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Processo n.º 105/2010
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito do incidente de cessação de alimentos, apensado a processo especial de alimentos devidos a filho maior – que correu os seus termos, sob o n.º 158-B/1999, no 2.º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Coimbra –, foi proferida sentença em primeira instância que determinou a cessação da obrigação de alimentos do requerente A. para com a requerida B., com efeitos a partir de Outubro de 2006.
Na sequência de interposição de recursos de apelação e de revista pela requerida, a referida sentença foi sucessivamente confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra e pelo Supremo Tribunal de Justiça, mediante acórdãos proferidos, respectivamente, em 26 de Maio de 2009 e em 12 de Janeiro de 2010.
A requerida interpôs recurso desta última decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
«[...] a) A recorrente, além do mais, nas suas alegações de Revista que apresentou neste Supremo Tribunal arguiu expressamente a inconstitucionalidade, além do mais da norma do artigo 1880º Código Civil, na interpretação que lhe fora feita assim como a outras normas.
b) Na verdade, a recorrente, no seu modesto entender julga não existir nenhuma norma que determina a cessação automática, do direito a alimentos estabelecidos para com os filhos pois, ao contrário do que se proclama no Acórdão, nos artigos 122º, 129º e 1877º, apenas regulam a maioridade e não tem como consequência a cessação automática dos alimentos.
c) Entende é que podem existir situações que podiam justificar a cessação de alimentos, mas o ónus da prova da desnecessidade “data maxima venia” pertence ao pai, quando os alimentos já se encontrem estabelecidos.
d) Aliás qualquer norma que determina o contrário, não pode deixar de violar o artigo 36º da Constituição da Republica, como se arguiu.
e) E de facto o colectivo que julgou esta questão decidiu em sentido contrário, não obstante esta norma da constituição, não contemplar nenhum limite.
f) De facto na página 8 e 9 do Acórdão julgou-se esta questão levantada pela recorrente, chegando mesmo a afirmar-se que o nº 5 do artigo 36º da lei Fundamental não se aplica, a este caso concreto, o que não deixa de ser estranho.
Face ao exposto junto que seja este aos autos, requer a V. Ex.a que se considere impetrado o competente recurso, para o Tribunal Constitucional, com todas as consequências.]»
Respondendo a convite formulado pelo ora relator para “explicitar de forma, clara, concisa e precisa qual a interpretação do artigo 1880.º do Código Civil, sustentada pela decisão recorrida, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada”, a Recorrente veio oferecer os seguintes esclarecimentos:
«[1) Não restam dúvidas que a recorrente se viu privada do direito aos alimentos, que lhe são devidos pelo seu progenitor;
2) E de facto a recorrente não tem condições de poder sobreviver pelas razões que alegou e não observadas e muito menos analisadas.
3) Na verdade qualquer filho tem direito a que o seu pai, que a colocou no mundo, (pois não foi ouvido para tal) lhe preste alimentos enquanto necessita dos mesmos, por força do nº 5 do artigo 36º da Constituição da República, que determina: “Os pais têm o direito e o dever de educação e de sustentação dos filhos”, não tendo este artigo qualquer restrições.
4) O Mm. Juiz a quo nas motivações da sentença da 1ª Instância refere, o que pedimos licença para transcrever:
“Nos termos do disposto no art. 1880º do Cód. Civil, a obrigação de alimentos a menores pode prolongar-se para além da maioridade desde que o visado não tenha ainda completado a sua formação profissional e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.”
5) Mas de facto aquele artigo nada refere em relação a filhos menores e a constituição não leva em consideração a menoridade, ao contrário do que proclama o artigo 229º da Constituição Federativa do Brasil, que determina:
“Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade:”
6) Neste caso, pode-se defender, sem margem para dúvidas, que em princípio o direito aos alimentos caduca com a maioridade, mas no direito português não se vislumbra esta possibilidade, face ao que proclama aquele nº 5 do artigo 36º.
7) Aquele Magistrado concluiu na sentença, pela forma que nos permitimos transcrever:
“Não obstante judicialmente homologado por sentença transitada em julgado, o acordo em que foi fixado o montante da pensão de alimentos não tem a virtualidade de alterar os pressupostos legalmente fixados para determinar a cessação da obrigação alimentar, tal como se encontram previstos no referido artigo 1880º do CCivil.”
Mas neste artigo não se encontra prevista, expressamente, qualquer direito à cessação da obrigação de alimentos.
8) Por sua vez o Superior Tribunal da Relação, depois da recorrente ter alegado que os arts. 1879º, 1880º, 2003º a 2006, 2012º e 2013º ofendem o artigo nº 5 do art. 36º quando permitem julgar caduco sem mais o direito a alimentos a que tem direito qualquer filho.
9) O colectivo deste Superior Tribunal invocando a passagem da menoridade para a maioridade, a qual não se vislumbra ou se refere nos artigos 1877º, 1878º, 1880º e 2013º que permitissem julgar sem direitos a alimentos, independentemente da sua situação económica e social de qualquer filho.
10) Concluindo, além do mais, pelo que se transcreve:
“Foi também este o entendimento do já mencionado acórdão do STJ, onde se considerou que o caso em apreço diz respeito à situação a que se refere o artigo 1880º, cuja razão de ser é o da atribuição aos filhos maiores ou emancipados algumas das obrigações que tipicamente se englobam nos deveres dos pais previstos nos artigos 1877º e 1878º e cuja cessação dependente da forma como decorre a formação profissional dos filhos e não da necessidade que estes tenham de que lhes seja atribuída uma pensão de alimentos.”
Também nestas normas se vislumbra tais limites.
11) Para depois, o Supremo Tribunal (no Acórdão sub judice) ao arrepio de toda a ordem jurídica que regula esta situação, vir proclamar:
“Este é o regime geral da prestação de alimentos, mas como regimes especiais, existem os devidos no âmbito do poder paternal, com os critérios particulares e a extensão com que a lei os define, e o regime excepcional do art. 1880º do Código Civil.
Não é em qualquer caso, em relação a filhos maiores, vitalícia a obrigação dos pais alimentarem os filhos, ao invés do que recorrente sustenta.”
Mas não se diz onde está expressa esta interpretação e se o nº 5 do art. 36º da CRP, permite inferir esta solução.
12) Para depois concluírem que neste caso, o julgador deve “meter mão” às presunções, quando se proclamou aquilo que nos permitimos transcrever:
“Há que presumir que o filho maior disporá, em regra, de aptidão para o seu sustento mesmo em caso de emergência familiar, como será o caso dos pais não disporem de condições económicas para o auxiliarem a completar a formação profissional.
Ademais, mesmo na previsão do art. 1880º do Código Civil, a obrigação dos pais deixa de ter razão de existir, se não for razoável ao filho exigir a prestação, pense-se em caso de tal exigência poder redundar em sacrifício incomportável, ou em situações de desigualdade em relação a outros filhos.
Conclui-se, pois, que obrigação dos pais, prevista no art. 1880º do Código Civil de modo algum se pode entender como dependendo apenas a situação do filho e que a norma constitucional do art. 36º, nº 5, não é invocável para que a recorrente, completada a sua formação profissional, persista na exigência alimentar excepcional.” (Os grifos são nossos)
“Com isto quer-se-á dizer que o filho deve ir para debaixo da ponte ou até roubar”
Não restam dúvidas que os tribunais ao efectuarem as referidas decisões e interpretando aqueles artigos, 1778º, 1879º, 1880º 2003º a 2006, 2012º e 2013º do Código Civil, como permitindo julgar caduco automaticamente o direito a alimentos de qualquer filho, sem qualquer razão que possa demonstrar que o mesmo pode fazer face à sua educação e alimentação, não pode de facto e de direito deixar de violar o nº 5 do artigo 36º da Constituição da República.
Pelo que, é tudo o que nos oferece esclarecer e precisar».
Foi proferida decisão sumária em 24-3-2010 de não conhecimento do recurso, com a seguinte fundamentação:
“A Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional leve a cabo a fiscalização concreta da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 1877.º, 1879.º, 1880.º, 2003.º a 2006.º, 2012.º e 2013.º do Código Civil, na interpretação segundo a qual o direito a alimentos de qualquer filho pode caducar automaticamente, sem qualquer razão que possa demonstrar que o mesmo pode fazer face à sua educação e alimentação.
Cotejando as disposições legais que integram o objecto agora delimitado pela Recorrente, em sede de prestação de esclarecimentos, com aquelas que constavam do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, constata-se rapidamente que o objecto foi estendido a outras normas – nomeadamente às normas constantes dos artigos 1877.º, 1879.º, 1880.º, 2003.º a 2006.º, 2012.º e 2013.º do Código Civil – que não constavam deste requerimento original.
À partida, tal ampliação do objecto do recurso de constiutucionalidade, só por si, não constituiria qualquer obstáculo ao respectivo conhecimento; sucede que as disposições legais acrescentadas não foram integral e efectivamente aplicadas pelo tribunal a quo a título de ratio decidendi, sendo que as referências feitas às mesmas não passaram de meros obiter dictum determinados pela circunstância da Recorrente ter pugnado pela aplicação do referido bloco normativo aos factos dados como provados em sede de incidente de cessação de alimentos (Vide conclusão 8.ª alegações de recurso de revista).
Efectivamente, veja-se o que ficou expendido pelo Supremo Tribunal Justiça a propósito do mérito do recurso de revista então interposto pela ora Recorrente:
«[...] Fundamentação:
Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:
- se a cessação dos alimentos em causa só deveria ocorrer por desnecessidade do alimentando, ou por impossibilidade do devedor dos alimentos os prestar;
- se a obrigação de prestar alimentos a cargo dos pais não depende a idade dos filhos;
- se a cessação dos alimentos, no caso em apreço, a ser decretada viola o art. 36º, nº 5, da Constituição da República.
Vejamos:
Os alimentos a prestar pelos pais aos filhos podem ser devidos para além da menoridade.
O art. 2003º, nº 1, do Código Civil define “alimentos”, como aquilo que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.
Sendo o alimentando menor, os alimentos compreendem também a instrução e a educação.
Da definição legal de alimentos, resulta que, sendo devidos a menores, as necessidades a prover através da prestação do obrigado, são não só as inerentes à subsistência física do alimentando, como também à sua formação escolar, moral e cívica, tendo em conta o sadio desenvolvimento da sua personalidade.
Os menores, naturalmente, precisarão de meios para ter uma alimentação equilibrada e saudável, viver em ambiente digno, vestir-se com um mínimo de conforto, ter assistência médica, dispor de material escolar, tudo visando uma educação e vivência que salvaguarde o seu futuro.
Como, modelarmente, ensina Vaz Serra, in RLJ 102-262;
“A definição de alimentos não deve ser interpretada à letra.
Se se considerasse que o sustento abrangia apenas as necessidades ligadas à alimentação, e uma vez que as expressões habitação e vestuário têm alcance preciso, ficaria demasiado restrito o âmbito da definição, pois o alimentado pode carecer de mais alguma coisa para viver, como por exemplo, despesas de tratamentos de deslocação e outras.
Por conseguinte, parece dever entender-se como alimentos tudo o que é indispensável à satisfação das necessidades da vida segundo a situação social do alimentado.
Para tal, bastará dar à palavra sustento um significado lato e atribuir carácter exemplificativo ao disposto no nº 1”.
Dispõe o art. 2004º do citado diploma:
“1. Os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los.
2. (..)“.
Na fixação dos alimentos, neles se abrangendo tudo o que é indispensável ao sustento, habitação, vestuário, instrução e educação do menor, deve atender-se a uma dupla proporcionalidade, ou seja, importa atender à situação económica do devedor e às necessidades do alimentando.
Há que ponderar quais os meios de quem tem de os prestar, e a necessidade de quem deles carece, alcançando um justo equilíbrio, não se podendo privar o devedor dos meios necessários à sua subsistência.
O poder paternal, permanecendo mesmo em situação de separação de facto dos progenitores, tem inerente, além de outros deveres, como o de respeito, comando e representação, um poder-dever de educação e manutenção dos filhos – art. 36º, nº 5, da Constituição da República, e arts. 1885º e 1886º do Código Civil, de auxílio – art. 1874º, nº 1, do mesmo código - e sustento dos filhos - art. 1879º do citado diploma.
Com a maioridade cessa o poder paternal e, consequentemente, o dever dos pais prestarem alimentos aos filhos – arts. 122º, 129º e 1877º do Código Civil.
Todavia a assistência aos filhos manter-se-á para lá da maioridade nos termos do art. 1880º do Código Civil.
Estabelece tal normativo:
“Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete “.
O que está na base da norma do art. 1880º do Código Civil é a incapacidade económica do filho maior para prover ao seu sustento e educação, quando as circunstâncias impuserem aos pais, não obstante a maioridade do filho, a obrigação de, em nome do bem-estar e do futuro deste, continuar a suportar as despesas inerentes à completude da formação profissional.
Foi neste normativo que a filha maior do recorrente, ancorou a sua pretensão de “alimentos educacionais”, alegando que carecia do auxílio económico do pai, com vista a completar o curso que se propôs conseguir.
O art. 1880º do Código Civil ampara a incapacidade económica do filho maior para prover ao seu sustento e educação.
A obrigação excepcional prevista neste normativo tem um carácter temporário, balizado pelo “tempo necessário” ao completar da formação profissional do filho, e obedece a um critério de razoabilidade – é necessário que, nas concretas circunstâncias do caso, seja justo e sensato, exigir dos pais a continuação da contribuição a favor do filho agora de maioridade.
Daí que, para aferir dessa razoabilidade, importa saber se o filho carece, com justificação séria, do auxílio paternal, em função do seu comportamento, “in casu”, como estudante; não seria razoável exigir dos pais o seu contributo para completar a formação profissional se, por exemplo, num curso que durasse cinco anos, o filho cursasse há oito, sem qualquer êxito, por circunstâncias só a si imputáveis.
Por isso, a lei impõe o dever de contribuição “pelo tempo normalmente requerido para que a formação se complete”.
“O poder paternal traduz-se num poder-dever em relação à educação e manutenção dos filhos.
No caso de os filhos terem atingido a maioridade e de continuarem a sua formação técnico- profissional, não estando em condições de suportar, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, aqueles encargos, recairá sobre os pais a obrigação de alimentos (...)“ – Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça, de 23.9.97, in BMJ 469-563.
O Ac. deste Alto Tribunal, de 23.9.1997, in BMJ 469-563, sentenciou:
“... Os pais não são obrigados à prestação alimentar se, por culpa grave dos filhos, eles não terminarem a sua formação técnico-profissional no tempo de duração normal; por outro lado, a prestação alimentar tem de ser razoavelmente proporcionada aos meios económicos do prestador e criteriosamente proporcional às necessidades do alimentado, de modo a obter-se uma justa composição entre as possibilidades de quem presta e as necessidades de quem recebe...”
O Conselheiro Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Civil”– edição de 2002 – em comentário ao referido art. 1880º do Código Civil, observa:
“... Não se trata de um caso de direito a alimentos, mas de uma extensão da obrigação dos pais para além da menoridade dos filhos, de modo a que a estes seja, na prática, possível alcançar o termo da sua formação profissional.
O auxílio assumirá a forma que melhor permita alcançar esse desígnio”.
Assim, dada a peculiar natureza da obrigação a que alude o art. 1880º do Código Civil, de modo algum se pode considerar, como considera a recorrente, que a obrigação dos pais prestarem alimentos aos seus filhos não tem como limite a idade destes, sendo de aplicar o art. 2013º do Código Civil que determina:
“1 – A obrigação de prestar alimentos cessa: a) Pela morte do obrigado ou alimentado; b) Quando aquele que os presta não possa continuar a prestá-los ou aquele que os recebe deixe de precisar deles; e,) Quando o credor viole gravemente os seus deveres para com o obrigado “.
Este é o regime geral da prestação de alimentos, mas, como regimes especiais, existem os devidos no âmbito do poder paternal, com os critérios particulares e a extensão com que a lei os define, e o regime excepcional do art. 1880º do Código Civil.
Não é em qualquer caso, em relação a filhos maiores, vitalícia a obrigação dos pais alimentarem os filhos, ao invés do que recorrente sustenta.
A lei estabelece como requisitos a necessidade do filho maior, por não ter meios económicos para prover às despesas necessárias a que complete a formação profissional após a maioridade, e a razoabilidade de exigir aos pais essa contribuição.
Neste requisito da razoabilidade, obviamente, que deve entrar como factor de apreciação a conduta do filho e a consideração da sua peculiar situação, sob pena de podermos até transigir com situações de abuso do direito.
A eventual culpa grave do filho deve ser apreciada dentro duma perspectiva de razoabilidade da exigência de alimentos, atendendo à sua situação e à dos pais.
A ré terminou, em Setembro de 2006, o curso de licenciatura em Cerâmica mas não obstante esse facto pretende que a obrigação do seu pai se deve manter.
Sem razão, pois que completada a sus formação profissional, cessou a obrigação do Autor nos termos do art. 1880º do Código Civil.
Eventualmente essa obrigação poderia subsistir se a recorrente tivesse feito prova da imprescindíbilidade desse auxílio ainda no âmbito da sua formação, como seria, por exemplo, o caso de obter estágios ou formação complementar imprescindível.
Ademais, o acordo validamente celebrado entre a recorrente e o seu pai vigoraria “enquanto se mantiver a formação da requerente”.
Obviamente, que pelas circunstâncias em que foi alcançado, as partes tinham em mente a conclusão da formação académica da recorrente.
Finalmente, cumpre dizer que a alegada inconstitucionalidade por violação do art. 36º, nº 5, da Constituição da República não existe.
Tal norma estatui –“ Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos “.
Comentando tal preceito Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Anotada”, 1º Volume, pág. 565, escrevem:
“O direito e o dever dos pais de educação e manutenção dos filhos (nº 5) são um verdadeiro direito-dever subjectivo e não uma simples garantia institucional ou uma simples norma programática, integrando o chamado poder paternal (que é uma constelação de direitos e deveres, dos pais e dos filhos, e não um simples direito subjectivo dos pais perante o Estado e os filhos).
A natureza de direito-dever subjectivo dos pais traduz-se, na linguagem actual, na compreensão do poder paternal como obrigação de cuidado parental.
O que a norma constitucional visa primordialmente é o dever dos pais em relação aos filhos menores como dever-direito assistencial dada a incapacidade dos menores.
A situação do filho maior que apenas precisa da assistência parental para completar a formação profissional radica noutras exigências, que não as alimentares em sentido estrito.
Há que presumir que o filho maior disporá, em regra, de aptidão para o seu sustento mesmo em caso de emergência familiar, como será o caso dos pais não disporem de condições económicas para o auxiliarem a completar a formação profissional.
Ademais, mesmo na previsão do art. 1880º do Código Civil, a obrigação dos pais deixa de ter razão de existir, se não for razoável ao filho exigir a prestação, pense-se em caso de tal exigência poder redundar em sacrifício incomportável, ou em situações de desigualdade em relação a outros filhos.
Conclui-se, pois, que obrigação dos pais, prevista no art. 1880º do Código Civil de modo algum se pode entender como dependendo apenas a situação do filho e que a norma constitucional do art. 36º, nº 5, não é invocável para que a recorrente, completada a sua formação profissional, persista na exigência alimentar excepcional [...]».
Resulta da fundamentação da decisão recorrida acabada de transcrever que o tribunal a quo não aplicou de forma alguma o aludido bloco normativo com a interpretação normativa indicada pela Recorrente.
O tribunal a quo – tal como já o havia feito anteriormente o próprio Tribunal da Relação de Coimbra – limitou-se a aplicar ao caso concreto a norma constante do artigo 1880.º do Código Civil, na medida em que entendeu que estava apenas em discussão a apreciação da pretensão de “alimentos educacionais” no âmbito do processo especial de jurisdição voluntária previsto no artigo 1412.º do Código de Processo Civil, à qual associou um regime jurídico alegadamente diferenciado do regime geral de alimentos e do regime especial de alimentos decorrente do poder paternal – não cabendo, como é sabido, ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a bondade desta interpretação no plano estritamente infraconstitucional.
Com efeito, por um lado, o tribunal recorrido afastou liminarmente, no caso concreto, a aplicação das normas constantes dos aludidos artigos 1877.º a 1879.º do Código Civil, respeitantes ao conteúdo e duração do poder paternal, em virtude de estar em causa uma obrigação de alimentos requerida e fixada após a Recorrente ter alcançado a maioridade, ao abrigo do disposto no artigo 1880.º do Código Civil.
Por outro lado, o tribunal recorrido chegou a pronunciou-se sobre a cessação da obrigação de alimentos à luz do disposto do regime geral dos alimentos, nomeadamente à luz do preceituado no artigo 2013.º, n.º 1, do Código Civil, mas fê-lo simplesmente para concluir pela respectiva não aplicação ao caso concreto em virtude de neste processo estar apenas em causa a verificação dos pressupostos específicos da obrigação de alimentos fixada ao abrigo do disposto no art. 1880.º do Código Civil – sendo que o Tribunal da Relação de Coimbra chegou a salvaguardar expressamente a eventual apreciação da necessidade de alimentos pela ora Recorrente ao abrigo dos artigos 2003.º e seguintes do Código Civil noutra acção própria para o efeito.
Isto é, a Recorrente pretende, ao arrepio do concretamente decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, continuar a discutir, desta feita na jurisdição constitucional, a questão da cessação da obrigação de alimentos devidos a filhos maiores à luz de todas as normas sobre alimentos que foi sucessivamente convocando ao longo das várias instâncias.
Ora, sucede que a fiscalização concreta da constitucionalidade apenas pode ter por objecto as normas jurídicas efectivamente aplicadas pelo tribunal recorrido a título de ratio decidendi e não as normas jurídicas que o recorrente considera que deviam ter sido aplicadas.
Acresce que ainda que se restringisse o objecto do presente recurso de constitucionalidade à norma constante do artigo 1880.º do Código Civil, ainda assim voltaria a ocorrer a situação de falta de aplicação da mesma com o sentido indicado pela Recorrente, ou seja, na alegada interpretação segundo a qual o direito a alimentos de qualquer filho pode caducar automaticamente, sem qualquer razão que possa demonstrar que o mesmo pode fazer face à sua educação e alimentação.
Na verdade, ao invés do alegado pela Recorrente, a norma constante do artigo 1880.º do Código Civil foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça ao caso concreto – em que ficou provado que a mesma já tinha terminado a respectiva licenciatura no curso de Cerâmica – na interpretação segundo a qual a obrigação de alimentos ali especificamente prevista não é vitalícia e cessa quando o filho completar a sua formação profissional.
Além disso, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu este conceito de formação profissional de forma não restrita ao escrever que «eventualmente essa obrigação poderia subsistir se a recorrente tivesse feito prova da imprescindibilidade desse auxílio ainda no âmbito da sua formação, como seria, por exemplo, o caso de obter estágios ou formação complementar imprescindível».
E, não menos relevante, o Supremo Tribunal de Justiça atendeu também à posição do próprio Recorrido ao ter afirmado que «(...) ademais, mesmo na previsão do art. 1880º do Código Civil, a obrigação dos pais deixa de ter razão de existir, se não for razoável ao filho exigir a prestação, pense-se em caso de tal exigência poder redundar em sacrifício incomportável, ou em situações de desigualdade em relação a outros filhos(...)» e que «(...) [a] obrigação dos pais, prevista no art. 1880º do Código Civil de modo algum se pode entender como dependendo apenas a situação do filho(...)».
Uma vez que interpretação normativa delimitada pela Recorrente não constituiu a verdadeira ratio decidendi da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, o recurso de constitucionalidade, atenta a respectiva natureza instrumental, não seria dotado de qualquer repercussão útil no processo concreto de que emerge.
Nesse caso, uma vez verificada a falta de aplicação da referida interpretação normativa, importa concluir que não estão preenchidos todos os requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto no art. 70.º, n.º 1, b) da LTC.
Concluindo, o Tribunal Constitucional não pode apreciar a questão de inconstitucionalidade suscitada pela Recorrente, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, nº 1, da LTC.”
A Recorrente reclamou desta decisão, com os seguintes argumentos:
a) A ora reclamante foi notificada da Decisão Sumária, prolatada nos termos do nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15/11, que em conclusão determinou o que pedimos licença para transcrever:
«Em função do exposto, não se conhece do recurso interposto por B. para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Janeiro de 12 de Janeiro de 2010, proferido nos presentes autos.»
b) E verifica-se que o Tribunal Constitucional não julga o recurso, por no seu entender, o Supremo Tribunal de Justiça e os Tribunais de 1ª e 2ª Instância não terem violado nenhuma norma constitucional, quando nas motivações do indeferimento concluiu o que pedimos licença para transcrever:
«Conclui-se, pois, que obrigação dos pais, prevista no art. 1880º do Código Civil de modo algum se pode entender como dependendo apenas a situação do filho e que a norma constitucional do art. 36º, nº 5, não é invocável para que a recorrente, completada a sua formação profissional, persista na exigência alimentar excepcional [...]»
c) Ora a reclamante não usou recorrer para a mais alta instância apenas sobre o Acórdão do Supremo Tribunal, mas também, como referiu, das decisões das instâncias, as quais vêm, estranhamente, a julgar que a lei aplicável permite que o direito aos alimentos caduque automaticamente com a maioridade, tendo resumido a sua pretensão, pela forma que se plasmou no relatório da decisão subjudice, pela forma seguinte:
«A Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional leve a cabo a fiscalização concreta da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 1877º, 1879º, 1770º, 2003º a 2006º, 2012º e 2013º do Código Civil, na interpretação segundo a qual o direito a alimentos de qualquer filho pode caducar automaticamente, sem qualquer razão que possa demonstrar que o mesmo pode fazer face à sua educação e alimentação.»
d) Ora compulsando todas aquelas referidas normas que podiam oferecer algum apoio aquela orientação traçada pelos tribunais da 1ª e 2ª Instância e pelo Supremo, não encontramos nenhuma norma expressa que permita assim concluir, nem jamais os Tribunais a indicam, pois a única norma que condiciona os alimentos à maioridade encontra-se referida na al. e) do nº 1 do art. 2009º do Código Civil, mas diz respeito ao dever dos tios e não dos pais.
e) E, por outro lado, a própria Constituição da República, ao contrário da Brasileira, como demonstrámos, não condicionou os alimentos à menoridade, pois os alimentos neste País são devidos a filhos menores ou a interditos, mas estes só tem esse direito depois de assim serem declarados pelo Tribunal, o que não é nosso caso, como determina o nº 2 do art. 1885º do Código Civil, que diz:
«2. Os pais devem proporcionar aos filhos, em especial aos diminuídos física e mentalmente, adequada instrução geral e profissional, correspondente, na medida do possível, às aptidões e inclinações de cada um.»
f) Mas, infelizmente a nossa jurisprudência sente-se bem a viver na anarquia que se vai encontrando nas decisões emanadas dos Tribunais que se tem de lamentar, senão mesmo de repodiar.
g) E o Tribunal Constitucional também devia ter uma palavra a dizer, para se acabar com esta anarquia, uma vez que na Constituição existem pelo menos duas normas que se opõem a tal entendimento, vejamos:
- o nº 5 do artigo 36º:
«5. Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.»
- o artigo 203º:
«Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.»
h) Sendo assim para se decidir da forma que os Tribunais vêm decidindo era necessário que existisse uma norma expressa que determinasse que os alimentos caducam com a maior idade, e neste caso, nada obriga a levar em conta a necessidade ou desnecessidade dos alimentos, e muito menos, que os Tribunais estejam obrigados a preocuparem-se com a diminuição física ou mental dos alimentados.
i) Estas são as razões pelas quais não se pode deixar de levar até às últimas consequências esta questão, que devia ser analisada por este Tribunal Constitucional, no qual se põe a última esperança para que se acabe com tal anarquia.
Pelo exposto, se roga a este Tribunal que seja revogada aquela Decisão Sumária, julgando-se, por isso, as inconstitucionalidades que vem a ser praticadas pelos Tribunais, com todas as consequências legais.”
*
Fundamentação
A decisão de não conhecimento de recurso não se baseou em qualquer juízo de mérito sobre a questão de constitucionalidade colocada pela Recorrente, mas sim porque o recurso interposto não reunia todos os requisitos necessários ao seu conhecimento.
Na verdade, tendo o recurso em fiscalização sucessiva concreta um cariz instrumental relativamente ao processo onde foi interposto, apenas podem ser conhecidos aqueles que questionem norma ou interpretação normativa que constitua ratio decidendi do acórdão recorrido, uma vez que só a decisão destes se pode repercutir no processo em causa.
Ora, conforme a decisão reclamada verificou a interpretação normativa que o Recorrente pretendia ver apreciada não coincide com a interpretação sustentada na decisão recorrida, pelo que não pode o Tribunal Constitucional conhecer do mérito do recurso interposto.
Nestes termos deve ser indeferida a reclamação apresentada.
*
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por B. da decisão sumária proferida nestes autos em 24 de Março de 2010.
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Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
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Lisboa, 12 de Maio de 2010
João Cura Mariano
Catarina Sarmento e Castro
Rui Manuel Moura Ramos