com o disposto na alínea f) do artigo 1º, nos termos da qual se considera “alteração substancial dos factos” aquela que tiver por efeito a imputação de um crime diverso, e no nº 2 do artigo 359º do mesmo Código, segundo o qual a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que este proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
Foi, portanto, a norma do nº 1 do artigo 359º do CPP que o tribunal recorrido se recusou depois a aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, e não a norma do nº 1 do artigo 359º do CPP, interpretada no sentido de ser aplicável nos casos em que a qualificação da alteração como substancial, consiste numa alteração da qualificação jurídica, exclusivamente decorrente de uma alteração dos elementos subjectivos do crime.
Diferentemente do sustentado nas alegações do recorrente, o tribunal recorrido não qualificou como alteração substancial dos factos a alteração da qualificação jurídica, resultante, exclusivamente, da alteração do elemento subjectivo do crime. Não o fez, face à distinção legal (artigos 358º, nº 3, 358º, nº 1, e 359º, nº 1, do CPP) e jurisprudencial (Assento nº 2/93, de 27 de Janeiro, publicado no Diário da República, I Série-A, de 10 de Março de 1993) entre alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e alteração (substancial ou não) dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. Distinção essa que pressupõe, na primeira hipótese, diferentemente da segunda, que os factos descritos nestas peças processuais se mantenham depois da prova produzida em audiência.
Por outras palavras, o Tribunal da Comarca de Beja não recusou a aplicação de norma do nº 1 do artigo 359º do CPP, interpretada no sentido de a alteração da qualificação jurídica dos factos, exclusivamente decorrente de uma alteração dos elementos subjectivos do crime, não poder ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implicar a extinção da instância. Pelo que, ainda que se entenda que o Ministério Público se limitou a restringir o objecto do recurso, o que é admissível, é de concluir pelo não conhecimento do mesmo, uma vez que não foi recusada a aplicação da interpretação normativa relativamente à qual foram produzidas alegações.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto.
Sem custas.
Lisboa, 18 de Junho de 2010
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, nos termos da declaração de voto junta
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tendo dissentido da decisão de não tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade, cumpre agora explicitar os fundamentos que me levaram a discordar da tese que fez vencimento.
Nos autos que precederam o envio do processo ao Tribunal Constitucional o juiz da causa recusou a aplicação do artigo 359º, nº 1, do C.P.P. na redacção resultante da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, uma vez que as consequências que ligou à aplicação desta norma (deverem os autos prosseguir sem que ao tribunal fosse possível ter em consideração os novos factos para efeitos de condenação) violariam, no seu entender, determinados parâmetros constitucionais. Interposto recurso obrigatório pelo Ministério Público, este, acompanhando a decisão recorrida por entender que a interpretação normativa em causa não assegurava a protecção de bens jurídicos constitucionalmente tutelados, viria a concretizar o objecto do recurso, nas alegações que apresentou já neste Tribunal, limitando-o à norma invocada e recusada na decisão recorrida, quando interpretada no sentido de ser aplicável nos casos em que a alteração substancial dos factos decorre exclusivamente de uma alteração dos elementos subjectivos do crime.
O acórdão parece considerar (ponto 3) que esta norma é distinta da anterior, não cabendo assim dentro do âmbito de interposição do recurso nem estando em consonância com o que consta da decisão recorrida. E, para assim concluir, limita-se a afirmar que o tribunal recorrido “não qualificou como alteração substancial dos factos a alteração da qualificação jurídica resultante exclusivamente da alteração do elemento subjectivo do crime”. Independentemente da correcção, quer das considerações dogmáticas quer da interpretação do direito ordinário, feitas tanto na decisão recorrida como nas alegações do Ministério Público, é para nós claro que o sentido autonomizado nesta peça processual (resultar a alteração substancial dos factos exclusivamente de uma alteração dos elementos subjectivos do crime) constitui uma restrição do objecto do recurso que ademais corresponde ao alcance com que foi recusada a aplicação da norma do artigo 359º, nº 1, do C.P.P (recusa que contemplou “uma alteração substancial dos factos dos quais resulta a imputação e [ao arguido] (…) de um crime diverso, [ao terem resultado] da prova produzida factos subsumíveis no tipo de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, sendo que ao arguido vinha imputada a prática de um crime de condução perigosa” (início do despacho de fls. 148).
Tendo assim, em nosso entender, sido recusada a interpretação normativa visada pelas alegações produzidas pelo requerente, votámos no sentido do conhecimento do recurso interposto.
Rui Manuel Moura Ramos