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Processo n.º 299/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de reclamação, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de A., reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho do relator, naquele Tribunal, que não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto, ao abrigo dos artigos 280º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 70º, alíneas a), b) e f), da LTC, pela recorrente, pelas seguintes razões:
«- No que diz respeito à interposição de recurso ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, [a recorrente] não indicou ‘a norma ou normas cuja aplicação foi recusada pelo Supremo Tribunal de Justiça com fundamento em inconstitucionalidade’, o que significa que não definiu o objecto do recurso;
«- Relativamente ao recurso (…) interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, não indicou ‘a norma ou normas aplicadas pelas decisões impugnadas apesar de ter sido suscitada, durante o processo, a sua inconstitucionalidade’, também não definindo um objecto susceptível de ser apreciado num recurso de constitucionalidade, legal e constitucionalmente reservado à apreciação de inconstitucionalidade de normas; nem se encontra nas alegações do recurso interposto para este Supremo Tribunal (onde a inconstitucionalidade haveria de ter sido alegada, como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 72º da Lei n.º 28/82) a invocação da inconstitucionalidade normativa, como seria indispensável ao conhecimento do recurso de constitucionalidade;
«- No tocante à interposição de recurso ao abrigo do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, também não indicam ‘a norma ou normas aplicadas pelas decisões impugnadas apesar de ter sido suscitada, durante o processo, a sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado ou estatuto de região autónoma’, nem ‘em que peça processual foi suscitada a respectiva ilegalidade e qual a norma ou princípio legal que entende violado por essa norma ou normas’», apesar de para tanto convidada, por despacho de fls. 435.
A reclamante alega, no essencial, que, contrariamente ao decidido no despacho reclamado, indicou, pelo menos em sede de aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, qual a norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, ao esclarecer, na sequência de um tal convite, que:
«Nas alegações para o Tribunal da Relação bem como nas alegações para este douto tribunal e respectivos pedidos de esclarecimento foi defendido que no caso de alegação de prescrição presuntiva, o devedor prova o cumprimento da sua dívida pela presunção legal – art. 312º do C. Civil, na medida em que não ilidida pelo credor essa presunção pela prova do não cumprimento apenas através de confissão do devedor – arts. 313º e 314º – conforme resulta do art.º 350º, todos do Código Civil, pelo que a exigência de alegação do “cumprimento” constitui a criação de um requisito.
«Ora, o tribunal não tem competência para a criação de novos requisitos, que são da competência do Governo, nos termos do art.º 198º da Constituição da República Portuguesa, pelo que, assim a norma anteriormente mencionada e o requisito da alegação do pagamento padecem da então alegada inconstitucionalidade.».
Acresce que, apesar de ter feito «expressa – e até destacada – menção ao facto de se produzir violação normativa pelo facto de ser criado um requisito praeter legem», quer nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, quer nas alegações do recurso interposto para STJ, nenhuma destas instâncias de recurso se pronunciou, como se impunha, sobre tal questão, apreciando e declarando a inconstitucionalidade de um tal requisito, «(…) por ter sido criado por órgão [tribunal] sem competência legislativa e o mesmo não constar da letra da lei», razão porque arguiu, perante aquela última instância, embora sem êxito, denegação de justiça e nulidade do acórdão.
O Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido de que não se verificam, no caso vertente, os requisitos legais de admissibilidade dos recursos interpostos, ao abrigo das alíneas a), b) e f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, pela recorrente – razão porque não lhe foi possível suprir as deficiências formais do respectivo requerimento de interposição de recurso –, pelo que é do parecer que deve ser inferida a reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
2. O sistema de fiscalização da constitucionalidade instituído no nosso ordenamento jurídico tem por objecto normas jurídicas (ou interpretações normativas) e não decisões jurisdicionais (artigo 70º da LTC).
Por isso, deve o recorrente delimitar o objecto normativo do recurso, indicando, desde logo, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou, após convite, em requerimento ulterior aperfeiçoado, qual «a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie» (artigo 75º-A, n.º 1, da LTC).
Ora, afigura-se claro que a recorrente, ora reclamante, não indicou, apesar de para tanto convidada, nem as normas cuja aplicação foi recusada pelo STJ, nem as normas aplicadas por esta instância cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade foi suscitada durante o processo.
Com efeito, quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, a recorrente, apesar de convidada a esclarecer qual a norma cuja aplicação foi recusada, por motivo de inconstitucionalidade, pelo tribunal recorrido, pura e simplesmente não a indicou, no requerimento que a fls. 491 apresentou junto do tribunal recorrido.
E não o fez pela simples razão de que o STJ não formulou, nos acórdãos recorridos, qualquer juízo de inconstitucionalidade sobre os preceitos reguladores da situação de facto que foi chamado a apreciar, nem, com tal fundamento, recusou a sua aplicação, como decorre, à evidência, da respectiva análise.
Por outro lado, também não esclareceu a recorrente, como expressamente imposto pelas disposições conjugadas dos artigos 70º, n.º 1, alínea f), e 75º-A, n.º 1, da LTC, qual foi o preceito aplicado pelos acórdãos recorridos cuja ilegalidade, por violação de lei com valor reforçado ou estatuto de região autónoma, havia sido suscitada durante o processo.
E, também nesta parte, o que inviabilizou o aperfeiçoamento do requerimento de interposição do recurso instaurado ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do citado artigo 70º da LTC, com a indicação precisa das normas que constituem o seu objecto, foi o facto de o recorrente não ter imputado, nas respectivas alegações de recurso para o STJ, qualquer ilegalidade, com tal fundamento (violação de lei com valor reforçado ou estatuto de região autónoma), a nenhuma das disposições normativas aplicáveis, e, por isso, não ter o tribunal recorrido, também aqui, formulado, quanto a estas, qualquer juízo de não ilegalidade que pudesse ser reapreciado por este Tribunal Constitucional.
Finalmente, ao contrário do sustentado pela reclamante, a matéria indicada como constituindo objecto do recurso de constitucionalidade instaurado ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, por carecida de conteúdo normativo, não pode ser apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Com efeito, o que a recorrente sindica, através de um tal recurso, é o facto de o STJ e, já antes, o Tribunal de 1ª instância e a Relação, terem, a seu ver, criado, sem competência para tal, um requisito não previsto na lei, ao exigirem, como condição de procedência da excepção de prescrição presuntiva, a alegação, pelo excipiente, do pagamento.
Com efeito, apesar de aludir, na delimitação aperfeiçoada do objecto do recurso, a diversos normativos legais (artigos 312º, 313º, 314º e 350º do CC), não concretizou cabalmente qual a dimensão normativa a que, em cada um deles, se reportava, nem, sequer, com a clareza exigível, nesta sede, qual, em concreto, a interpretação sindicada que os teria por fonte legal.
Aliás, tais normativos legais nem sequer haviam antes sido referenciados no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, onde, limitando-se a referir o princípio da obrigatoriedade da fundamentação de decisões judiciais e sua consagração em diversos preceitos da lei ordinária, concluiu a recorrente expressivamente ter «o Supremo Tribunal de Justiça [praticado] decisões inconstitucionais e ilegais, violando os preceitos anteriormente citados», ao «[deixar] de fundamentar de facto e de direito as decisões e ao «[proferir] decisão em oposição com fundamentos», na linha do que já havia invocado, perante esta mesma instância de recurso, em sede de arguição de nulidade do acórdão que havia julgado improcedente o recurso de revista por si instaurado.
Não se assacou, pois, na verdade, às normas jurídicas mas à própria decisão (que, no entendimento do recorrente, delas efectuou uma interpretação e aplicação incorrecta e deficientemente fundamentada) o vício de inconstitucionalidade que ora se pretende sujeitar à apreciação deste Tribunal Constitucional.
Por outro lado, ainda que se descortinasse no objecto assim delimitado, em sede de aperfeiçoamento, algum conteúdo normativo apto a sustentar a formulação, pelo Tribunal Constitucional, de um juízo de inconstitucionalidade normativa – o que, pelas razões enunciadas, não se aceita –, a verdade é que, como também sublinhou o despacho objecto da presente reclamação, a recorrente não suscitou perante o tribunal recorrido, no momento próprio, isto é, nas alegações de recurso, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, como expressamente imposto pelas normas dos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da LTC.
Com efeito, o que a recorrente, nessa sede, se limitou a fazer foi tentar demonstrar que, ao contrário do decidido pelo Tribunal da Relação, a lei não impõe «qualquer requisito de necessidade de alegação (…) do pagamento, para [viabilizar] (…) [a] excepção (…) da prescrição presuntiva», prevista nas disposições combinadas dos artigos 312º e 317º do CC; contudo, em nenhum momento questionou, como lhe competia, a constitucionalidade destas normas ou de uma tal interpretação, não constando sequer das alegações de recurso qualquer referência a princípios ou preceitos constitucionais.
Por isso, o acórdão recorrido, de 22 de Janeiro de 2009, não se pronunciou, nem tinha o dever processual de o fazer, sobre a constitucionalidade dos preceitos aplicáveis ao caso vertente ou da respectiva interpretação.
E nem sequer em sede de arguição de nulidade suscitou a recorrente qualquer questão de inconstitucionalidade normativa com ela relacionada, tendo-se limitado a sustentar que o acórdão dela objecto não apreciou e decidiu as questões colocadas nas conclusões do recurso, pelo que, a seu ver, denegou justiça e incorreu em nulidade, por violação (directa) de normas e princípios com assento constitucional (artigos 20º, n.º 1, 202º, nºs. 1 e 2, e 205º, n.º 1, da CRP).
Ora, os argumentos de inconstitucionalidade directamente direccionados à decisão judicial, por alegada omissão de pronúncia, e não a qualquer norma jurídica ou interpretação normativa, não podem relevar como observância do ónus de suscitação, para o efeito de legitimar o recurso de constitucionalidade, cujo objecto é, como é sabido, necessariamente normativo, por expressa imposição constitucional e legal.
Assim sendo, também por inobservância do ónus de suscitação da pretensa questão de inconstitucionalidade normativa que, por via do presente recurso, a recorrente pretende ver apreciada, se imporia a sua rejeição.
Não está, pois, o recurso por si interposto junto deste Tribunal Constitucional em condições processuais de prosseguir para uma apreciação de mérito, como decidido pelo tribunal recorrido.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 2 de Junho de 2010
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão