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Processo n.º 86/10
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, o ora recorrido, A., deduziu oposição à execução fiscal que contra si foi revertida, depois de originariamente instaurada contra a sociedade “B., Lda”, relativa à cobrança de dívidas de IVA e juros compensatórios dos anos de 1993 e de 1994 e de IRS do ano de 1994.
Alegou, em síntese, a prescrição das dívidas exequendas e a falta de notificação da liquidação no prazo de caducidade.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga julgou a oposição deduzida improcedente.
De tal decisão foi interposto recurso para o Supremo Tribunal Administrativo.
Em alegações, o oponente defendeu que as dívidas exequendas se encontram prescritas, invocando, além do mais, que, não obstante a executada originária ter aderido, em 10 de Janeiro de 1997, ao regime prestacional de regularização das dívidas fiscais, nos termos do Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto – o que consubstancia facto suspensivo do prazo prescricional - deixou de pagar as prestações em Fevereiro de 1998, pelo que a suspensão cessou a partir daí e não apenas desde o despacho de exclusão de tal regime, que apenas veio a ser proferido em 18 de Julho de 2001. Entendimento diferente, segundo alega, seria inconstitucional.
O Magistrado do Ministério Público, junto do Supremo Tribunal Administrativo, pugnou pela improcedência do recurso, defendendo que a prescrição não ocorreu, por força da suspensão do prazo decorrente da adesão ao regime previsto no Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, que só cessou com o despacho de exclusão de tal regime.
Quanto à questão da inconstitucionalidade invocada, refere o mesmo Magistrado que o recorrente se limitou a fazer uma alegação genérica, não concretizando sequer os princípios constitucionais violados, pelo que a sua argumentação teria de improceder.
O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, considerando ser imprescindível à análise, sobre a questão do prazo prescricional, a prévia apreciação sobre a invocada inconstitucionalidade da norma do n.º 5 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 124/96, resolveu analisar desde logo tal questão, não na perspectiva da inconstitucionalidade material, insuficientemente concretizada pelo recorrente, mas do ponto de vista orgânico, face a anterior posição assumida pelo mesmo Tribunal, no âmbito do processo n.º 528/09.
Concluiu, pronunciando-se pela inconstitucionalidade da aludida norma, argumentando que o estabelecimento de causas de suspensão do prazo de prescrição da obrigação tributária, por contender com as garantias dos contribuintes, se inclui na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, constituindo matéria que deverá ser objecto de lei formal da Assembleia da República ou de Decreto-Lei do Governo, na sequência de Lei de autorização legislativa emitida pelo Parlamento para esse efeito. Ora, relativamente ao Decreto-Lei n.º 124/96, não tendo o Governo legislado ao abrigo de autorização legislativa e sendo inovadora a causa de suspensão prevista no n.º 5 do artigo 5.º, considerou o STA tal norma ferida de inconstitucionalidade orgânica, pelo que, em conformidade com tal juízo, não a aplicou, desconsiderando a causa suspensiva do prazo prescricional na mesma consagrada.
Em consequência, julgou procedente o recurso, declarando prescritas todas as dívidas exequendas e, consequentemente, extinta a execução quanto ao recorrente.
É deste acórdão que o Ministério Público vem interpor recurso, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
“1.1. A tese, perfilhada per relationem no acórdão recorrido, propugna que a norma extraída do art. 5.º, n.º 5, do DL n.º 124/96, de 10 de Agosto, cria causas de suspensão da prescrição da obrigação tributária, que são de subsumir no conceito constitucional de “garantias do contribuinte” e, por conseguinte, deviam ter sido reguladas por lei ou decreto-lei autorizado (reserva relativa de lei).
1.2. Uma vez que a matéria foi regulada por decreto-lei, a descoberto de credencial parlamentar, logo, concorreria inconstitucionalidade orgânica.
2.1. Esta tese, porém, não é pacífica na jurisdição tributária.
2.2. Noutro aresto da suprema jurisdição tributária, a tese da inconstitucionalidade orgânica, com boas razões, é refutada (o acórdão nº 425/08 do STA – Contencioso Tributário – 2.ª secção, de 2 de Abril de 2008).
2.3. Num aresto posterior, em voto de vencido, esta tese é igualmente refutada, e com razões que parecem inteiramente atendíveis (acórdão nº 962/09, do STA - Contencioso Tributário – 2.ª secção, de 2 de Dezembro de 2009).
2.4. Ulteriormente, o acórdão n.º 135/2010, tirado no processo nº 687/09, da 3.ª Secção deste Tribunal Constitucional, também no âmbito do DL n.º 124/96, cit. (o denominado “Plano Mateus”) embora em sede de controvérsia constitucional conexa com a ora em exame (questão do “despacho de exclusão”), aduziu argumentos que são inteiramente procedentes e idóneos a refutar a tese agora em exame (questão da “inconstitucionalidade orgânica”).
3.1. Mesmo concedendo ser a correcta em tese geral, esta doutrina não consagra a melhor interpretação da disposição em apreço, pois assenta na leitura descontextualizada do diploma onde está integrada e não atende ao seu sentido sistemático.
3.2. Para captar o genuíno alcance e sentido desta disposição é imprescindível considerar, em particular, as causas (circunstâncias excepcionais, de incumprimento acumulado de dívidas fiscais e à segurança social), nexos (entre os benefícios concedidos e a suspensão da prescrição) e finalidades (criar um regime excepcional de recuperação da dívida, por via consensual) do diploma.
4.1. O diploma em apreço não elide qualquer direito ou garantia, decorrente do estatuto de “contribuinte” de que o devedor relapso (DL n.º 124/96, cit., art. 1.º, n.º 1) estivesse investido.
4.2. Antes lhe confere um novo direito (ou faculdade) de requerer uma autorização administrativa, cujo deferimento lhe permitirá obter a redução dos juros de mora vencidos e vincendos e, ainda, pagar a dívida exequenda até ao máximo de 150 prestações mensais iguais - distribuídas, portanto, por mais de 12 anos.
4.3. Aliás, a suspensão do prazo de prescrição, nesta solução, parece inelutável, sobretudo quando se sabe que o prazo máximo de pagamento, em 150 prestações mensais, excedia o prazo de 10 anos estabelecido, então, pela lei, para prescrição da obrigação tributária (CPT; art. 34.º e DL nº 124/96, cit., art. 5.º, n.º 1). E uma interpretação da lei que validasse tal resultado, bem entendido, não poderia ser a “solução mais acertada” a imputar ao pensamento legislativo (CC, art. 9.º, n.º 3).
4.4 Acresce que a apresentação do requerimento tem a virtualidade de sustar, até prolação de decisão, a venda de bens e, em caso de deferimento do requerimento, reunidas certas condições, a suspensão dos processos de execução fiscal em curso “bem como após a instauração de novos processos”.
5.1. A autorização administrativa, que defere a redução dos juros de mora, vencidos e vincendos e o pagamento em prestações é uma “medida excepcional” e decorre de uma “intervenção extraordinária”, exorbitando assim dos quadros típicos da relação jurídica tributária, com o seu cunho unilateral e coactivo.
5.2. De modo que, ao requerer tal autorização, o devedor relapso exerce um novo direito ou faculdade e, ao ver deferida a pretensão, ficava investido num direito, com base consensual, extraordinário e assaz favorável, ao pagamento das dívidas fiscais em prestações e com redução de juros de mora, vencidos e vincendos.
6.1. A finalidade da norma expressa pelo art. 5.º, n.º 5, cit., não é, pois, a “garantia dos contribuintes” - que mantêm todos os direitos e garantias que a lei, de modo geral e abstracto, lhes reconhece.
6.2. Antes tal norma tem uma função acessória, no quadro da economia do regime jurídico em preço, qual seja a de garantir a boa-fé e seriedade de propósitos do devedor relapso (desincentiva o incumprimento pois, atentos os seus antecedentes de inadimplência, o risco de entrar em falha é agravado) e, sobretudo, o justo equilíbrio dos interesses ajustados (proporcionalidade entre o benefício do devedor relapso e a garantia da arrecadação do crédito em falha).
7.1. Portanto, a norma em apreço não opera ablação ou ingerência nas “garantias dos contribuintes”, no sentido constitucionalmente adequado da expressão, pelo que não há qualquer exacção arbitrária ou excessiva, não havendo fundamento para protecção do devedor relapso “contra pretensões de cobrança de tributos fora das condições previstas na lei”.
7.2. Assim, nestas circunstâncias excepcionais, a própria teleologia subjacente à norma constante do n.º 5 do art. 5.º do DL n.º 124/96, cit., proscreve a respectiva subsunção no conceito de “garantias dos contribuintes” (CRP92, art. 106.º, n.º 2).
8. Em suma, não concorre inconstitucionalidade orgânica, não é caso de usurpação de poderes legislativos do Parlamento, compreendidos no âmbito da respectiva reserva relativa de competência.
Antes, ao emanar tal disposição, o Governo fez uso legítimo da sua competência para emanar decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República [CRP92, arts. 106.º, n.º 2, e 201.º, n.º 1, al. a)].”.
O recorrido contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
2. O acórdão recorrido consubstancia-se numa decisão positiva de inconstitucionalidade relativa ao n.º 5 do artigo 5.º do Decreto – Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto, fundada na inconstitucionalidade orgânica da norma, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
A propósito da questão decidenda, pronunciou-se recentemente o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2010, aprovado em Plenário, cuja solução e fundamentos, inteiramente transponíveis para este caso, se reitera.
Em tal Acórdão – proferido, aliás, no âmbito de processo em que as partes eram as mesmas – decidiu-se:
“O Decreto-Lei n.º 124/96 pretendeu, como se explicita no respectivo preâmbulo, instituir um conjunto de remédios extraordinários para regularização das dívidas fiscais e à segurança social, resultantes de situações de incumprimento acumuladas, implementando dois grandes grupos de medidas: por um lado, relativamente à generalidade dos devedores foi previsto um regime geral de pagamento em prestações mensais iguais, até um máximo de 150, com redução, nos casos normais, de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa média de juros praticada na colocação da dívida pública interna; por outro lado, estabeleceu-se, em desenvolvimento do regime jurídico definido pelo artigo 59.º da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, e concretizando também a previsão do n.º 2 do artigo 55.º da mesma lei, em relação aos casos que envolvam processos especiais de recuperação de empresas ou contratos de consolidação financeira e reestruturação empresarial, um regime extraordinário de mobilização de activos e de recuperação de créditos.
Ao caso em análise interessa o regime prestacional, a que o executado/oponente aderiu, e que se encontra regulado nos artigos 4º e seguintes do Decreto-Lei n.º 124/96 e, especialmente, no seu artigo 5º, que, sob a epígrafe «Diferimento do pagamento dos créditos», dispõe o seguinte:
1 - O diferimento do pagamento dos créditos, incluindo os créditos por juros vencidos e vincendos, assumirá a forma de pagamento em prestações mensais iguais, no máximo de 150.
2 - O número de prestações concedido para o pagamento dependerá de:
a) Capacidade financeira do devedor;
b) Montante da dívida, não podendo cada prestação ter valor inferior a metade do salário mínimo nacional mais elevado;
c) Risco financeiro envolvido;
d) Circunstâncias determinantes da origem das dívidas.
3 - O pagamento de cada prestação será efectuado até ao final do mês a que diga respeito.
4 - Quando, por motivo não imputável ao devedor, o pagamento não tenha sido efectuado no prazo previsto no número anterior, poderá ser requerida a relevação do atraso, desde que o pagamento se efectue nos primeiros cinco dias úteis do mês seguinte.
5 - O prazo de prescrição das dívidas suspende-se durante o período de pagamento em prestações.
O referido diploma foi publicado pelo Governo com invocação das alíneas a) e c) do artigo 201.º da Constituição (que corresponde ao actual artigo 198.º) e no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pelo artigo 59.º da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março.
A Lei n.º 10-B/96, que aprovou o orçamento do Estado para 1996, autorizava o Governo, através do Ministro das Finanças, com a faculdade de delegação, a proceder a operações de mobilização de créditos, incluindo créditos de natureza fiscal e outros activos financeiros do Estado, em termos a definir por decreto-lei (n.º1), bem como a proceder a operações de permuta, redução e anulação de determinados activos financeiros (n.º 5). Não há em todo o texto legal qualquer referência ao regime de prescrição das dívidas fiscais e à segurança social às quais venha a ser autorizado o pagamento em prestações.
Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 124/96 não invoca a existência de qualquer autorização legislativa sobre essa matéria, como seria exigível, nos termos do n.º 3 do artigo 201.º da Constituição, na redacção então vigente, se de um decreto-lei autorizado se tratasse, e, ao aludir, como fonte habilitadora, ao artigo 59º da Lei n.º 10-B/96, pretende unicamente reportar-se aos instrumentos de «mobilização de activos e recuperação de créditos», que se encontram regulamentados no Capítulo III desse diploma, e não aos chamados «regimes prestacionais», que constam do Capítulo II, em que se insere a referida norma do artigo 5º.
Assim sendo, poderá dar-se como assente que não houve, no caso, autorização legislativa destinada a cobrir a aprovação da norma em causa e, por outro lado, o Governo não poderia, a pretexto do desenvolvimento de uma norma que se circunscreva às bases gerais de um regime jurídico – como seja a do artigo 59.º da Lei 10-B/96 – entrar no domínio de competência legislativa reservada.
A questão que interessa seguidamente averiguar é a de saber se estamos, na verdade, perante matéria de reserva parlamentar.
O artigo 165º, n.º 1, alínea i), da CRP (que corresponde, na sua primeira parte, ao artigo 168º, n.º 1, alínea i), na redacção anterior à Lei Constitucional n.º 1/97, vigente à data da publicação do Decreto-Lei n.º 124/96), integra na reserva relativa da competência da Assembleia da República a «criação de impostos e sistema fiscal»; ao passo que o artigo 103º (que, por sua vez, corresponde ao artigo 106º da Lei Fundamental, na mesma redacção), sob a epígrafe «sistema fiscal», no seu n.º 2, consigna o seguinte: «os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes».
Entende-se que este n.º 2, introduzindo um princípio de legalidade fiscal, traduz a regra da reserva de lei para a criação e definição dos elementos essenciais dos impostos, nela abrangendo não somente os elementos intrusivos ou agressivos do imposto (criação, incidência, taxa), mas também os seus elementos favoráveis, como os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, págs. 1090-1091).
Como também tem sido afirmado, a reserva de lei para a criação e definição dos elementos essenciais dos impostos, mesmo nos aspectos favoráveis aos contribuintes, justifica-se em nome dos princípios da igualdade, da justiça e da transparência fiscal. Pretende-se que o imposto, quanto aos seus principais elementos, seja desenhado na lei de forma suficientemente determinada, sem margem para desenvolvimento regulamentar, nem para a discricionariedade administrativa (ibidem). Uma tal determinação constitucional funciona assim como uma garantia dos contribuintes, no ponto em que procura criar um quadro legal rigoroso, colocando os sujeitos passivos do imposto a coberto de uma interpretação administrativa variável e porventura menos publicitada. A justificação para a inclusão na reserva de lei dos benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes parece residir, por outro lado, na circunstância de esses serem elementos essenciais para a caracterização do sistema fiscal, o qual deverá ser objecto de uma apreciação global por parte dos representantes dos contribuintes (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, 2006, Coimbra, págs. 220-221).
Aceites estas considerações gerais quanto ao âmbito e razão de ser da reserva de lei em matéria fiscal, importa ter presente que a Constituição, fora dos casos de possível interferência com outras garantias em matéria penal, processual penal ou administrativa (tal como as consagradas nos artigos 29º, 32º e 268º), não define expressamente o conteúdo da garantia dos contribuintes, nem estabelece um elenco taxativo de institutos que possam considerar-se incluídos nesse conceito, pelo que a caracterização de um determinado regime legal para efeito de incidência na reserva parlamentar constituirá sempre um problema de interpretação da lei que terá de ser analisado à luz dos critérios gerais de hermenêutica jurídica (cfr. Ana Paula Dourado, O Princípio da Legalidade Fiscal – Tipicidade, conceitos jurídicos indeterminados e margem de livre apreciação, Coimbra, pág. 138).
Partindo da ideia de que a prescrição extingue o direito de exigir o pagamento da dívida e faz nascer para o contribuinte o direito de recusar a correspondente prestação, e incide, portanto, sobre um aspecto essencial da relação jurídica tributária, consubstanciando uma garantia material ou não meramente procedimental, poderá entender-se, como vem sendo aceite pela doutrina, que integra uma garantia dos contribuintes (Benjamim Silva Rodrigues, A Prescrição no Direito Tributário, in «Problemas Fundamentais do Direito Tributário», Lisboa, 1999, págs. 261 e segs.; Casalta Nabais, Direito Fiscal, 5ª edição, Coimbra, pág. 347).
Nada permite concluir, porém, que a norma do artigo 5º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 124/96, aqui em análise, tenha vindo a restringir ou condicionar o regime que se encontra estabelecido, em geral, nessa matéria, e possa assim ter posto em causa a função garantística da reserva de lei fiscal.
O regime de prescrição das dívidas tributárias, antes consagrado no artigo 34º do Código de Processo Tributário, encontra-se actualmente regulado, em termos gerais, nos artigos 48 e 49º da Lei Geral Tributária, incluindo no que se refere às causas interruptivas e suspensivas do respectivo prazo, e manteve plenamente a sua vigência, não obstante a publicação do Decreto-Lei n.º 124/96.
Este diploma, por seu lado, teve em vista permitir a regularização de dívidas de natureza fiscal e à segurança social cujo prazo de cobrança voluntária tenha já terminado, através de medidas excepcionais de diferimento do pagamento em prestações mensais, até ao máximo de 150, implicando, como necessária decorrência, a suspensão do prazo de prescrição das dívidas durante o período de pagamento em prestações (artigo 5º, n.º 5) e a suspensão dos processos de execução fiscal em curso ou daqueles que entretanto tenham sido instaurados contra os contribuintes devedores (artigo 14º, n.º 10).
Note-se, em todo o caso, que a sujeição ao regime previsto no diploma depende de apresentação de requerimento, por parte do devedor, e não é, por isso, coactivamente imposta aos interessados (artigo 3º, n.º 1), e as dívidas que tiverem sido abrangidas pelo procedimento tornam-se exigíveis, nos termos gerais da lei tributária, em qualquer das circunstâncias referidas no n.º 2 do artigo 3º, e, designadamente, quando deixe de ser efectuado o pagamento integral e pontual das prestações ou seja revogada a autorização concedida pela administração fiscal.
Estamos, por conseguinte, perante um regime específico de regularização de dívidas, instituído também no interesse do próprio contribuinte, que, por essa via, beneficia da possibilidade de pagamento faseado das dívidas e de redução dos juros que fossem devidos pela cobrança coerciva. Acresce que a suspensão do prazo de prescrição das dívidas durante o período de pagamento em prestações, como determina o citado artigo 5º, n.º 5, desse diploma é um pressuposto necessário do próprio regime legal assim instituído.
O prazo de prescrição dos impostos periódicos foi fixado pelo artigo 48º, n.º 1, da Lei Geral Tributária em oito anos a contar do termo do ano em que ocorreu o facto tributário (o artigo 34º do CPT fixava em 10 anos o respectivo prazo prescricional, com idêntico termo inicial), e o diferimento do pagamento das dívidas fiscais, por efeito da adesão ao regime definido no Decreto-Lei n.º 124/96, pode atingir 150 prestações mensais, que corresponde a uma dilação temporal de doze anos e meio.
Assim sendo, a suspensão do prazo de prescrição das dívidas durante o período de pagamento em prestações é uma condição de exequibilidade do próprio regime legal, pois que, de outro modo, a adesão dos contribuintes devedores ao plano faseado de pagamento implicaria inevitavelmente a própria extinção da dívida remanescente, caso se mantivesse em curso o prazo prescricional.
Em todo este condicionalismo, qualquer contribuinte que tenha aderido ao regime de regularização de dívidas fiscais através do pagamento em 150 prestações mensais, não poderia invocar qualquer expectativa legítima relativamente à possibilidade de o prazo prescricional continuar a decorrer enquanto se mantivesse em vigor o procedimento especial de pagamento em prestações.
Se a função garantística da reserva de lei fiscal, como se deixou esclarecido, visa assegurar a previsibilidade dos elementos essenciais do imposto (e da situação fiscal) e a tutela de confiança do contribuinte, torna-se claro que nenhum motivo existia para uma intervenção parlamentar, no caso vertente, quando o que estava em causa era apenas a definição de uma solução jurídica que era exigida pela lógica do sistema e que se encontrava justificada à luz dos princípios gerais em matéria tributária.
De facto, a regularização de dívidas fiscais que o Decreto-Lei n.º 124/96 pretendeu regulamentar, não se enquadra na reserva de lei fiscal, tal como esta está configurada nos artigos 103º, n.º 2, e 165º, n.º 1, alínea i), da Constituição, e constitui antes competência legislativa concorrente do Governo, que lhe era conferida pelo artigo 201º, n.º 1, alínea a), da Constituição, na redacção então vigente. A suspensão do prazo de prescrição das dívidas durante o período de pagamento em prestações, tal como previsto no artigo 5º, n.º 5, desse diploma, reporta-se a um aspecto lateral desse específico regime legal, que é inerente às soluções normativas nele contidas, não introduzindo qualquer alteração no regime geral dos impostos (incluindo em matéria de prescrição), nem qualquer alteração que não fosse esperada pelos contribuintes.
A referida disposição legal não se encontra, por isso, contrariamente ao sustentado no acórdão recorrido, ferida de inconstitucionalidade orgânica.”
III - Decisão
3. Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 5.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 124/96 de 10 de Agosto.
b) Conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 14 de Julho de 2010.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano (subscrevi a decisão pelos fundamentos que constam da declaração de voto que apresentei no acórdão n.º 280/2010) – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos