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Processo n.º 289/2009
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos autos de processo de contra-ordenação em que é arguida A., Lda., foi-lhe aplicada pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna a coima de € 10 000, 00 (dez mil euros) pelo facto de na porta de entrada do estabelecimento de restauração e bebidas de que, à data da prática dos factos, era cessionária, se encontrar um individuo do sexo masculino com a função de entregar aos clientes cartões de consumo mínimo, controlo de entradas e saídas de pessoas com recurso a câmara e monitor que controlavam a entrada principal para o exterior sem que a arguida fosse titular de licença legalmente exigida que, nos termos do n.º 2 do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro, a habilitasse ao exercício da actividade de segurança privada em regime de autoprotecção, actividade à qual, em nome e por conta dela, o referido vigilante se dedicava. Tal facto constitui uma contra-ordenação muito grave prevista e punida pelo artigo 33.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, alínea c) do referido diploma.
A arguida veio impugnar junto do Tribunal Judicial da Comarca de Almeirim a decisão proferida pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna.
O Tribunal Judicial da Comarca de Almeirim julgou improcedente o recurso interposto pela arguida, mantendo nos seus precisos termos a decisão proferida pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna.
Inconformada, a arguida veio interpor recurso para o Tribunal da Relação de Évora, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
1° – O Tribunal não apurou a existência de factos alegados no recurso de impugnação judicial, sendo a Sentença recorrida nula por via dos art°s 374° e 379°-1-c) do CPP.
2° – Pelo que deve o processo ser devolvido ao Tribunal recorrido para apuramento dos factos alegados, dando-os como provados ou não provados.
3° – Os factos dados como provados não integram a prática da contra ordenação decidida, pelo que deve a Sentença recorrida ser revogada e a arguida absolvida, uma vez que não se verificam os elementos objectivos do tipo e muito menos se verifica a existência de dolo.
4° – De qualquer modo, a existir contra ordenação, sempre a mesma deveria ser sancionada com admoestação, atendendo ao preceituado no art° 51° do RGCOC.
5° – Assim não sendo entendido, deveria a pena ter sido especialmente atenuada por se verificarem os condicionalismos que a permitem, nos termos do art° 18°-3 do mesmo diploma.
6° – Ainda que assim se não entenda, sempre o dl. 35/2004 de 21-2 viola o art° 61°-1 da CRP, sendo uma norma inconstitucional, uma vez que consagra uma ingerência do Estado na livre iniciativa e mesmo na iniciativa privada, sem que tenha justificação através do interesse geral e colectivo, sendo até notória a escalada de violência que vem sendo gerada na noite, alguma dela decorrente das tendências de empresas certificadas em controlarem os lucros através dos postos de trabalho de vigilância nocturna.
7° – Pelo que deve a Sentença recorrida ser alterada nessa conformidade.
Por acórdão proferido em 10 de Fevereiro de 2009, o Tribunal da Relação de Évora julgou o recurso totalmente improcedente, mantendo integralmente a sentença recorrida.
Na fundamentação da sua decisão, no que à questão de constitucionalidade suscitada pela recorrente nas suas alegações de recurso diz respeito, o Tribunal afirmou o seguinte:
(…)
O reconhecimento do direito de iniciativa privada no art. 61º n° 1 e em outros preceitos da CRP, não é incompatível com a delimitação negativa do âmbito da liberdade de iniciativa económica, stricto sensu, quer vedando de todo certas actividades, quer sujeitando-as a restrições especiais, sendo aquele mesmo preceito constitucional a sujeitar, expressamente. a iniciativa económica privada aos quadros definidos pela Constituição e pela lei , tendo em conta o interesse geral.
Ora, a exigência legal de. que a organização de serviços de autoprotecção em serviço próprio tenha lugar com recuso exclusivo a trabalhadores laboralmente vinculados a entidade titular de licença para prestação de serviços de autoprotecção, não se mostra de modo algum desproporcional face ao interesse público na protecção e prevenção da ofensa de direitos individuais de natureza pessoal ou patrimonial, nomeadamente por parte de quem exerce funções de segurança privada. Não acompanhamos, pois, a recorrente nesta parte, como aludido, por não julgarmos ser inconstitucional a norma prevista no art. 3° n° 1, em conjugação com o preceituado no art. 1° n° 3b), do Dec-lei n° 35/2004 de 21 de Fevereiro.
(…)
2. É dessa decisão que é interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
Através dele pretende a recorrente a apreciação da constitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo 3.º, por referência à alínea b) do n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro, por, em seu entender, a mesma colidir com a liberdade de iniciativa económica privada consagrada no n.º 1 do artigo 61.º da Constituição.
Notificada para o efeito, a recorrente veio apresentar alegações, tendo concluído do seguinte modo:
1 – A recorrente foi condenada pela prática de contra ordenação prevista e punida pelo art. 22º-2 e 33º-1b) e 4-c) do Dl. 35/2004 de 21-2.
2 – Essa contra ordenação reporta-se ao previsto no art. 3º-1 e art. 1º-3-b do mesmo Decreto Lei.
3 – Tais disposições são inconstitucionais, pois violam o art. 61º-1 da CRP, concretamente violam o princípio do interesse geral que deve prevalecer e justificar a ingerência legislativa Estatal no domínio da livre iniciativa económica privada, vertido naquela norma fulcral.
4 – E porque aquelas normas visadas, assim como o próprio Decreto Lei mencionado traduz uma contradição flagrante entre o entendimento Estatal ali próprio plasmado, ao conferir por um lado a possibilidade de auto protecção aos particulares e ao impor limites e requisitos manifestamente rígidos no que reporta à necessidade de contratação de firmas privadas que sejam por essa via credenciadas.
5 – Verificando-se, inclusivamente, ser do domínio público que a escalada de violência nocturna a que se vem assistindo advém liminarmente ou por consequência ou por conexão dos próprios trabalhadores afectos a essa credenciação.
6 – Ao invés, se o Estado reconhece a essencialidade de tal actividade, deve a mesma ser acometida a entidades policiais, essas sim que oferecem garantias do espírito prosseguido pelo próprio Decreto Lei aqui divisionado.
7 – Posto isto e face ao exposto, deve ser reconhecida a inconstitucionalidade daquelas citas normas, por ofensa à CRP.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou contra-alegações, concluindo do seguinte modo:
1. A actividade de segurança privada visa a prossecução de um interesse público assumindo um carácter complementar e subsidiário em relação ás competências desempenhadas pelas forças e serviços de segurança do Estado.
2. Essa natureza específica impõe que o Estado fixe, com rigor, quer o seu regime legal básico, quer a regulamentação subsequente.
3. O legislador tem toda a legitimidade para condicionar ou restringir o exercício do direito à livre iniciativa privada (artigo 61º, n° 1, da Constituição) desde que essa restrição seja imposta pelo interesse colectivo e não se mostre desproporcionada (artigo 18°, n° 2, da Constituição).
4. É o que se verifica com a norma do artigo 3°, n° 1, do Decreto-Lei n° 35/2004, enquanto estabelece que os serviços de autoprotecção referidos na alínea b) do n° 3 do artigo 1° devem ser organizados com recurso exclusivo a trabalhadores vinculados por contrato individual de trabalho com a entidade titular da respectiva licença, que, por esse motivo, não é inconstitucional
5. Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. Está em juízo, no presente recurso, a norma contida no nº 1 do artigo 3º do Decreto-lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro, que determina:
Os serviços de autoprotecção referidos na alínea b) do nº 3 do artigo 1º devem ser organizados com recurso exclusivo a trabalhadores vinculados por contrato individual de trabalho com entidade titular da respectiva licença.
Por seu turno, e de acordo com a alínea b) do nº 3 do artigo 1º, deve considerar-se actividade de segurança privada “[a] organização, por quaisquer entidades e em proveito próprio, de serviços de autoprotecção, com vista à protecção de pessoas e bens, bem como à prevenção da prática de crimes”.
Sustenta a recorrente que é inconstitucional esta norma, assim delimitada, que impõe que seja titular de licença a entidade que queira, em proveito próprio e com recurso a trabalhadores, organizar os serviços de autoprotecção que devam ser tidos, segundo a lei, como actividades de segurança privada. No seu entendimento, a norma viola a liberdade de iniciativa económica que vem consagrada no artigo 61.º da Constituição.
Apesar de, nas suas alegações, vir a mesma recorrente suscitar, também, quer a inconstitucionalidade do próprio Decreto-lei nº 35/2004, entendido na sua globalidade, quer a inconstitucionalidade das normas contidas nos seus artigos 22.º, n.º 2 e 33.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, alínea c), só vale como objecto de recurso o que foi delimitado no requerimento de interposição do mesmo - in casu, a norma contida no n.º 1 do artigo 3.º, por referência à alínea b) do n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro.
Assim, é com esta extensão e limite que o Tribunal decidirá sobre a questão de constitucionalidade que lhe foi colocada.
4. O Decreto-lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro, regula o exercício das actividades de segurança privada. O seu artigo 1.º determina que as referidas actividades, detendo uma função complementar e subsidiária face às exercidas pelas forças e serviços de segurança pública do Estado, só poderão ser desenvolvidas no quadro de regulação a seguir definida; e identifica, como incluindo o conceito de actividades de segurança privada, dois tipos de situações: a relativa à prestação de serviços a terceiros por entidades privadas, “com vista à protecção de pessoas e bens, bem como à prevenção da prática de crimes”, e a relativa à organização, por quaisquer entidades e em proveito próprio, de serviços de autoprotecção, também “com vista à protecção de pessoas e bens” e à “prevenção da prática de crimes”.
Impõe ainda a lei que o primeiro tipo de actividade, desenvolvida por entidades privadas que prestem serviços a terceiros, só possa ser exercida com autorização do Ministro de Administração Interna, titulada por alvará e “após cumpridos todos os requisitos (…) estabelecidos no presente diploma” (artigo 22.º, nº 1). Quanto ao segundo tipo de actividade, desenvolvida por qualquer entidade em proveito próprio e expressa na organização de serviços de autoprotecção, exige o legislador que a mesma só possa ser exercida com autorização do Ministro da Administração Interna, titulada por licença e, de igual modo, “após cumpridos todos os requisitos (…) estabelecidos no presente diploma.” (artigo 22.º, nº 2).
Os “requisitos” a que se refere a lei prendem-se, desde logo, com a condição do “vigilante de segurança privada”. De acordo com o disposto no artigo 6.º do Decreto-lei nº 35/2004, consideram-se vigilantes de segurança privada os “indivíduos vinculados por contrato de trabalho às entidades dotadas de alvará ou licença”, e que estejam habilitados a exercer as funções que, logo depois, o próprio preceito enumera. A “habilitação” para o exercício de funções [por parte dos ditos “vigilantes”] pressupõe “formação profissional” (artigo 9.º) e titularidade de “cartão profissional” (artigo 10.º). Para além disso, os demais “requisitos”, de que depende a obtenção de alvará ou licença, reportam-se à estrutura organizativa das próprias entidades candidatas ao licenciamento: estas não podem, por exemplo, deixar de se dotar de meios certos de segurança como os relativos à “vigilância electrónica” (artigo 13.º); de seguir regras precisas como as relativas ao porte de armas por parte do pessoal de vigilância ou à utilização de canídeos (artigo 14.º); e de perfazer outras exigências, entre as quais se conta a formulação do pedido de autorização de acordo com o procedimento fixado no artigo 25.º e a prestação de caução a favor do Estado (artigos 26.º e 27.º).
A prestação de serviços de segurança sem o necessário alvará ou licença constitui, de acordo com o artigo 33.º do Decreto-lei, contra-ordenção muito grave.
No caso, e como já se viu, exerceria a recorrente – cessionária de um estabelecimento de restauração e bebidas – aquele tipo de actividade de segurança privada que, nos termos da lei, corresponderia à “organização, em proveito próprio, de serviços de autoprotecção”. Não detinha a mesma recorrente a licença, exigida por lei. Sustenta-se agora que é inconstitucional semelhante exigência, por ser ela contrária à liberdade de iniciativa económica privada que vem consagrada no artigo 61.º da CRP.
5. Tem o Tribunal afirmado, de forma reiterada (e veja-se a este respeito a síntese feita pelo Acórdão nº 187/01, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que a inserção sistemática do artigo 61.º no Título respeitante aos direitos e deveres económicos, sociais e culturais não exclui que o direito que o seu nº 1 consagra detenha uma certa dimensão de liberdade, dimensão essa enfatizada, depois da revisão constitucional de 1997, com a redacção actual da alínea c) do artigo 80.º da CRP. A observância do bem jurídico que a liberdade de iniciativa económica visa proteger obriga a que, no contexto de uma sociedade aberta e de uma economia de mercado – componente certa da “economia mista” a que se refere o citado artigo 80.º –, a produção e distribuição de bens ou serviços não seja coisa vedada à acção dos privados, que terão assim um direito a uma actividade não obstaculizada por intervenções desrazoáveis ou injustificadas dos poderes públicos. Tal implica que no âmbito de protecção da norma contida no nº 1 do artigo 61.º se conte, não apenas a liberdade de iniciar uma certa actividade económica mas também – e depois dela – a liberdade de organização e de ordenação dos meios institucionais necessários para levar a cabo a actividade que entretanto se iniciou.
Alega a recorrente que é precisamente esta liberdade de empresa o que, ilicitamente, o artigo 3.º, nº 1 do Decreto-lei nº 35/2004 restringe, por fazer depender o exercício da sua actividade de segurança privada – precisamente na modalidade de organização, em proveito próprio, de serviços de autoprotecção – da obtenção de necessária licença.
Certo é, porém, que o nº 1 do artigo 61.º da CRP diz, textualmente, que a liberdade de empresa (entendida no duplo sentido: quer enquanto liberdade de iniciativa quanto enquanto liberdade de organização empresarial) se exerce nos termos definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral. Significa isto que o legislador constituinte, ao reconhecer tal liberdade, o fez sob uma tripla reserva: sob reserva do sistema constitucional no seu conjunto; sob reserva das decisões que, a seu propósito, tome o legislador ordinário; sob reserva daquilo a que chamou “ o interesse geral”.
Independentemente da questão de saber como devem ser considerados os limites que, para a liberdade de iniciativa económica privada, decorrem desta tripla reserva – se serão limites externos ou internos ao direito, em si mesmo considerado, de tal ordem que ao legislador ordinário caiba restringir ou conformar a posição jurídica subjectiva que no artigo 61.º se radica –, uma coisa é certa. A redacção que a CRP a este propósito acolhe está longe de ser estranha ou insólita no plano do direito comparado. A Constituição espanhola, por exemplo, determina no seu artigo 38.º que “[se] reconhece a liberdade de empresa no quadro da economia de mercado. Os poderes públicos garantem e protegem o seu exercício e a defesa da produtividade, de acordo com as exigências da economia geral e, se necessário, da planificação”; e a Constituição italiana, por seu turno, dispõe no artigo 41.º que “[a] iniciativa económica privada é livre. Não pode exercer-se contrariamente à utilidade social, ou de modo a causar dano à segurança, à liberdade e à dignidade humana. A lei determina os programas e os controlos oportunos para que a actividade económica (…) privada possa ser orientada e coordenada por fins de utilidade social”.
Embora variem os respectivos enunciados semânticos, em todos estes lugares foi reconhecida sob reserva a iniciativa económica privada. Sob reserva das exigências da economia geral no caso espanhol; sob reserva, i.a., de utilidade ou de fins sociais no caso italiano; sob reserva de interesse geral no caso português.
Não restam dúvidas que releva do interesse geral a regulação do modo de exercício das actividades de segurança privada – revistam elas a forma de prestação de serviços a terceiros, ou a forma de organização, para proveito próprio, de serviços de autoprotecção. Estando em causa a protecção de pessoas e bens e a prevenção de prática de crimes, está em causa desde logo o exercício de uma ineliminável função estadual, qual seja, a da tutela eficiente de bens jurídicos constitucionalmente valiosos, e decorrentes de direitos, liberdades e garantias pessoais. A estadualidade da tarefa – e, portanto, a sua “natural” publicidade – revela desde logo a estreita relação que as questões de segurança sempre terão com o interesse geral. Relação que seguramente se não perderá, naqueles casos em que, para proveito próprio, quaisquer entidades organizem serviços de autoprotecção ainda com vista à prevenção da prática de crimes e ao assegurar da integridade de pessoas e bens. Apesar de organizados por privados, semelhantes serviços requererão, para serem prestados, o recurso a meios de força que poderão pôr em risco (para usar as palavras do texto constitucional italiano) a segurança, a liberdade e a dignidade dos demais membros da comunidade jurídica. Justifica-se por isso, e precisamente em nome do interesse geral, que caiba ao Estado, e mormente ao legislador, a definição das condições e pressupostos que devem ser preenchidos para que a actividade de autoprotecção possa ser licitamente exercida. A necessária obtenção de licença, exigida pelo nº 1 do artigo 3.º do Decreto-lei nº 35/2004, não merece por isso qualquer censura constitucional.
III – Decisão
Pelo exposto, e com estes fundamentos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma contida no n.º 1 do artigo 3.º, por referência à alínea b) do n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso;
c) Condenar a recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Julho de 2010 – Maria Lúcia Amaral (com declaração de voto) – Carlos Fernandes Cadilha – Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão
Declaração de voto
1. Entendeu o Colégio, neste caso, que o juízo de não inconstitucionalidade se deveria fundar, apenas, na não violação da liberdade de iniciativa económica privada consagrada no artigo 61.º da CRP.
Dissenti deste entendimento. A meu ver – e foi nesse sentido que elaborei o projecto inicial que não obteve, quanto a este ponto, vencimento – deveria ter sido outra a argumentação do Tribunal, porque era outra a questão constitucional que, verdadeiramente, haveria aqui que resolver.
Estava em causa, no recurso, norma constante de legislação ordinária que, regulando o exercício da actividade de segurança privada, exigia para uma das suas modalidades – a organização, em proveito próprio, de serviços de autoprotecção – a obtenção de licença, por parte das entidades que se dispusessem a empreender semelhante organização. Sempre entendi que não era inconstitucional a exigência imposta por lei. No entanto, nunca pensei que o juízo de não inconstitucionalidade se pudesse fundar, exclusiva ou sequer primacialmente, no quadro constitucional que, reconhecendo a liberdade de iniciativa económica privada, delimita o âmbito legítimo de intervenção do legislador quanto à regulação desta liberdade.
Actividade que se traduza (para usar as expressões da lei) na “protecção de pessoas e bens” e na “prevenção da prática de crimes” não é, para a Constituição, uma actividade qualquer. De acordo com o disposto no artigo 9º, alínea b) da CRP, corresponde a mesma, antes, ao cumprimento de uma tarefa fundamental do Estado, exigida ademais pelos deveres públicos de protecção de bens constitucionais valiosos, como os decorrentes dos artigos 24.º, 25.º e 27.º e inscrita, em última análise, no âmago do próprio princípio do Estado de direito.
Assim, perante a clara qualificação constitucional desta “actividade” como tarefa estadual (e, portanto, como ineliminável tarefa pública) entendi que, face ao recurso, a questão prévia e fundamental que haveria a resolver seria a de saber se, e em que medida, admitiria a Constituição o seu exercício por parte de privados. Como é evidente, a resposta não se pode colher simplesmente do texto da CRP, visto que, nele, não há nem autorização expressa nem proibição expressa da assunção, por parte de particulares, de funções de “protecção de pessoas e bens” e de “prevenção da prática de crimes”. Implicando, nestes termos, a resolução do problema um esforço de interpretação constitucional, conclui, em síntese, que: (i) sendo a garantia dos direitos e liberdades fundamentais uma tarefa pública obrigatória, necessária e irrenunciável, ao Estado caberá sempre, em matéria de segurança (“protecção de pessoas e bens e prevenção da prática de crimes”), uma responsabilidade na própria execução da tarefa, e não apenas uma responsabilidade na garantia da sua execução; (ii) este princípio, como qualquer outro princípio constitucional, admitirá compressões, desde que justificadas à luz do sistema da CRP; (iii) no âmbito dessas compressões admissíveis, será constitucionalmente legítima a decisão do legislador de confiar aos privados o exercício de actividades de segurança – para efeitos de prestação de serviços a terceiros ou para efeitos de organização, em proveito próprio, de serviços de autoprotecção – desde que se preserve o núcleo essencial da publicidade da tarefa, o que implica (iv) que o Estado jamais se retire, de forma integral, da responsabilidade na execução da tarefa e que (v) esteja vinculado, no domínio da responsabilidade pela garantia da execução da mesma, a fixar, ex ante, as condições que permitam o seu o exercício lícito por parte dos privados, tal como (vi) a fiscalizar, ex post, o modo concreto desse exercício.
Assim, a exigência legal de obtenção de licença, em juízo no caso concreto, não só surge como algo de constitucionalmente legítimo como, mais do que isso, é – no quadro da admissibilidade de actividades privadas de segurança – algo de constitucionalmente necessário.
2. Neste contexto de ideias, a liberdade de iniciativa privada não pode surgir como parâmetro constitucional idóneo para resolver o problema, que, por definição, se situa sempre fora do âmbito de protecção da norma contida no artigo 61.º, nº 1 da CRP. É que não há lugar para a liberdade de empresa, na sua dupla dimensão de liberdade de acesso à actividade económica e de liberdade de organização da actividade que se iniciou, se a actividade que se pretende empreender se traduzir na “protecção de pessoas e bens” e na “prevenção da prática de crimes”. Se o Estado, em partilha de responsabilidades, decidir confiar essa actividade a privados uma vez preenchidas certas condições, pode fazê-lo permitindo, por lei, a forma empresarial de organização; tal não significa, porém, que, nessa situação, a decisão legal seja uma concretização da liberdade que o nº 1 do artigo 61.º da CRP consagra. Não há nenhum direito fundamental ao exercício de actividades de segurança privada: o legislador ordinário pode, pura e simplesmente, proibi-las. Nestes termos, nunca a norma sob juízo poderia recair no âmbito de protecção da liberdade de iniciativa económica privada.
3. Entendeu o Colégio que assim não era, por estar em causa, no caso, aquela peculiar actividade de segurança que se traduz, não na prestação de serviços a terceiros, mas na organização, em proveito próprio, de serviços de auto-protecção.
Não consegui aderir a este argumento, maioritariamente defendido. A meu ver, a lei apenas regula o exercício da actividade de segurança privada. Quer isto dizer que, aos olhos do legislador – e independentemente das formas do seu exercício – tal actividade é, sempre, uma só. Irrelevante me parece, por isso, para efeitos da determinação do sentido da norma em juízo, que, no caso, se tratasse da forma de exercício correspondente à “organização, em proveito próprio, de serviços de autoprotecção”, em vez da forma de exercício correspondente à “prestação de serviços a terceiros”. Assim – e estando eu firmemente convicta que a justiça constitucional não é, em caso algum, uma justiça de “casos” – não pude compreender como é que as particularidades do “caso” eram tais que chegavam ao ponto de alterar o sentido da norma que havia que julgar. – Maria Lúcia Amaral