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Processo n.º 122/2010
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
EM CONFERÊNCIA DA 1ª SECÇÃO ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A fls. 79 dos presentes autos foi proferida, em 22 de Março de 2010, a
seguinte decisão sumária de não conhecimento do recurso interposto por A.:
Nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional,
decide-se:
1. A. pretende recorrer para o Tribunal Constitucional do despacho proferido
pelo Presidente da Relação de Coimbra que indeferiu a reclamação que o
recorrente formulara contra o despacho que, no 3º Juízo do Tribunal de Alcobaça,
lhe retivera o agravo. Invoca a alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82 de 15 de Novembro (LTC) e impugna a conformidade constitucional do artigo
734º n.º 2 do Código de Processo Civil, «antiga versão, na leitura que dele faz
o tribunal». Convidado a esclarecer qual foi a interpretação que o referido
tribunal adoptou no caso concreto, respondeu:
«A., recorrente, tendo sido notificado do douto despacho de V. Exa, no
sentido de enunciar o exacto sentido da interpretação normativa cuja
conformidade constitucional pretende questionar e com a completa identificação
do preceito legal de onde foi extraída, vem extratar, do anexo ao requerimento
de interposição do recurso, os seguintes pontos:
1. O despacho do Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador Relator, no sentido de
obstar à subida imediata do recurso [do despacho que indeferiu
reclamação-por-ter-sido-retido-ilegamente-anterior-recurso interposto da decisão
que ordenou uma perícia médico-legal, quando o sinistrado, neste caso de
acidente de viação, já tinha sido avaliado quanto às sequelas físicas
decorrentes das lesões sofridas durante e por causa do choque das viaturas],
apoia-se, fundamentalmente, no argumento de não haver prejuízo para a lide com a
retenção, quando muito delonga: a anulação do exame que entretanto vier a
ocorrer será consequência directa da procedência, enquanto o arrastar da lide,
por via do vencimento e desconsideração da perícia, nem no limite, infringirá a
CEDH, sobretudo, na interpretação que tem sido dada à exigência de um julgamento
célere por parte da jurisprudência do TEDH.
2 ………..
3. [Ora] … a realização do exame infringe [antes de mais,] como foi alegado
oportunamente, o direito constitucional de reserva sobre o corpo, direito que o
acidentado mantém, visto o art. 25.º/1 CRP, onde a integralidade física não quer
dizer apenas o reverso das agressões, mas também do voyerismo.
4. Este direito constitucional é de aplicação directa, nos termos do art. 18.º/1
CRP, e só pode ser comprimido, no confronto com outro direito constitucional e
na devida proporção, da qual terá de resultar uma convergência prática entre o
exercício dos dois direitos, para que ambos se cumpram na medida do possível.
5. Acontece que a compressão útil e necessária do direito de reserva sobre o
corpo já ocorreu, com os primeiros exames, não sendo necessários quaisquer
outros, porque as perícias não revelam do ponto de vista técnico qualquer
imprecisão ou dúvida que lhes tenha sido assacada pela parte contrária, ou
tivesse sido invocada ex oficio.
6. Por conseguinte, estando em jogo a possibilidade de infracção directa à Lei
Fundamental, através do cumprimento imediato de uma decisão judicial recorrível
e de que foi interposto recurso, parece que este recurso deve subir
imediatamente, pois, neste caso, a urgência é, antes de mais, a urgência
normativa de limitar os efeitos de um desrespeito constitucional iminente, ou
seja, de uma prática inconstitucional, ela em si, de fora do ordenamento.
7. Entretanto, a regra da supletividade do efeito suspensivo e da subida
imediata dos recursos, diz respeito, pelo contrário, à boa ordem legal, inscrita
na Constituição.
8. Deste modo, para haver efeito devolutivo e retenção do recurso, tem que esta
solução inscrever-se no campo da consolidação constitucional.
9. Se for assim.., então não é a regra que deve aplicar-se, mas a excepção,
neste caso de urgência.
10. Este um dos argumentos constitucionais... mas outro há… celeridade do
julgamento.
11. Trata-se [ainda]... de outro direito fundamental de aplicação directa,
situado no campo da problemática acima definida em tomo do art. 18.º/1/3 CRP.
12. Também aqui não há motivo algum para mais uma cedência de delonga escusada!
13. Com efeito, sendo o segundo exame inútil, a realização da diligência e
eventual anulação do resultado pericial, tendo um custo de tempo contaminado de
irrelevância, coloca-se fora do campo da constitucionalidade.
14. Enfim, não importa apenas raciocinar sob espécie do prejuízo processual, em
ordem a perceber se o efeito deletério do caso pode, ou não, ser removido, mas
considerar este aspecto apenas a partir de um ambiente inscrito numa ordem dos
procedimentos ainda conforme à Constituição.
15. Fora desta circunstância, a urgência e o prejuízo terão de ser vistos no
campo dialéctica estabelecido entre o n.º 1 e o n.º 3 do art. 18.º CRP, perante
o postulado de uma ordem constitucional intangível e, sobretudo, de que os
tribunais são garante. 16. Este ponto de vista suscita de seguida uma questão
forense de constitucionalidade do art. 734.º/2 CPC, em contravenção, neste
feito, com os art.º 18.º/1/3, 20.º/4 e 25.º/1 CRP, se porventura for sufragada a
interpretação a partir da qual a inutilidade gerada pela retenção do recurso não
deva ter como parâmetro também a salvaguarda do respeito pelo ordenamento dos
direitos fundamentais.
17....»
2. O recurso previsto na aludido alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, como é
o presente, cabe das decisões dos tribunais que apliquem norma acusada de ser
inconstitucional. Com efeito, exige-se que o recorrente haja suscitado, perante
o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a questão de inconstitucionalidade
que quer ver conhecida no Tribunal Constitucional. Conforme dispõe o n.º 2 do
artigo 72º da referida LTC, «os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1
do artigo 70º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão
da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
obrigado a dela conhecer.»
Acontece que o recorrente não colocou adequadamente a questão no tribunal
recorrido, pois, na reclamação formulada para o Presidente da Relação de
Coimbra, nenhuma referência faz à eventual desconformidade constitucional da
norma do artigo 734º n.º 2 do Código de Processo Civil. Só depois de proferida
decisão na reclamação, quando o poder jurisdicional estava esgotado e o
Presidente da Relação de Coimbra já não podia conhecer questões novas, por não
terem sido oportunamente deduzidas, é que o recorrente suscitou a questão de
inconstitucionalidade.
Ora o Tribunal Constitucional tem persistentemente decidido que a invocação
destas questões em incidentes post-decisórios não é momento processualmente
adequado para a suscitação que é requerida no aludido n.º 2 do artigo 72º da
LTC.
Não pode, por isso, dar-se como verificado o aludido requisito.
3. Em face do exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas
pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC.
2. Inconformado com esta decisão, A. reclama, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78º-A
da LTC, dizendo:
A., recorrente, vem requerer que seja proferido acórdão sobre o tema do
indeferimento liminar proferido pelo Excelentíssimo Senhor Conselheiro Relator e
que acaba de ser-lhe notificado. Alega:
1. O indeferimento teve como motivo não ter o recorrente alegado adequadamente a
questão de constitucionalidade no tribunal recorrido, pois apenas a formulou
depois de proferida a decisão na reclamação para o Presidente da Relação de
Coimbra que já não podia, entretanto, conhecer de questões novas, por não terem
sido oportunamente deduzidas.
2. Contudo, já na primeira reclamação, por ter ficado retido o recurso
interposto pelo A., do despacho de primeira instância que ordenou um repetitivo
exame de avaliação do dano corporal, neste caso de um acidente de viação com XXX
anos, o reclamante alegara dever subir imediatamente esse recurso, porque, se
não, haveria delito de morosidade, tendo por referência a CEDH.
3. Deste modo, está implicitamente alegada a inconstitucionalidade do art.
734.º/2 CPC (red. antiga), se lhe for mantido o entendimento do tribunal
recorrido, no sentido de, no caso concreto, não se ver motivo de urgência e
prejuízo para o recorrente, com a retenção do agravo: a interpretação normativa
estava ao contrário do art.º 20.º/4 CRP.
4. E o que aconteceu é que esta argumentação foi desenvolvida, depois, perante o
despacho do Excelentíssimo Presidente da Relação de Coimbra que persistiu na
mesma interpretação normativa, mantendo o efeito devolutivo e a subida diferida
ao recurso.
5. É neste desenvolvimento que o recorrente torna mais preciso o argumento da
inconstitucionalidade do citado art. 734.º/2 CPC (red. antiga), convocando o
sub-argumento de haver perigo de infracção directa da Constituição, como efeito
do entendimento conceptual de uma não urgência, segundo o preceito do CPC em
causa, perante um exame corporal iminente, contra a reserva da intimidade
prevista no art. 25.º CRP, como garantia fundamental de aplicação directa e
imediata.
6. Mas o fundamental da argumentação da inconstitucionalidade, a sua estrutura
basilar, já estava na reclamação indeferida, depois, pelo Presidente do Tribunal
da Relação de Coimbra.
7. Mesmo assim, a aclaração atravessada pelo recorrente, agora após o despacho
de indeferimento, ainda coloca em jogo a possibilidade de o decisor ter em conta
o problema da inconstitucionalidade, mesmo que entendesse poder tratar-se de
questão nova (que efectivamente não era).
8. Com efeito, a aclaração foi referenciada expressamente ao art. 668.º/1/a CPC,
preceito qual, após a última reforma de processo, autoriza o juiz a reformar a
sua própria decisão, em caso de manifesto erro de direito.
9. Ora, um erro de inconstitucionalidade é manifesto, porque é a própria
Constituição que proíbe aos tribunais aplicar a norma inconstitucional.
10. Por conseguinte, não é apropriado o despacho liminar de recusa de seguimento
do recurso, primeiro, porque, no essencial, a questão de constitucionalidade
/inconstitucionalidade foi proposta logo à decisão do Excelentíssimo Senhor
Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra; segundo, porque, se fosse questão
nova, e alegada pós-decisão, ainda assim, estava sob os poderes de conhecimento
do magistrado competente, por força dos preceitos legais que, neste caso,
autorizariam uma reforma da decisão tomada, justamente, com motivo na
procedência do argumento de constitucionalidade obliterada.
11. Logo, Vossas Excelências aceitarão conhecer do recurso de
constitucionalidade, afinal de contas colocada adequadamente a questão no
tribunal recorrido.
Pede e espera a Justiça de Vossas Excelências.
3. Não houve resposta da parte contrária, importando decidir.
O recurso interposto pelo aqui reclamante A. ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da LTC não foi recebido por se haver entendido, na decisão sumária em
reclamação, que se não verificava um dos seus requisitos essenciais, pois não
fora adequadamente suscitada, perante o tribunal recorrido, a questão de
inconstitucionalidade que o interessado pretendia ver tratada no recurso, ao
contrário do que dispõe o n.º 2 do artigo 72º da LTC.
É este fundamento que o reclamante contesta ao referir que fora, por si,
«implicitamente alegada a inconstitucionalidade do artigo 734.º/2 CPC».
Mas sem razão.
Com efeito, conforme dispõe o n.º 2 do artigo 72º da referida LTC, a
questão que é objecto do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º
deve ser suscitada pela parte perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, de modo processualmente adequado, «em termos de este estar obrigado a
dela conhecer». A expressão legal inculca o entendimento, de resto sempre
adoptado pelo Tribunal, de que suscitação da questão de inconstitucionalidade
implica uma clara e expressa acusação de inconstitucionalidade reportada a uma
determinada norma jurídica, substanciadora da pretensão de ver recusada a sua
aplicação ao caso, em virtude de tal norma se mostrar desconforme com a
Constituição.
Ora, na reclamação formulada para o Presidente da Relação de Coimbra, de que
resultou a decisão recorrida, o recorrente não fez qualquer alusão à
desconformidade constitucional da norma do artigo 734º n.º 2 do Código de
Processo Civil. Só depois de proferida decisão na reclamação, quando o poder
jurisdicional estava esgotado e o Presidente da Relação de Coimbra não podia
conhecer de questões novas, por não terem sido oportunamente deduzidas, é que o
recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade que agora pretende ver
apreciada. Deve, por isso, concluir-se que não colocou adequadamente a questão
no tribunal recorrido, o que reconduz o Tribunal à decisão de não admissão do
recurso, com tal fundamento.
4. Decide-se, por isso, indeferir a reclamação, mantendo a decisão de não
conhecimento do recurso. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
20 UC.
Lisboa, 28 de Abril de 2010
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão