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Processo n.º 159/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., inconformado com a decisão sumária proferida a 18 de Março de 2010, vem
dela reclamar dizendo o seguinte:
“1.º - A Douta Decisão Sumária ora reclamada decidiu negar provimento ao recurso
interposto pelo reclamante para este Douto Tribunal Constitucional por entender,
em síntese e com interesse para esta reclamação, que a « (..) matéria, (..), não
cabe já na esfera de competências do Tribunal Constitucional em sede do recurso
de fiscalização concreta mas exclusivamente com a adequação da interpretação do
direito infraconstitucional.
2.° - Considerando os termos vertidos no requerimento de interposição do recurso
para o Tribunal Constitucional e atenta a fundamentação vertida a fls. 3 e 4 da
Decisão Sumária em crise, não pode o recorrente conformar-se com tal decisão.
3° - Ora, de acordo com a melhor Doutrina e Jurisprudência produzida neste
âmbito, a admissibilidade desta espécie de fiscalização concreta de
constitucionalidade depende, além de outros, da verificação cumulativa de dois
requisitos essenciais, a saber: por um lado exige-se que a inconstitucionalidade
da norma tenha sido, previamente, suscitada pelo recorrente durante o processo e
de forma processualmente adequada e, por outro, que tal norma, não obstante a
arguição da sua inconstitucionalidade, tenha sido depois utilizada na decisão
objecto do recurso, como fundamento normativo do próprio julgamento da causa.
4.º - O Recorrente suscitou a questão da constitucionalidade normativa em crise
de modo processualmente adequado e reportada ao artigo 400.º n.° 1 alínea f) do
CPP.
5.° - Por seu turno, também o segundo dos pressupostos aludidos se tem por
observado, dado que o objecto do recurso, de acordo com o que resulta do
requerimento de interposição, assenta na interpretação normativa extraída do
artigo 400.° n.° 1 alínea f) do CPP.
6.° - Tendo tal dimensão interpretativa sido efectivamente aplicada pela decisão
recorrida.
7° - Resulta claro que o que está aqui em questão é a dimensão interpretativa
extraída da norma jurídica ínsita no artigo 400.° n.° 1 alínea f) do CPP e que
quer o Tribunal da Relação do Porto assim como o Despacho do Exmo. Sr. Juiz
Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Janeiro de 2010, aplicadas
ao caso concreto em desconformidade patente com o vertido na Lei Fundamental, o
que admite — e impõe até — o controlo normativo da constitucionalidade por parte
deste Tribunal Constitucional.
8.° - Trata-se de uma questão de verdadeira inconstitucionalidade normativa,
dado que o que o ora reclamante invoca e questiona por desconformidade face à
Constituição é a interpretação, manifestamente inconstitucional extraída pelo
Tribunal da Relação do Porto e sustentada no Despacho do Exmo. Sr. Juiz
Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Janeiro de 2010 daquele
preceito legal e cuja aplicação ao caso «sub judice» determinou e permitiu
sustentar o princípio geral adoptado da irrecorribilidade da decisão recorrida.
9.° - E, assim, da negação do direito ao recurso que lhe assiste.
10.º - A interpretação efectuada ao artigo 400.» n.° 1 alínea f) do CPP, atentas
as circunstâncias e no sentido da inadmissibilidade do recurso, revela-se ilegal
e inconstitucional por violação do artigo 9°, n.° 2 do CC e do artigo 32.°, n.°5
1, 2 e 5 da CRP.
11.º - O despacho reclamado violou também os artigos 61.º, n.° 1 alínea i),
399.° e 401°, n.° 1 alínea b), todos do CPP.
12.º - Se está em causa um «3.° grau de jurisdição» é porque a lei processual
penal
(infraconstitucional), através do citado artigo 400.° n.° 1 alínea f) do CPP, o
permite em nome das garantias de defesa e da segurança jurídica em caso de não
haver dupla conforme nos anteriores julgamentos.
13.° - Argumentar com a ausência de garantia a esse exame pelo Supremo Tribunal
de Justiça no presente caso significa pura e simplesmente admitir que o recurso
tratar-se-á de um «mero favor» concedido ao recorrente, uma «graça excepcional»
que o sistema jurídico lhe faculta quando, na verdade, mais não se trata do que
a tradução de uma regra geral com assento constitucional o da articulação do
direito à defesa (artigo 32.° n.° 1 da CRP) com a necessidade de segurança
(artigo 27.° n.° 1 da CRP), no quadro do direito de acesso aos tribunais (artigo
20.° n.° 1 da CRP).
14.° - A interpretação da mencionada alínea f), vista a circunstância de o
Acórdão da Relação do Porto não ter confirmado a decisão de 1.ª instância,
tendo-a até alterado consagra, a seu ver, um duplo grau de recurso em termos de
matéria de direito em relação às decisões de juiz singular alteradas pelo
Tribunal da Relação nos sobreditos termos, conferindo-lhes um superior
coeficiente garantistico.
15.° - Tal sugere precisamente a ausência de conformidade das instâncias em
relação à própria valoração da culpa e medida da pena, tudo questões de direito
que é lícito ao STJ sindicar, porventura em medida mais benigna.
16.° - O recurso penal — que consta do artigo 2.° do Protocolo n.° 7 à Convenção
para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, aprovado,
para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.° 22/90, de 27 de
Setembro e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.° 51/90 — é um
dos direitos fundamentais do arguido.
17.° - Consagrado pela Revisão Constitucional de 1997, enquanto afirmação de um
‘due process of law’, assegurando ao arguido o direito ao reexame da questão por
um outro tribunal situado num plano superior, oferecendo lhe acrescidas
garantias de defesa e imparcialidade.
18.° - Tal interpretação da não admissão desse terceiro grau, na hipótese
normativa considerada, configura-se assim irrazoável arbitrária e
desproporcional.”
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“3. Estão reunidos os pressupostos para a emissão de decisão sumária ex vi
artigo 78.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, por se tratar de questão
simples na medida em que existe já jurisprudência anterior que versa esta
matéria, sendo a mesma de manter.
O Recorrente sustenta a inconstitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, alínea f),
do Código de Processo Penal (CPP) quando interpretado no sentido de que é
irrecorrível o acórdão proferido em segunda instância que concede parcial
provimento ao recurso na medida em que revogou e substituiu a pena acessória
aplicada por outra de diferente natureza, não se verificando, deste modo, o
requisito previsto na lei da confirmação da decisão anterior. O parâmetro
constitucional invocado é o artigo 32.º. Desde já se impõe a concretização deste
parâmetro relevando, no que toca à questão suscitada, o n.º 1 daquele preceito
constitucional relativo às garantias de defesa em processo criminal. Estas
garantias de defesa incluem, como se resulta expressamente do preceito, o
direito ao recurso.
O Tribunal Constitucional tem sustentado, de modo reiterado e unânime, que a
concretização do direito ao recurso em processo criminal exige, de modo a lograr
satisfazer as exigências constitucionais, a consagração legislativa de pelo
menos um grau de recurso. Já não se exige, de outra banda, o duplo grau de
recurso ou triplo grau de jurisdição.
Por todos, veja-se o que se afirmou no Acórdão n.º 64/2006, tirado em Plenário,
que julgou não inconstitucional a norma constante da alínea f) do n.º 1 do
artigo 400º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que
não é admissível recurso interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal
de Justiça de um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1ª Instância,
o tenha condenado numa pena não superior a oito anos de prisão, pela prática de
um crime a que seja aplicável pena superior a esse limite:
‘(…) como repetidamente o Tribunal tem afirmado, a Constituição não impõe um
triplo grau de jurisdição ou um duplo grau de recurso, mesmo em Processo Penal.
Não se pode, portanto, tratar a questão de constitucionalidade agora em causa na
perspectiva de procurar justificação para uma limitação introduzida pelo direito
ordinário a um direito de recurso constitucionalmente tutelado.
A norma que constitui o objecto do presente recurso, e que define, nos termos
expostos, a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
releva, assim, do âmbito da liberdade de conformação do legislador.
Como se afirmou no acórdão n.º 640/2004, não é arbitrário nem manifestamente
infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de
recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no
caso, possa ser aplicada.
A norma em apreciação não viola, pois, qualquer direito constitucional ao
recurso ou qualquer regra de proporcionalidade. (…)’
Respeitado que se encontre aquele conteúdo mínimo exigível assente no duplo grau
de recurso, a definição legislativa do regime dos recursos cabe inteiramente ao
legislador no âmbito da sua inviolável margem de conformação, desde que as
soluções consagradas não se revelem arbitrárias ou desproporcionais. Deste modo,
saber se a substituição da pena acessória deve relevar para efeitos de se
considerar, ou não, confirmada a decisão proferida em 1.ª instância, nos termos
do disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, é matéria que já se
relaciona exclusivamente com a adequação da interpretação do direito
infra-constitucional. Esta matéria, no entanto, não cabe já na esfera de
competências do Tribunal Constitucional em sede do recurso de fiscalização
concreta.”
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se
no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A reclamação deduzida carece de fundamento. Desde logo, não se percebe a
utilidade de tudo o que vem invocado a propósito do cumprimento dos pressupostos
processuais dado que a decisão de que se reclama conheceu, efectivamente, do
objecto do recurso, negando-lhe provimento.
4.1. Como se referiu na decisão, a jurisprudência constitucional tem afirmado
reiteradamente que o direito ao recurso em processo penal abrange o direito a um
grau de recurso. O que o Reclamante pretendia, in casu, era ver reconhecido o
direito a um segundo grau de recurso, sustentando que não se tratará de “mero
favor concedido ao recorrente” ou de “graça excepcional que o sistema jurídico
lhe faculta”. Em caso algum a margem de actuação do legislador, cujas fronteiras
são delimitadas pelos imperativos constitucionais, se confunde com “favor” ou
“graça excepcional”… Trata-se apenas de escolha legislativa, de opção
conformadora que a este Tribunal não compete escrutinar desde que respeitadas
tais fronteiras.
4.2. O Reclamante vem agora alegar que a interpretação efectuada pela Relação do
artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP é “irrazoável, arbitrária e
desproporcional.” Não só não curou, no entanto, de fundamentar tais constatações
na medida em que deriva tal conclusão das premissas fundamentais que consagram o
direito ao recurso no moldes já referidos, como esta invocação surge nesta sede
ex novo, verificando-se aqui um alargamento do objecto do recurso que não pode
ter lugar nesta fase processual.
Pelo que se impõe concluir pela improcedência da reclamação.
III – Decisão
5. Assim, acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e, em
consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar conhecimento
do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 04 de Maio de 2010
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos