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Processo n.º 1030/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. intentou no Tribunal Judicial da comarca de Faro acção com processo sumário contra B., pedindo que seja declarada a cessação, por caducidade, do contrato de arrendamento que tem por objecto o 1º andar do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, celebrado entre si e a mãe do Réu e, consequentemente, que este seja condenado a despejar o referido 1º andar onde habita e a restitui-lo à Autora.
Invocou que, tendo a mãe do Réu falecido em 29 de Novembro de 2007, o contrato de arrendamento havia caducado, não tendo o Réu título que legitimasse a ocupação do locado.
O Réu contestou, alegando que desde os 9 anos que vive no arrendado com a mãe e que a partir de 1999 abdicou da sua actividade profissional para passar a cuidar em exclusivo da mãe, residindo com ela em economia comum. Com base nestes factos sustentou a transmissão do arrendamento, apesar da sua situação não se encontrar abrangida pela previsão do artigo 57.º do NRAU, uma vez que a aplicação deste preceito a situações em que se criaram justas expectativas de transmissão do arrendamento é violadora de princípios constitucionais.
Após resposta da Autora, por se considerar que os autos continham todos os elementos para se decidir de mérito, foi proferida em 13-4-2009 ao abrigo do disposto no artigo 510.º, n.º 1, al b), do CPC, sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, declarou cessado, por caducidade, o contrato de arrendamento celebrado entre C. e D. e condenou o Réu a restituir à Autora o 1º andar do prédio situado na Rua … nº .. .., em Faro, inscrito na matriz predial sob o artigo n.º 3637 e descrito na Conservatória de Registo Predial de Faro sob o n.º 06770/200805526.
O Réu recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão proferido em 28-10-2009, julgou improcedente o recurso, com a seguinte fundamentação:
Conforme se constata das precedentes conclusões de recurso que, como se sabe delimitam o seu objecto (arts 690 nº 1 e 684 nº 3 do CPC) as questões a decidir relacionam-se com a inconstitucionalidade do art. 57 do NRAU, norma que foi aplicada pela sentença recorrida e saber ainda se opera a transmissão de arrendamento, conforme pugna o R, e ainda analisar se existe fundamento para o prosseguimento dos autos com vista a instrução dos factos que o recorrente alega sob os artigos 13 a 52 da sua contestação.
Desde logo, há que ter em consideração o regime jurídico aplicável, atenta à data do óbito da arrendatária (Novembro de 2007), sendo certo que o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU) aprovado pela Lei nº 6/2006 de 27 de Fevereiro, entrou em vigor em 27.08.2006.
No que concerne à aplicação da lei no tempo, dispõe o art. 26 da citada Lei nº 6/2006 que “os contratos celebrados na vigência do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321º- B/90 de 15 de Outubro, passam a estar submetidos ao NRAU com as especificidades dos números seguintes”, o que significa que as normas que dispõem directamente sobre o conteúdo da relação de arrendamento abrangem as relações já constituídas e são de aplicação imediata, ressalvadas as excepções contidas nos números 2 a 6 do citado preceito legal.
Também o art. 59 da Lei nº 6/2006 refere que “o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”.
A respeito da caducidade do contrato de arrendamento o Ac. da Rel. Lisboa de 13/3/2007 decidiu que a lei aplicável é aquela que regia a relação locatícia à data do decesso do arrendatário. (acessível in www.dgsi.pt).
No caso em apreço, a arrendatária faleceu em 29/11/2007, pelo que a lei aplicável à transmissão por morte do arrendatário é a Lei nº 6/2006 (NRAU), a qual relativamente aos contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro (RAU) estabelece no nº 2 do art. 26 do NRAU que à transmissão por morte se aplica o disposto no art. 57 do NRAU (cfr. neste sentido também Ac. Rel. Porto de 29/5/2008 acessível in www.dgs.pt/jtrp)
No que respeita à transmissão por morte do arrendatário, dispõe o nº 1 do art. 57 do NRAU que o arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto com residência no locado;
c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos frequente o 11º ou 12º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio superior;
e) Filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
No caso dos autos, o R é filho da arrendatária, mas não se encontra em nenhuma das situações contemplados no citado art. 57 nº 1 do NRAU.
E sendo assim e à luz do citado normativo não lhe assiste o direito à transmissão do arrendamento.
Como já referenciamos, face à data em que ocorreu a morte do arrendatário (29/11/2007) é o novo regime do NRAU que se aplica não fazendo qualquer sentido fazer apelo ao art. 85 do RAU, porquanto o citado art. 57 do NRAU não sofre de qualquer inconstitucionalidade, pelos motivos que adiante serão explanados.
Considera o apelante que a decisão recorrida viola a Constituição, nomeadamente, o princípio da igualdade consagrado no art. 13 da CRP e o art. 2º da CRP, no que importa ao respeito e à garantia dos direitos fundamentais.
Vejamos:
O art. 57 do NRAU ao invés do que defende o apelante, ao prever um regime de transitório de transmissão restritivo da expectativa jurídica do apelante não consubstancia uma violação do princípio da igualdade ínsito no art. 13 da Constituição da República Portuguesa.
Efectivamente, não se trata de duas soluções distintas para casos análogos, mas antes uma questão de sucessão de lei no tempo.
Acresce, no entanto, que a transmissão no arrendamento só se coloca no momento da morte do arrendatário, no caso, a mãe do apelante, sendo certo que este, até então, apenas tinha uma expectativa e não qualquer direito constituído.
Ora, ao tempo do óbito já se encontrava em vigor o dispositivo legal mais restritivo em termos de transmissão do direito de arrendamento, que obedeceu à nova política legislativa sobre arrendamento urbano (cfr. a este respeito o citado Ac da Relação do Porto de 29/5/2008 in www.dgsi.pt/jtrp).
Sobre esta questão escreveu-se no citado Acórdão: “Trata-se de nova política legislativa que pôs termo à transmissão do arrendamento como regra, desde que a pessoa transmissária vivesse em economia comum com o primitivo inquilino há mais de um ano, salvaguardando tão só as situações de excepção vertidas no art. 57, onde para além do vínculo familiar, exigiu a verificação de uma situação de ordem natural, carência económica ou de saúde, evidenciando um cunho proteccionista, querendo com isso claramente, promover a aquisição de habitação própria e a celebração de novos contratos de arrendamento, com o que isso tem de significado para a implementação do sector da construção, actualmente tão deprimido e necessitado de impulsos vários.
Não se diga que esta nova disciplina põe em causa a unidade do sistema legislativo, uma vez que, procurando dar respostas a novas necessidades sectoriais e conjunturais, em nada tem de condescender com a antiga disciplina, constituindo mesmo um corte com situações muitas vezes socialmente injustas em que o senhorio se via obrigado a manter um arrendamento sem qualquer justificação de ordem social, que agora é paradigma indispensável.
Do mesmo modo, não se diga que a aplicação da nova norma viola o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, uma vez que da mesma só poderão advir resultados mais justos sob o ponto de vista da protecção dos mais carenciados em razão da sua idade, formação profissional ou saúde pessoal, donde resultará tratamento muito mais igualitário, daqueles que efectivamente necessitem de manter o tecto onde viviam com o falecido inquilino, pondo-se termo à transmissão cega ou transmissão regra e optando-se pela transmissão excepção socialmente motivada “.
Também pelas razões supra apontadas não se mostra violado o art. 18 da Constituição da República Portuguesa com fundamento na restrição do direito à habitação, até porque os direitos constitucionais não podem ter-se como irrestringíveis, nem podem ser entendidos de forma geral e abstracta.
Refere o apelante que os autos devem prosseguir com vista a indagar os factos alegados sob os arts. 13 a 52 da contestação por os mesmos preencheram um motivo socialmente atendível impeditivo da caducidade.
Efectivamente, a caducidade do contrato de arrendamento operada com a morte da arrendatária torna desnecessária como se refere na sentença recorrida “a apreciação da situação de convivência do Réu em economia comum com a arrendatária mais de um ano anterior à data do óbito, já que mesmo que se lograsse provar tal facto essa circunstância não seria, nos termos legais, facto impeditivo da efectiva caducidade de arrendamento “.
Acresce também que os factos alegados nos apontados artigos da contestação não integram qualquer motivo socialmente atendível do ponto de vista constitucional, nomeadamente, por exemplo, quando o R., Engenheiro Civil de profissão, chega aí a invocar que a sua sobrevivência financeira depende da manutenção do arrendamento, o que também por essa via se toma desnecessária a instrução de tal matéria.
O Réu recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade do artigo 57.º do “Novo Regime do Arrendamento Urbano”, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, na interpretação de que tal disposição legal é aplicável à transmissão por morte do arrendatário, relativamente aos contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), quanto aos descendentes que convivessem com o arrendatário há mais de 1 (um) ano mas, à data do falecimento deste, tenham mais de 26 (vinte e seis) anos de idade e não sejam portadores de incapacidade superior a 60%, nomeadamente, nos casos em que exista um motivo socialmente atendível que tivesse determinado a permanência de tais descendentes na casa paterna, uma vez que com tal interpretação o Tribunal a quo ofendeu os princípios da confiança e da igualdade, dimanados pelos artigos 2.º, 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa.
Apresentou alegações com as seguintes conclusões:
“Do princípio do Estado de Direito emana uma prerrogativa de confiança, de modo a que todas as pessoas possam organizar e programar as suas vidas tendo em atenção o quadro legal por onde regem as suas recíprocas relações.
Daí que os direitos adquiridos em razão dessas expectativas juridicamente tuteladas), não devam ser modificadas, sem que seja garantida a estabilidade (imodificabilidade) dos interesses que licitamente eram tidos como certos.
Aliás, a unidade do sistema legislativo não comporta uma situação de desigualdade entre a lei nova e a lei velha, tendo, uma e outra, igual previsão para a mesma categoria de situações concretas, como a dos autos.
O artigo 57.º do 'Novo Regime do Arrendamento Urbano', aprovado pela Lei n.o 6/2006, de 27 de Fevereiro, é, nestes termos, inconstitucional e ofensivo dos principias da confiança e da igualdade, dimanados pelos artigos 2.°, 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa.
Mais, tal situação resulta evidente em todos os casos em que exista um motivo socialmente atendível que tivesse determinado a permanência de tais descendentes na casa paterna, como sejam, os casos em que os filhos permaneceram em casa para cuidar dos progenitores ou, por qualquer outro motivo socialmente atendível (ex: carência de meios que lhes permitissem conseguir habitação própria), optaram por continuar a viver na casa paterna, onde construíram os seus lares.
Tal inconstitucionalidade determina a revogação do douto Acórdão recorrido e a sua substituição por outro que julgue a acção totalmente improcedente.
Ou, caso se entenda que tal inconstitucionalidade apenas se verifica nos casos em que exista um motivo socialmente atendível que tivesse determinado a permanência de tais descendentes na casa paterna (como seja o que se verifica no caso sub judice), o prosseguimento dos presentes autos, para produção de prova quanto aos factos que determinam a existência de um motivo socialmente atendível.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O Recorrente pretende que se aprecie a inconstitucionalidade do artigo 57.º do “Novo Regime do Arrendamento Urbano” (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, na interpretação de que tal disposição legal é aplicável à transmissão por morte do arrendatário, relativamente aos contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), não abrangendo a transmissão para os descendentes que convivessem com o arrendatário há mais de 1 (um) ano mas, à data do falecimento deste, tenham mais de 26 (vinte e seis) anos de idade e não sejam portadores de incapacidade superior a 60%, nomeadamente, nos casos em que exista um motivo socialmente atendível que tivesse determinado a permanência de tais descendentes na casa paterna.
O recurso constitucional tem natureza instrumental pelo que as normas ou interpretações normativas impugnadas devem integrar a ratio decidendi da decisão recorrida. Da leitura do acórdão do Tribunal da Relação de Évora constata-se que este considerou que os motivos invocados pelo Recorrente para permanecer com a sua mãe no arrendado não integravam um motivo socialmente atendível, pelo que esse segmento da interpretação normativa questionada não pode integrar o objecto deste recurso.
Revela-se também necessário precisar que o Acórdão recorrido apenas considerou aplicável o regime do artigo 57.º, do NRAU, à transmissão por morte dos arrendatários dos contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), quando a morte tenha ocorrido após a entrada em vigor do NRAU, pelo que a interpretação normativa a sindicar deve conter esta precisão.
Constata-se ainda que, certamente por equívoco, o tribunal recorrido apreciou a questão colocada como se o contrato de arrendamento em causa tivesse sido celebrado na vigência do RAU, quando considerou provado que o mesmo havia sido outorgado há mais de 40 anos, isto é anteriormente à entrada em vigor daquele diploma. Contudo, como não compete a este Tribunal corrigir a aplicação do direito aos factos efectuada pelo Tribunal recorrido, é sobre o juízo que fundamentou essa aplicação, independentemente da sua correcção, que deve recair a fiscalização de constitucionalidade peticionada, sendo certo que o artigo 28.º, do NRAU, determina também a aplicação aos contratos de arrendamento habitacionais celebrados anteriormente ao RAU, precisamente as mesmas normas transitórias previstas para os contratos outorgados na vigência do RAU, designadamente o disposto no artigo 57.º, do NRAU, pelo que tal equívoco não altera os termos da questão de constitucionalidade a decidir.
Nestes termos, deve este Tribunal verificar a constitucionalidade do artigo 57.º do “Novo Regime do Arrendamento Urbano” (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, com o sentido de que tal disposição legal é aplicável à transmissão por morte do arrendatário, relativamente aos contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), quando a morte do arrendatário tenha ocorrido posteriormente à entrada em vigor do NRAU, não abrangendo a transmissão para os descendentes que convivessem com o arrendatário há mais de 1 (um) ano mas, à data do falecimento deste, tenham mais de 26 (vinte e seis) anos de idade e não sejam portadores de incapacidade superior a 60%.
2. Do mérito do recurso
2.1. A evolução legislativa
Apesar da regra ser a caducidade do contrato de arrendamento de prédio urbano, para habitação, no caso de morte do arrendatário, o legislador, atendendo a que o agregado familiar deste é quase sempre beneficiário desse contrato e, muitas vezes, comparticipa até na satisfação da respectiva contraprestação, vem, desde há bastante tempo, a admitir a transmissão por morte da posição contratual do inquilino para os elementos desse núcleo familiar.
No Código de Seabra, a regra era a transmissão sucessória da posição de arrendatário (artigo 1619.º).
Com a I Grande Guerra surgiu a necessidade de garantir a conservação da casa de habitação não só aos mobilizados e suas famílias, como a todos os afectados pela grave crise económica resultante daquele conflito mundial, tendo sido implementadas medidas legislativas proteccionistas dos arrendatários.
Assim, após inicialmente o Decreto n.º 1.079, de 23 de Novembro de 1914, destinado a vigorar enquanto subsistir a crise que o motiva (artigo 6.º), ter limitado os aumentos de renda na renovação dos contratos (artigos 1.º e 2.º), a Lei n.º 828, de 28 de Setembro de 1917, aprovada para vigorar enquanto durar o estado de guerra e até seis meses depois de assinado o tratado de paz (artigo 9.º), proibiu os senhorios de intentarem acções de despejo que se fundem em não convir-lhes o contrato de arrendamento (artigo 2.º), consagrando deste modo a imposição da automática prorrogação legal dos arrendamentos, medida que apesar de ter sido adoptada com um cunho transitório, havia de marcar este tipo contratual durante quase todo o século XX.
Perante a inoperância dos prazos acordados pelas partes para o termo dos contratos de arrendamento urbanos, se a regra da transmissão, por sucessão, da posição do arrendatário ainda se manteve no regime aprovado pelo Decreto n.º 5.411, de 17 de Abril de 1919 (artigo 34.º), já a Lei n.º 1662, de 4 de Setembro de 1924 (artigo 1.º, § 1.º, 3.º), apenas admitiu essa transmissão para o cônjuge do arrendatário ou parente legitimário que com ele habitasse no arrendado há mais de 6 meses na data da sua morte, de modo a evitar a duração infinita dos contratos de arrendamento, assegurada por sucessivas transmissões sucessórias da posição do arrendatário, sem quaisquer limitações.
Após discussão acesa no domínio desta legislação sobre o número de vezes que se podia transmitir o mesmo arrendamento, por morte do inquilino (vide apontamentos sobre esta discussão, em PINTO LOUREIRO, “Tratado da Locação”, pág. 170-173, do II vol., ed. de 1947, da Coimbra Editora) o artigo 46.º, da Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948, veio admitir uma única transmissão a favor do cônjuge do primitivo arrendatário, dos seus ascendentes ou descendentes que com ele vivessem há um ano, e apenas permitiu, excepcionalmente, uma segunda transmissão a favor dos ascendentes ou descendentes do primitivo arrendatário, quando tivesse existido uma primeira transmissão a favor do cônjuge sobrevivo do primeiro arrendatário. Como opinou a então Câmara Corporativa “não pode aceitar-se a solução de criar à volta do arrendamento, e à custa alheia, uma verdadeira instituição vincular”, havendo razões “para limitar um regime odioso que, segundo certos entendimentos, parece transformar o arrendamento, à custa do senhorio, num vínculo perpétuo em benefício da família do arrendatário”.
Em 1966, o Código Civil, no artigo 1111.º, que passou a regular esta matéria, veio ampliar a possibilidade de transmissão da posição de arrendatário para todos os parentes ou afins na linha recta, além do cônjuge, desde que com ele vivessem no arrendado há, pelo menos, um ano.
O Decreto-Lei n.º 293/77, de 20 de Julho, passou a não limitar o número de transmissões possíveis, eliminando do artigo 1111.º o termo “primitivo”, pelo que a morte de qualquer arrendatário, sendo ou não já ele um transmissário do arrendamento, originava nova e ilimitada transmissão da posição contratual.
O Decreto-Lei n.º 328/81, de 4 de Dezembro, veio repor o regime anterior, reintroduzindo o termo “primitivo” no artigo 1111.º, o que foi mantido pela Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro, que acrescentou à classe dos transmissários a pessoa unida de facto ao primitivo arrendatário, que com ele vivesse há mais de 5 anos.
O RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, regulou a transmissão do direito ao arrendamento para habitação no artigo 85.º, sem se afastar muito da solução mais recente do Código Civil.
A Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, (artigo 5.º), veio diminuir o período de duração da união de facto, que permitia a transmissão do arrendamento para o companheiro do arrendatário falecido, para dois anos, tendo a Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, (artigo 5.º), estendido a união de facto a casais do mesmo sexo e melhorado a posição do unido de facto na ordem de preferências da transmissão.
Por sua vez, a Lei n.º 6/2001, também de 11 de Maio, veio estender a transmissão do arrendamento a todas as pessoas que convivessem com o arrendatário falecido nos dois anos anteriores à sua morte em economia comum.
Assim, no período anterior à entrada em vigor do NRAU, era o seguinte o regime das transmissões da posição de arrendatário por morte deste, consagrado no referido artigo 85.º, do RAU, na sua última versão:
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver:
a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;
b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano;
c) Pessoa que com ele viva em união de facto há mais de dois anos, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens
d) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
e) Afim na linha recta, nas condições referidas nas alíneas b) e d);
f) Pessoas que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos.
2 - Caso ao arrendatário não sobrevivam pessoas na situação prevista na alínea b) do n.º 1, ou estas não pretendam a transmissão, é equiparada ao cônjuge a pessoa que com ele vivesse em união de facto
3 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o parente ou afim mais próximo e mais idoso.
4 - A transmissão a favor dos parentes ou afins também se verifica por morte do cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o direito ao arrendamento.
O NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, nas suas normas finais, no artigo 59.º, n.º 1, dispôs que o novo regime por si implantado se aplicava aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor (27 de Junho de 2006), bem como às relações contratuais que subsistam nessa data, sem prejuízo contudo do estabelecido nas normas provisórias.
Ora, nestas últimas normas o artigo 26.º, n.º 2, determina que, relativamente aos contratos celebrados durante a vigência do RAU, se aplica o disposto no artigo 57.º, que regula a transmissão por morte do arrendamento para habitação, o qual também é aplicável aos contratos de arrendamento celebrados anteriormente à vigência do RAU, por força do disposto no artigo 28.º.
Assim, relativamente ao regime da transmissão da posição contratual do arrendatário habitacional, por morte deste, o NRAU consagrou uma solução aplicável aos arrendamentos celebrados após a sua entrada em vigor, introduzida no artigo 1106.º, do Código Civil, e outra aplicável aos arrendamentos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor, constante do seu artigo 57.º.
No artigo 1106.º, do Código Civil, aplicável aos contratos de arrendamento celebrados após a entrada em vigor do NRAU, dispõe-se o seguinte:
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado ou pessoa que com o arrendatário vivesse no locado em união de facto e há mais de um ano;
b) Pessoa que com ele residisse em economia comum e há mais de um ano.
2 - No caso referido no número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, em igualdade de circunstâncias, sucessivamente para o cônjuge sobrevivo ou pessoa que, com o falecido, vivesse em união de facto, para o parente ou afim mais próximo ou de entre estes para o mais velho ou para o mais velho de entre as restantes pessoas que com ele residissem em economia comum há mais de um ano.
3 - A morte do arrendatário nos seis meses anteriores à data da cessação do contrato dá ao transmissário o direito de permanecer no local por período não inferior a seis meses a contar do decesso.
E no artigo 57.°, do NRAU, aplicável aos contratos de arrendamento celebrados anteriormente à entrada em vigor deste diploma, consta o seguinte:
1—O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto, com residência no locado;
c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.° ou 12.° ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
2 — Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
3 — Quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles;
4 — A transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, nos termos dos números anteriores, verifica-se ainda por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos das alíneas a), b) e c) do n.° 1 ou nos termos do número anterior».
Da análise comparatística dos regimes do revogado artigo 85.º, do RAU, e do artigo 1106.º, do C.C., aplicável aos contratos celebrados após a entrada em vigor do NRAU, constata-se que o novo regime do Código Civil liberalizou deliberadamente a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, ao que não foi estranho o fim do sistema da renovação automática dos contratos de arrendamento para habitação.
Já o regime transitório do artigo 57.º, do NRAU, visou sobretudo aperfeiçoar, na óptica do novo legislador, as regras de transmissão do arrendamento, no âmbito do cariz vinculístico da grande maioria dos contratos a que era aplicável, diminuindo em algumas circunstâncias a possibilidade de transmissão do arrendamento e facilitando-a noutras (vide, com apreciações globais não inteiramente coincidentes sobre o sentido geral deste regime transitório, relativamente ao regime do RAU, SOUSA RIBEIRO, em “O novo regime do arrendamento urbano: contributos para uma análise”, em “Estudos jurídicos em homenagem ao Prof. Dr. António Mota Veiga, pág. 770-771, da ed. de da Almedina, MENEZES LEITÃO, em “Arrendamento Urbano”, pág. 122, da ed. de 2006, da Almedina, e RITA LOBO XAVIER, em “Concentração ou transmissão do direito ao arrendamento habitacional em caso de divórcio ou morte”, em “Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão”, vol. II, pág. 1046, da ed. de 2008, da Almedina).
Relativamente a uma primeira transmissão para um filho do arrendatário, uma vez que é essa realidade que está em causa neste processo, constata-se que no artigo 85.º, do RAU, apenas se exigia que este vivesse no arrendado com o progenitor arrendatário há mais de um ano à data da sua morte, ou que tivesse menos de um ano de idade; o artigo 1106.º, do C.C., apenas aplicável aos novos contratos de arrendamento celebrados após a entrada em vigor do NRAU, ao englobar os descendentes do arrendatário nas pessoas que com ele viviam em economia comum, além de continuar a exigir que o filho do arrendatário vivesse com este no arrendado há mais de um ano, à data da sua morte, passou a exigir que essa convivência se desenrolasse numa situação de economia comum; o artigo 57.º, do NRAU, aplicável aos contratos anteriores à sua entrada em vigor, apenas admitiu a transmissão do arrendamento para filho do arrendatário com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e fosse menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequentasse o 11.° ou 12.° ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior, ou que fosse portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%, pelo que, relativamente ao regime do RAU, restringiu a possibilidade de transmissão do arrendamento para os descendentes do arrendatário.
2.2. A questão de constitucionalidade
A decisão recorrida aplicou neste caso o regime mais restritivo do artigo 57.º, do NRAU, seguindo o critério de que é aplicável o regime que vigorar na data da morte do arrendatário e tendo presente a norma transitória estabelecida no artigo 26.º, do NRAU, não admitindo, assim, a transmissão de um arrendamento para um filho do arrendatário maior de 26 anos e sem qualquer incapacidade, por morte do arrendatário ocorrida após o NRAU ter entrado em vigor.
O Recorrente acusa a aplicação do artigo 57.º, do NRAU, nestas condições, de violar, por um lado, o princípio da igualdade, face ao regime do artigo 1106.º, do C.C., e por outro, o princípio da confiança, tendo em conta as expectativas criadas pelo anterior regime estabelecido no artigo 85.º, do RAU.
O Recorrente invoca ainda, como parâmetro constitucional violado pela interpretação normativa questionada, o disposto no artigo 18.º, da C.R.P., pretendendo certamente referir-se à proibição de retroactividade das leis restritivas dos direitos liberdades e garantias contida no n.º 3 deste artigo.
2.3. A proibição de retroactividade das leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias
O artigo 18.º, n.º 3, da C.R.P., proíbe que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias consagrados no título II, da Parte I, da Constituição, e dos direitos fundamentais de natureza análoga (artigo 17.º, da C.R.P.), tenham efeito retroactivo.
Um dos direitos fundamentais de natureza análoga que vem sendo apontado por este Tribunal é o direito à propriedade privada, constante do artigo 62.º, da C.R.P.
O conceito constitucional de propriedade não corresponde ao civilístico, abrangendo não só o direito real pleno, mas também os mais diversos direitos subjectivos de valor patrimonial, incluindo os direitos de crédito, designadamente o direito ao arrendamento (vide, neste sentido, BACELAR GOUVEIA, em “Arrendamento urbano, Constituição e justiça. Perspectivas de direito constitucional e direito processual”, pág. 47-49, ed. de 2004, de O espírito das leis e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 267/95, em ATC, vol. 31.º, pág. 305), o qual, quando contraposto ao direito de propriedade do senhorio, exigiria a conciliação de dois direitos de propriedade concorrentes (cfr. SOUSA RIBEIRO, em “O direito de propriedade na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Relatório elaborado no âmbito da Conferência Trilateral Espanha/Itália/Portugal, realizada em 8 a 10 de Outubro de 2009, acessível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/textos).
Contudo, o direito constitucional à propriedade privada não beneficia do regime dos direitos, liberdades e garantias, nomeadamente das limitações impostas às leis restritivas pelo artigo 18.º, da C.R.P., em toda a sua extensão, mas apenas no seu núcleo essencial, onde se revela a analogia com aquela categoria constitucional.
Ora, se o Tribunal Constitucional já afirmou que a liberdade genérica de transmissão do direito de propriedade, sem condicionamentos, não constitui uma dimensão do direito de propriedade à qual se aplique o regime dos direitos, liberdades e garantias (Acórdãos n.º 187/2001, em ATC, vol. 50.º, pág. 29, e n.º 425/2000, em ATC, vol. 48.º, pág. 255), seguramente que a transmissão por morte de um direito de gozo com um cunho pessoal tão acentuado como é o do arrendatário habitacional, está fora do núcleo essencial de protecção do direito fundamental à propriedade privada, não sendo equiparável à categoria dos direitos, liberdades e garantias.
Além disso sempre seria questionável o efeito retroactivo da norma em causa, uma vez que estamos perante um caso de retrospectividade.
Assim sendo, nunca a interpretação normativa sindicada poderia estar sob o alcance da proibição contida no artigo 18.º, n.º 3, da C.R.P.
2.4. O princípio da igualdade
Conforme acima já se constatou o NRAU consagrou dois regimes de transmissão do arrendamento habitacional por morte do arrendatário. Um aplicável aos contratos celebrados que são posteriores à sua entrada em vigor e que consta da nova redacção do artigo 1106.º, do C.C., e outro, transitório, constante do artigo 57.º, do NRAU, aplicável aos contratos anteriormente celebrados.
Este último regime é mais restritivo, relativamente à admissibilidade da transmissão do arrendamento, do que aquele que é aplicável aos novos contratos de arrendamento, nomeadamente no que respeita à transmissão do arrendamento para filhos maiores de 26 anos e sem qualquer incapacidade, ou com uma incapacidade inferior a 60%.
Enquanto o artigo 1106.º, do C.C., apenas exige, para que se verifique a transmissão do arrendamento para um filho nessas condições, que este tenha vivido em economia comum com o progenitor arrendatário no ano anterior à morte deste, já o artigo 57.º, do NRAU, não permite essa transmissão.
A diferença de regimes a operar sincronicamente tem o seu fundamento na circunstância de nos novos contratos de arrendamento habitacional já não vigorar o sistema de prorrogação forçada para o senhorio do vínculo contratual, ao contrário do que sucede na maioria dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU. Enquanto nestes, com excepção dos contratos de duração limitada previstos no artigo 98.º e seg., do RAU, o senhorio não pode denunciar o contrato no termo do prazo acordado, estando vinculado através de renovações sucessivas, enquanto essa for a vontade do arrendatário, como ocorre com o contrato de arrendamento sub iudice, nos contratos celebrados após a entrada em vigor do NRAU, o prolongamento da relação contratual já não lhe pode ser imposto unilateralmente pelo arrendatário. Nestes novos contratos, o senhorio pode opor-se à renovação do contrato no termo do prazo acordado (artigo 1096.º, n.º 2, e 1097.º, do C.C.), ou não tendo sido fixado qualquer prazo, pode denunciá-lo com uma antecedência de 5 anos (artigo 1101.º, c), do C.C.).
Na verdade, o alcance do direito à transmissão por morte da posição contratual do arrendatário habitacional está intimamente conexionado com o grau de tutela conferido ao interesse na continuidade da relação contratual. Quando o senhorio deixa de estar sujeito à perduração indefinida do contrato, perdem sentido todos os resguardos e limitações que rodeavam o direito à transmissão com vista a atenuar o impacto negativo que ela ocasionava nos interesses do senhorio (SOUSA RIBEIRO, na ob. cit., pág. 764-765,).
Por isso existe uma diferença decisiva no regime da generalidade dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU, relativamente àquele que disciplina os contratos posteriormente outorgados, que fundamenta e justifica as diferenças de tratamento jurídico da admissibilidade da transmissão por morte da posição do arrendatário consagradas no artigo 1106.º, do C.C., para os novos contratos, e no artigo 57.º, do NRAU, para os contratos pré-existentes.
Essa diferença já não se descortina entre os contratos de duração limitada celebrados na vigência do RAU e os novos contratos celebrados ao abrigo do NRAU, mas isso é uma questão que não releva para a decisão do presente recurso, uma vez que o contrato aqui em causa é um contrato sujeito ao regime da renovação obrigatória.
Ora, como ensinam J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA (in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 399, da 4.ª Edição revista, da Coimbra Editora), no apuramento das violações ao princípio da igualdade, na vertente da proibição do arbítrio, importa ter presente que «(...) a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da “discricionariedade legislativa” são violados, isto é, quando, a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma “infracção” do princípio do arbítrio.»
Tendo sido apurado um suporte material bastante para o tratamento desigual sincrónico apontado pelo Recorrente, não se pode considerar que essa distinção viole o princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º, da C.R.P.
2.5. O princípio da confiança
O Recorrente também acusa a interpretação normativa impugnada de não ter respeitado o princípio da confiança ínsito ao Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da C.R.P., uma vez que com a sua aplicação foram defraudadas as expectativas que lhe foram criadas pelo regime estabelecido no RAU e que foram determinantes para a sua permanência no arrendado.
Efectivamente, como acima se verificou, o RAU (artigo 85.º) permitia a transmissão do arrendamento, por morte do arrendatário, para os descendentes que vivessem com este em economia comum há mais de um ano, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade.
O NRAU (artigo 57.º) alterou este regime, passando a não permitir, nos contratos que lhe são anteriores, a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60%.
Com esta modificação visou-se limitar a transmissão do arrendamento para os descendentes que convivessem com o arrendatário em economia comum apenas àqueles que, presumivelmente, atenta a sua idade ou grau de incapacidade, vivessem numa situação de dependência económica do transmitente. Com esta limitação acentuou-se o cariz social da transmissibilidade da posição de arrendatário, assegurando-a somente aos descendentes que, em princípio, terão dificuldade económica em aceder ao gozo de uma habitação segundo as regras actuais do mercado. Nos restantes casos, entendeu-se que a mera convivência com o arrendatário falecido no locado não era suficiente para se sacrificarem não só os interesses do senhorio no termo de um contrato sujeito a um regime severamente vinculístico, mas também o interesse público de ampliação do mercado de arrendamento.
Como neste caso a morte da arrendatária ocorreu em 29-11-2007, ou seja posteriormente à data da entrada em vigor do NRAU, em 27 de Junho de 2006, a decisão recorrida, socorrendo-se do critério que a transmissão do arrendamento em caso de morte do arrendatário é regulada pela lei vigente à data da morte, aplicou o disposto no artigo 57.º deste diploma, não reconhecendo ao Réu, filho da arrendatária, mas maior de 26 anos e sem qualquer incapacidade, o direito a ingressar na posição contratual da sua mãe, apesar deste alegar que vivia com ela há mais de um ano, em economia comum.
Tem sido entendido que os preceitos que desde o princípio do século XX estabelecem as regras do arrendamento de prédios urbanos, vêm consagrando um regime de severas limitações à liberdade contratual, impondo importantes restrições e vínculos à autonomia da vontade privada, de modo a assegurar uma política de justiça social. Neste domínio as partes não são encaradas pela lei como contraentes, mas enquanto membros de uma determinado grupo social (inquilinos e senhorios), cujos interesses, pela sua relevância na dinâmica da sociedade, importa reger em abstracto, independentemente do acto que deu origem à situação em concreto. É este carácter público e de forte incidência politico-social da legislação sobre o contrato de arrendamento que exige que também ele seja encarado ao lado de institutos onde a vontade das partes cede perante os interesses comunitários, sendo por isso a lei nova de aplicação imediata aos contratos pré-existentes.
Nesta linha e tendo ainda presente que os interessados na transmissão do arrendamento não intervieram na outorga do respectivo contrato, tem sido aplicado uniformemente pela jurisprudência o critério de que o regime da transmissão por morte da posição do arrendatário é o definido pela lei que está em vigor à data do evento que determina essa transmissão – o óbito do arrendatário – e não pela lei que vigorava na data em que foi celebrado o contrato.
O recorrente fundamenta a existência das expectativas que teriam sido afectadas pela aplicação do regime previsto no artigo 57.º, do NRAU, no facto da lei que estava em vigor quando ele vivia no arrendado com a mãe lhe assegurar a transmissão do arrendamento, caso a sua mãe viesse a falecer, o que, inclusive, teria pesado na sua decisão de permanecer no arrendado.
O Tribunal Constitucional tem dito que a afectação de expectativas legítimas resultantes duma alteração legislativa só é inadmissível quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas constantes não possam contar, não sendo a mesma ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes.
Nesta situação, a incerteza do momento da morte, aliada ao facto das condições exigidas pelo RAU se reportarem a esse momento (convivência com o arrendatário no ano anterior à sua morte) não permite de modo algum que se reconheça como legítima qualquer expectativa de transmissão do arrendamento alicerçada apenas num juízo de prognose que tem por base a manutenção hipotética de todos os dados de facto e de direito até à data da morte do arrendatário.
Na verdade, só nesse momento é que era possível constatar se estavam ou não preenchidos os requisitos da transmissibilidade, pelo que não tem fundamento a constituição anterior de qualquer posição de confiança merecedora de protecção.
Na época em que o Recorrente viveu com a mãe no arrendado, durante a vigência do RAU, a ordem jurídica não lhe permitiu, num juízo de razoabilidade, a formação de qualquer expectativa legítima de que ele iria suceder na posição de arrendatário que pudesse limitar a aplicação de qualquer alteração legislativa nesse domínio, ocorrida antes do óbito da mãe, no sentido de não admitir essa sucessão.
O recorrente podia depositar esperanças ou até expectativas de natureza política, de que nunca tendo o legislador limitado a transmissão do arrendamento para os descendentes que convivessem com o arrendatário no período anterior à sua morte, nomeadamente em função da idade ou do grau de incapacidade, essa orientação legislativa não viesse a ser tomada. Mas esses sentimentos ou convicções não têm relevância jurídica e não podem pesar na delimitação da área de liberdade de conformação do legislador.
Daí que também não se mostre violado pela interpretação normativa sindicada o princípio da confiança, como emanação da ideia de Estado de direito democrático.
2.6. Conclusão
Não se revelando que a interpretação normativa questionada viole qualquer parâmetro constitucional, deve o recurso ser julgado improcedente.
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Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por B. do acórdão proferido nestes autos pelo Tribunal da Relação de Évora em 28 de Outubro de 2009.
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Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de Maio de 2010
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Catarina Sarmento e Castro
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos