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Processo n.º 432/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I Relatório
1. Em acção de impugnação de paternidade movida por A., em que se suscitou a
questão da caducidade da propositura da acção por incumprimento do prazo
previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1842º do Código Civil, o Supremo
Tribunal de Justiça, em recurso de revista, julgou inconstitucional a referida
norma, recusando a sua aplicação no caso concreto, por considerar que o prazo
nela previsto limita desproporcionadamente a possibilidade de impugnação da
paternidade a todo o tempo pelo presumido progenitor, ofendendo ao direito à
identidade previsto no artigo 26.º da Constituição.
Ali se decidiu:
“(…)
1. Face ao preceituado no art. 1842º n.º 1 alínea a) do C. Civil, dúvidas não
pode haver de que ocorreu a dita caducidade do direito de acção, como foi o
entendimento das instâncias. Essa norma exige que a acção de impugnação da
paternidade pelo marido da mãe seja intentada no prazo de dois anos a contar da
data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se pela
sua não paternidade. Ora, conjugando a sua afirmação de que as relações sexuais
com a mãe do menor cessaram em 1990 e o facto de ter tido conhecimento da sua
existência e da data do seu nascimento, pelo menos quando foi citado para a
acção de regulação do poder paternal, antes de Março de 1994, desde então estava
na posse de factos que lhe permitiam concluir pela sua não paternidade. Pelo que
a acção teria de ser proposta, na melhor das hipóteses, até Março de 1996. E só
foi intentada em 2005.
(…)
2. A questão que se coloca é a de saber se a caducidade em causa estabelece um
limite desproporcional ao valor constitucional que o exercício do direito de
acção em causa pretende salvaguardar. Por outras palavras, trata-se de averiguar
se o dito prazo de caducidade, não permite, na prática, que seja devidamente
garantido esse valor.
(…)
O Acórdão do TC no 23/06 de 10.01, declarou inconstitucional, com força
obrigatória geral, a norma do nº 1 do art. 1817º nº 1 do C. Civil, que prevê a
extinção por caducidade do direito de investigar a paternidade a partir dos 20
anos de idade do filho, conforme o art. 26º nº 1 da Constituição, reconhecendo
que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do
“direito fundamental à identidade pessoal”. Tratando-se de estabelecer a
paternidade, invoca-se, pois, o direito à identidade – na vertente de se saber
de onde se vem, ou de quem se vem, dos artºs 25.º n.º 1 e 26.º n.º 1 da
Constituição – que não seria devidamente acautelado se a acção que o concretiza
estivesse sujeita ao dito prazo de caducidade.
A questão que se vem colocando é a de saber se esta doutrina é aplicável às
acções de impugnação da paternidade, que no art. 1842.º n.º 1 alíneas a), b) e
c) do C. Civil, estão sujeitas a diversos prazos de caducidade, consoante sejam
elas propostas, respectivamente, pelo marido, pela mãe, ou pelo filho.
No Acórdão do TC nº 473/07 – DR II Série 18.01.08 - , entendeu-se:
“Há inevitavelmente uma diferença de grau entre a investigação da paternidade,
em que pantentemente está em causa o direito à identidade pessoal do
investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode
implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores),
e a impugnação da paternidade, em que releva a definição do estatuto jurídico do
investigante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por
presunção legal. (sublinhado nosso)”.
“…não estará aqui em causa um direito à identidade pessoal, entendida no sentido
há pouco explanado do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores
(que tem apenas relevo para a acção de investigação da paternidade), mas o
direito ao desenvolvimento da personalidade na dimensão de um direito de
autoconformação da identidade que não poderá deixar de ser reconhecido em
relação ao presumido pai...”
Seria, pois, como que se direito à identidade do filho, apesar de questionado na
acção, não fosse o seu objecto directo, ou imediato. O processo destinar-se-ia
sobretudo a fazer prevalecer o direito à autoconformação da identidade do pai.
Por outro lado, diz-se igualmente na decisão que se justificaria uma restrição à
verdade biológica, que deixaria de ser “um valor absoluto”, em nome de outras
razões, como a da protecção da família conjugal; embora não sendo o direito à
identidade do filho que esteja em causa, justificam-se os limites a esse
direito, na acção de impugnação com a prevalência de determinados outros
valores.
Entendemos que é, efectivamente, o direito à identidade que está em causa na
acção de impugnação, embora mediado pelo direito do pai presumido de ilidir a
presunção de paternidade. São duas faces de uma única realidade.
(…)
No Acórdão do TC n.º 609/07 de 11.12.07, versando sobre a hipótese da acção de
impugnação ser movida pelo filho maior ou emancipado, consignou-se que: “as
razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do
mencionado artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil estão outrossim para a
disposição contida no art. 1842º nº 1, alínea c) do mesmo Código.
Não se antevê que o mencionado prazo de caducidade se justifique, quer dizer,
que seja necessário e proporcional face aos valores que estão em causa, sempre
que uma questão de filiação é colocada e que se afaste a possibilidade do
direito ser conforme à realidade em homenagem a essas restrições. (sublinhado
nosso)”.
Nesta decisão, o direito constitucional a salvaguardar é, por isso, também o
direito à identidade, mas sem se fazer distinções entre as situações de
investigação e as de impugnação, ou seja, como refere, “sempre que uma questão
de filiação é colocada”.
É certo que a decisão em apreço, tratava apenas da hipótese da acção de
impugnação ser movida pelo filho maior ou emancipado, sendo unicamente em
relação a esta modalidade que declarou a inconstitucionalidade do prazo de
caducidade. Contudo, as razões aduzidas devem valer também para o caso do autor
da impugnação ser o pai.
(…)
As razões de segurança jurídica, fundadas na paz social que advém dum quadro
jurídico-familiar estabilizado, mesmo que não correspondendo à verdade
biológica, deixam de fazer sentido perante o devir social. É este bem um caso
que ilustra que a vida flui como areia por entre os dedos da lei. O que hoje
causaria mais alarme social, quando os testes de ADN são de fácil acesso mesmo
fora do âmbito da Justiça, é que esta fosse incapaz de reconduzir a sua verdade
à verdade dos genes que de todos pode ser conhecida. Tratar-se-á duma nova
ética, mas no fundo reconduz-se à ética primordial do primado da família ou
comunidade natural. E isto sobreleva perante o “escândalo” de uma situação
familiar com porventura dezenas de anos vir a ser “abalada”, por uma impugnação,
que, pelo que já consignámos, nunca deve ser considerada tardia.
O prazo em questão apresenta-se como uma salvaguarda desproporcional deste
segundo grupo de valores, face à defesa do direito constitucional do direito à
identidade do art. 26.º n.º 1 da Constituição.
Logo esse prazo, o do art. 1842.º nº 1 alínea a) do C. Civil, na medida em que é
limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido
progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional.
Assim, não se verifica a caducidade da acção.(…)”
2. É desta decisão que o Ministério Público interpõe recurso obrigatório para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º n.º 1 alínea a)
e 72.º n.ºs 1 alínea a) e 3 da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), nos
seguintes termos:
“O representante do Ministério Público, nesta Secção Cível, vem, ao abrigo do
disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 da Lei
n.º 28/82 de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do
douto acórdão de fls. 170/175, na justa medida em que decidiu julgar
inconstitucional a norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a) do Código Civil, por
violadora do princípio constitucional do direito à identidade, contemplado no
artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República, que, como tal, não aplicou (…).”
3. O recurso foi admitido. Já no Tribunal Constitucional as partes foram
convidadas a alegar.
O Ministério Público recorrente conclui:
“(…)
1. A norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, ao
atribuir ao marido da mãe o direito de impugnar a paternidade presumida no prazo
de 2 anos, contados do conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a
sua não paternidade, garante, em termos efectivos e adequados, o direito ao
estabelecimento da verdade biológica, traduzindo uma adequada ponderação entre o
interesse do impugnante em destruir uma paternidade presumida que considera sem
base biológica e os interesses do filho – afectado por tal acção “negatória” da
paternidade, em que figura como réu – e da estabilidade e protecção da família
conjugal.
2. Não pode inferir-se da Constituição que o único modelo, constitucionalmente
admissível, em sede de acções de estabelecimento ou de impugnação de
paternidade, seja o da absoluta imprescritibilidade de todas elas, incluindo as
acções “negatórias”, que extinguem a própria relação jurídica.
3. Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo
de não inconstitucionalidade da norma desaplicada no douto Acórdão recorrido.
(…)”
4. Não foram apresentadas contra-alegações.
II Fundamentação
5. Em primeiro lugar, impõe-se apreciar a oportunidade de conhecer do recurso,
face à alteração legislativa entretanto determinada pela Lei n.º 14/2009 de 1 de
Abril.
O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º
da LTC, para apreciação do artigo 1842º, nº 1, alínea a) do Código Civil, cuja
redacção era a seguinte, à data da prolação do acórdão recorrido:
«1 – A acção de impugnação de paternidade pode ser intentada: a) Pelo marido, no
prazo de dois anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que
possa concluir-se a sua não paternidade».
A Lei nº 14/2009 de 1 de Abril deu nova redacção à alínea a) do nº 1 do artigo
1842º do Código Civil, alterando o prazo dentro do qual pode ser intentada a
acção de impugnação da paternidade, que passou a ser de três anos. Esta nova
redacção aplica-se aos processos pendentes em 2 de Abril de 2009 (artigos 1º, 2º
e 3º) e, consequentemente, ao presente caso.
O recurso de inconstitucionalidade deve apresentar, em sede de fiscalização
concreta, uma função instrumental, ou seja, a decisão da questão de
constitucionalidade tem de “influir utilmente na decisão da questão de fundo”; a
sua utilidade surge como condição do conhecimento do recurso (neste sentido,
entre muitos outros, Acórdãos nºs 169/92, 463/94, 366/96 e 687/2004, disponíveis
em www.tribunalconstitucional.pt).
No caso em apreço, nada obsta, porém, à utilidade do recurso. O novo regime não
influi automaticamente no juízo formulado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Aliás, a decisão recorrida é uma decisão final e o órgão seu autor, como
qualquer tribunal, não pode reponderar oficiosamente as questões já decididas,
ainda que sem trânsito, à luz de uma nova lei, a menos que as regras de processo
o autorizem a reformular a sua decisão, ou que essa nova lei faça renascer o
poder jurisdicional já esgotado com a prolação da primitiva sentença, situação
que aqui não ocorre.
Entende-se, por isso, que o presente recurso mantém plena utilidade.
6. O acórdão recorrido baseou-se na declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil adoptada no
Acórdão n.º 23/06 deste Tribunal, por violação do artigo 26.º da Constituição,
aplicando-a às acções de impugnação da paternidade previstas no artigo 1842.º do
Código Civil. Entendendo que é o direito da identidade que está em causa na
acção de impugnação, mediado pelo direito do pai presumido em ilidir a presunção
de paternidade. Invocou em abono da sua tese o Acórdão n.º 609/07 (caso de acção
movida por filho maior) que julgou inconstitucional a norma ora em apreço, por
entender que as mesmas razões são aplicáveis quando o autor da impugnação seja o
pai.
Todavia, o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre
questão em tudo semelhante à que subjaz no presente caso no seu Acórdão n.º
589/07 (www.tribunalconstitucional.pt). Naquele aludido aresto decidiu o
Tribunal não julgar inconstitucional, por violação do direito à identidade
pessoal e ao desenvolvimento da personalidade previsto no artigo 26.º da
Constituição, a norma vertida no preceito da alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º
do Código Civil.
Escreveu-se nesse acórdão n.º 589/07:
“(…) O Tribunal Constitucional começou por se pronunciar no sentido da
conformidade constitucional dessas normas, enquanto estabelecem uma limitação
temporal ao exercício do direito a ver judicialmente estabelecida a paternidade
(cf. Acórdãos nºs 99/88 – DR, II Série, de 22 de Agosto de 1988, 413/89 – DR, II
Série, de 15 de Setembro de 1989, 451/89 – DR, II Série, de21 de Setembro de
1989, 311/95 – inédito, e 506/99 – DR, II Série, de 17 de Março de 2000).
Nesses arestos, a previsão de um prazo para a instauração da acção de
investigação de paternidade e a fixação do respectivo termo a quo de acordo com
um critério objectivo (por referência à maioridade ou emancipação do
investigante) foi considerada como legítima por razões de certeza e segurança
que visavam evitar a manutenção de uma situação de pendência ou dúvida acerca da
filiação por períodos excessivamente longos.
Posteriormente, porém, o acórdão n.º 456/03, tendo por objecto a apreciação da
constitucionalidade do n.º 2 do artigo 1817º, teve em atenção a configuração
particular de um caso em que o vínculo de filiação juridicamente estabelecido
acabou por se extinguir por efeito da declaração de procedência de uma acção de
impugnação da paternidade, que foi instaurada, por quem constava do registo como
pai, muito depois de transcorrido o prazo que aquele preceito fixava para a
proposição da acção de investigação de paternidade.
Ponderou-se, nesse caso, que o filho, no período em que, de acordo com o teor
literal da lei, podia instaurar a acção de investigação de paternidade,
encontrava se numa situação em que tinha o vínculo de filiação estabelecido de
forma incontestada, e que não dispunha, por isso, de qualquer fundamento para
interpor uma acção de investigação de paternidade.
Nesse contexto, entendeu-se que a consagração de limites ao exercício do direito
a ver reconhecida a filiação natural torna-se constitucionalmente inadmissível,
no ponto em que inutiliza, em relação ao autor da acção de investigação da
paternidade, o direito à identidade pessoal, entendido, no seu conteúdo
essencial, do direito de qualquer pessoa tomar conhecimento da sua ascendência,
nomeadamente, da sua filiação natural (artigo 26º da Constituição).
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional veio a declarar a
inconstitucionalidade do regime geral do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil,
através do acórdão n.º 486/04, de 7 de Junho, por violação das disposições
conjugadas dos artigos 26º, n.º 1, 36º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da Constituição,
aresto que, tendo sido passível de recurso com fundamento em oposição de
julgados (tendo em conta a anterior orientação jurisprudencial quanto a essa
matéria), foi confirmado em Plenário pelo acórdão n.º 11/05, de 12 de Janeiro.
Sucede ainda que a referida norma, enquanto prevê a extinção, por caducidade, do
direito de investigar a paternidade a partir dos 20 anos de idade do filho, foi
declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão n.º 23/06,
de 10 de Janeiro, na sequência de um pedido nesse sentido formulado pelo
Procurador-Geral da República, por entretanto a mesma norma ter sido julgada
inconstitucional, em fiscalização concreta, em mais de três casos concretos
(além dos referidos acórdãos n.ºs 486/04, da 2.ª Secção, e 11/05, do Plenário,
também nas decisões sumárias n.ºs 114/05, de 9 de Março, e 288/05, de 4 de
Agosto).
O entendimento jurisprudencial que se firmou no sentido da inconstitucionalidade
da norma do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, enquanto limita aos dois
primeiros anos posteriores à maioridade ou emancipação a possibilidade de o
interessado, sem paternidade estabelecida, interpor uma acção de investigação de
paternidade, parte do parâmetro constitucional que resulta do n.º 1 do artigo
26º da Constituição, reconhecendo que o direito do filho ao apuramento da
paternidade biológica é uma dimensão do «direito fundamental à identidade
pessoal».
Não deixando de pôr em relevo as razões que justificaram de jure constituto a
previsão de um prazo limitativo da acção de investigação e que se prendem com a
segurança jurídica dos pretensos pais e seus herdeiros (visando prevenir o
prolongamento de uma situação de indefinição quanto ao estabelecimento dos
vínculos de filiação), com o progressivo “envelhecimento” ou perecimento das
provas (considerando que a passagem do tempo potencia o perigo de falibilidade
da prova testemunhal, aumentando a possibilidade de fraude), e ainda com o risco
de aproveitamento meramente egoístico por parte do investigante (quando apenas
pretenda utilizar a acção para aceder, por sucessão, aos meios de fortuna que
pertençam ao pretenso pai), a citada jurisprudência chama particularmente à
atenção para novos elementos sociológicos e técnico-científicos que tornam
justificável uma evolução nas soluções legislativas e doutrinais.
A este propósito, no citado acórdão n.º 486/04, que constitui a matriz da
orientação jurisprudencial que tem sido adoptada em relação ao prazo de
caducidade fixado na referida da norma do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil,
afirmou-se o seguinte:
Com efeito, tem-se verificado uma progressiva, mas segura e significativa,
alteração dos dados do problema, constitucionalmente relevantes, a favor do
filho e da imprescritibilidade da acção – designadamente, com o impulso
científico e social para o conhecimento das origens, os desenvolvimentos da
genética, e a generalização de testes genéticos de muito elevada fiabilidade.
Esta alteração não deixa incólume o equilíbrio de interesses e direitos,
constitucionalmente protegidos, alcançado há décadas, e sancionado também pela
jurisprudência, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a
paternidade.
Grande parte da responsabilidade vai, aqui, para o peso dos exames científicos
nas acções de paternidade e para a alteração da estrutura social e da riqueza,
levando a encarar a outra luz a dita “caça às fortunas”. Mas nota-se também um
movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens, com
desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, que têm acentuado a
importância dos vínculos biológicos (mesmo se, porventura, com exagero no seu
determinismo). (…)
Não deve, igualmente, ignorar-se a valorização da verdade e da transparência,
com a possibilidade de acesso a informação e dados pessoais e do seu controlo,
com a promoção do valor da pessoa e da sua “auto-definição”, que inclui,
inevitavelmente, o conhecimento das origens genéticas e culturais. A partir de
1997, consagrou-se, aliás, expressamente um “direito ao desenvolvimento da
personalidade” no artigo 26º da Constituição (PAULO MOTA PINTO, O direito ao
livre desenvolvimento da personalidade, in Portugal-Brasil, ano 2000, Coimbra,
2000), comportando dimensões como a liberdade geral de acção e uma cláusula de
tutela geral da personalidade. E, se tanto o pretenso filho como o suposto
progenitor podem invocar este preceito constitucional, não é excessivo dizer-se
que ele “pesa” mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de
investigar é indispensável para determinar as suas origens.
Neste plano de avaliação, o acórdão que vimos de acompanhar passa a desvalorizar
as considerações de ordem ético-pragmática (já há pouco sintetizadas) que têm
servido de fundamento à conveniência do estabelecimento de um limite temporal
para a propositura de acções de investigação.
Assim, e em relação aos riscos da prova relativa à matéria da filiação, quando a
introdução da acção em juízo possa ser diferida no tempo, pondera-se agora que
essa justificação não é de todo relevante face aos avanços científicos que têm
permitido o emprego generalizado de testes de ADN com uma fiabilidade próxima da
certeza e que torna possível estabelecer com grande segurança o vínculo de
maternidade ou de paternidade. Também o risco de instrumentalização da acção de
investigação, na perspectiva de que o investigante poderia ser motivado a agir
por razões puramente patrimoniais (quando pudesse intentar a acção a qualquer
tempo) tem hoje de ser avaliado à luz de uma nova realidade sociológica em que
entra em linha de conta a recomposição do tecido social e de distribuição de
riqueza, a ponto de não poder retirar-se a ilação de que o filho, apenas porque
não tem definido o seu vínculo de filiação, se encontra numa situação de
inferioridade económica e social em relação ao pretenso progenitor, que, por si,
possa estimular o recurso à acção apenas com o intuito de obter um direito à
herança paterna. A que acresce agora, também, uma mais forte consciencialização
dos direitos de personalidade, por parte dos cidadãos, e, em especial, do
direito à identidade pessoal, que poderá ter um peso mais significativo, no
impulso processual, do que a simples expectativa sucessória. Por fim, entende-se
também que o interesse do pretenso progenitor em libertar-se da situação de
incerteza quanto à existência de um vínculo de paternidade, que redunda numa
garantia de segurança jurídica, não tem um valor decisivo quando colocado em
confronto com bens constitutivos da personalidade, e não pode merecer uma
protecção superior àquela que deve ser conferida a um direito eminentemente
pessoal, como é o de conhecimento da identidade dos progenitores.
Foram estes argumentos que, em tese geral, foram acolhidos no acórdão ora
recorrido e que, com a colocação da tónica no princípio da verdade biológica,
vieram a determinar a formulação de um juízo de inconstitucionalidade também em
relação à norma do artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, no ponto em
que fixa, em relação ao marido da mãe, um prazo de dois anos para a propositura
da acção de impugnação de paternidade contado do momento do conhecimento de
circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade.
A questão que se coloca no presente processo é, pois, a de saber se as
considerações que conduziram o Tribunal Constitucional a declarar a
inconstitucionalidade da norma do artigo 1817º, n.º 1, do mesmo Código,
aplicável à acção de investigação de paternidade, são plenamente transponíveis
para a apreciação do prazo de caducidade previsto naquela outra disposição
legal, que, diferentemente, se refere à propositura de acção de impugnação de
paternidade.
(…) As acções com incidência no estabelecimento da paternidade estão
subordinadas a um regime jurídico diferenciado, mormente no tocante aos prazos
de caducidade.
Quanto ao reconhecimento judicial da paternidade, através da falada acção de
investigação, o artigo 1869º atribui legitimidade activa apenas ao filho, que,
nos termos do artigo 1817º (por via da remissão operada pelo artigo 1873º)
poderia propor a acção durante a menoridade ou nos dois primeiros anos
posteriores à sua maioridade ou emancipação. O prazo limite, que corresponde, em
regra, ao momento em que o investigante atinge 20 anos de idade, é estritamente
objectivo, na medida em que se conta a partir de um evento pré-determinado (o
momento em que o investigante atinge a plena capacidade jurídica) e que torna
irrelevante, em princípio, um conhecimento subjectivo tardio do vínculo
biológico em que assenta a filiação que o filho pretende estabelecer
juridicamente. Só nos casos excepcionais, regulados nos nºs 2 a 6 desse preceito
legal, é que poderia relevar juridicamente, para efeitos de caducidade, certo
facto produzido ulteriormente ao momento em que se consumou a maioridade ou a
emancipação do investigante, caso em que o prazo para a propositura da acção
(que fica então reduzido a um ano) se conta a partir desse evento: a remoção de
registo inibitório, por efeito da rectificação, declaração de nulidade ou
cancelamento do registo (n.º 2); o acesso a escrito em que se declara
inequivocamente a paternidade (n.º 3); alteração da relação fáctica ou social
que pressuponha o reconhecimento informal de tal vínculo, seja por efeito da
morte da mãe ou do investigante, quando este em vida fosse tratado
voluntariamente como filho, seja por efeito da cessação voluntária do tratamento
como filho (n.ºs 4 e 5).
No que se refere à acção de impugnação de paternidade – que visa a impugnação da
paternidade presumida do filho nascido ou concebido na constância do matrimónio
da mãe –, o artigo 1842º do Código Civil, não só amplia o critério de
legitimidade, uma vez que permite que a acção possa ser proposta autonomamente
pelos diversos titulares da relação jurídica (o marido, a mãe e o filho), como
também estabelece prazos de diferente duração e modo de contagem. O marido da
mãe beneficia de um prazo de 2 anos, contado da data em que teve conhecimento de
factos ou circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, e,
portanto, sem qualquer limite objectivo. A mãe do menor dispõe do mesmo prazo de
2 anos, mas contado do facto objectivo do nascimento, pressupondo o legislador,
naturalmente, que a mãe do menor não poderá razoavelmente ignorar a inexistência
do vínculo biológico por parte do marido. O filho poderá propor a acção no prazo
de 1 ano, que se conta a partir do momento em que atingiu a maioridade ou a
emancipação ou, uma vez adquirida essa situação jurídica, a contar do
conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se não ser o impugnante
filho do marido da mãe.
Por sua vez, para a acção de impugnação da perfilhação – visando a impugnação do
acto jurídico de reconhecimento de filho não nascido na constância do matrimónio
-, o artigo 1859º prevê um regime aberto de legitimidade activa e de
imprescritibilidade da acção, em que se destacam os seguintes aspectos: (a) a
impugnação tem como fundamento a falta de correspondência à verdade no acto de
perfilhação (e, portanto, a inexistência de uma filiação biológica); (b) a acção
poderá ser proposta a todo o tempo, e mesmo depois da morte do perfilhado; (c)
tem legitimidade para a propor o perfilhante, o perfilhado, o Ministério
Público, e qualquer pessoa com interesse moral ou patrimonial na procedência da
acção, aqui se incluindo as pessoas que sejam prejudicadas nos seus direitos
sucessórios com o chamamento do perfilhado à herança do perfilhante e quaisquer
parentes do perfilhante que, independentemente da sua posição como seus
herdeiros, tenham interesse em afastar o perfilhado da família comum.
A lei, por outro lado, distingue a impugnação da perfilhação (que tem como
fundamento autónomo a falta de verdade biológica) dos casos de anulação, a que
se referem as disposições subsequentes, e que se baseia na existência de vícios
de consentimento (erro ou coacção) ou na falta de capacidade do perfilhante
(artigos 1860º e 1861º).
Assiste-se, por conseguinte, no âmbito da impugnação da perfilhação, a um
alargamento da legitimidade activa ao Ministério Público e a pessoas que tenham
um mero interesse moral na procedência da pretensão (bem como a própria
inexistência de um prazo de caducidade para a propositura da acção), que é bem
demonstrativo do interesse público de que se reveste, na área da filiação fora
do casamento, a regra da coincidência da filiação com a realidade biológica da
procriação (neste sentido, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado,
vol. V, Coimbra, 1995, pág. 267).
A diversidade de regimes, acabada de expor, e, em especial, o confronto da
solução legal prevista para a impugnação da perfilhação com os critérios mais
restritivos do artigo 1842º (em que se mantém a regra da caducidade do direito
de impugnação da paternidade presuntiva e se restringe o direito de acção ao
núcleo de pessoas mais directamente interessadas), põe em destaque o relevo que
o legislador confere ao interesse geral da estabilidade das relações sociais e
familiares e ao sentimento de confiança em que deve basear-se a relação
paternal, quando se trate de filhos nascidos na vigência do matrimónio.
Na perspectiva do legislador, nas situações de paternidade presumida, a
necessidade de salvaguardar a harmonia e paz familiar explicam que a ordem
jurídica aceite a relação de filiação como definitivamente adquirida, a partir
de determinado momento, embora sabendo que ela pode não corresponder à realidade
biológica normalmente subjacente ao vínculo de paternidade (PIRES DE
LIMA/ANTUNES VARELA, ob. cit., pág. 210); ao contrário, a descoberta da verdade
é erigida em interesse público, numa área de filiação em que se não coloca em
perigo a estabilidade da família legalmente constituída, como ocorre em relação
à impugnação da perfilhação.
Por outro lado, como vimos, são, não já exigências cautelares da família
conjugal, mas considerações ligadas à certeza e segurança jurídica, enquanto
valores de organização social - a que se associam outros aspectos atinentes à
eficácia das provas e à possível instrumentalização do direito de acção - que
justificaram, do ponto de vista legislativo, o estabelecimento de um prazo de
caducidade para investigação da paternidade, surpreendendo-se, por isso, aqui
também, uma diferença específica na razão de ser da lei que motivou a fixação de
um limite temporal quer para a acção de investigação de paternidade, tal como
previsto no citado artigo 1817º (aplicável por força do artigo 1873º), quer para
a acção negatória de paternidade, a que se refere o artigo 1842º, n.º 1, alínea
a).
E foram aquelas considerações que, no acórdão n.º 486/04, se entendeu não
poderem hoje prevalecer relativamente ao conteúdo essencial do direito
fundamental à identidade pessoal, que inclui o direito ao conhecimento da
ascendência paterna, quando está em causa a investigação da paternidade.
(…)
Como tem sido entendido, o direito à identidade pessoal, tal como está
consagrado no artigo 26º, n.º 1, da Constituição, abrange, não apenas o direito
ao nome, mas também o direito à historicidade pessoal, enquanto conhecimento da
identidade dos progenitores, e poderá fundamentar, por si, um direito à
investigação da paternidade e da maternidade (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, vol. I,
Coimbra, pág. 462). Num outro registo, a identidade pessoal, sendo o que
caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de
todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal, inclui também o
direito à identidade genética própria e, por isso, ao conhecimento dos vínculos
de filiação, no ponto em que a pessoa é condicionada na sua personalidade pelo
factor genético (JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada,
Tomo I, Coimbra, 2005, págs. 204-205).
Como se afirmou no acórdão n.º 456/03, já mencionado, «Tal direito inclui no seu
conteúdo essencial a possibilidade de qualquer pessoa tomar conhecimento da sua
ascendência, nomeadamente, da sua filiação natural. Nessa medida, a lei consagra
os mecanismos judiciais que visam efectivar o exercício de tal direito,
permitindo a investigação da filiação (maternidade, paternidade), de modo a que
todos os indivíduos tenham a possibilidade de identificar os seus progenitores
para, entre outros fins, ser estabelecido o vínculo de filiação jurídica com
base no vínculo biológico».
A revisão constitucional de 1997 passou também a consagrar constitucionalmente,
no mesmo preceito, o direito ao desenvolvimento da personalidade. Este assegura
uma tutela mais abrangente da personalidade, que inclui duas diferentes
dimensões: (a) um direito à formação livre da personalidade, que envolve a
liberdade de acção de acordo com o projecto de vida e capacidades pessoais
próprias; (b) a protecção da integridade da pessoa em vista à garantia da esfera
jurídico-pessoal no processo de desenvolvimento. Neste plano, o desenvolvimento
da personalidade comporta uma liberdade de autoconformação da identidade, da
integridade e da conduta do indivíduo, e nele se pode incluir, além de muitos
outros elementos, um direito ao conhecimento da paternidade e da maternidade
biológica (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., pág. 463-464).
Como vimos, a lei prevê a prescritibilidade da acção de investigação de
paternidade tal como da acção de impugnação de paternidade. As razões que terão
estado na definição desse regime jurídico prendem-se, como se anotou, com o
inconveniente da manutenção de uma situação prolongada de insegurança e o perigo
de enfraquecimento das provas com a passagem do tempo, a que acresce, no que
toca especialmente à impugnação da paternidade do marido, um outro motivo
relacionado com a necessidade de proteger a unidade familiar.
Como se concluiu no aresto há pouco citado, como decorrência do direito
fundamental à identidade pessoal, a consagração de limites ao exercício do
direito a ver reconhecida a filiação natural não poderá inutilizar esse direito.
Isto é, independentemente de ser ou não constitucionalmente criticável a
possibilidade de consagração de limites, nomeadamente temporais, ao exercício do
direito de instaurar a acção de investigação de paternidade, não é já,
seguramente, admissível a criação de um limite que, na prática, vede, em
absoluto, a possibilidade de o sujeito averiguar o vínculo de filiação natural.
Esse princípio foi reafirmado pela jurisprudência constitucional, de forma mais
abrangente, em relação ao prazo-regra do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil
(aplicável à acção de investigação de paternidade por força do artigo 1873º), em
termos tais que veio, mais tarde, a ser declarada, com força obrigatória geral,
a inconstitucionalidade dessa referida norma.
O acórdão n.º 486/04, que inaugurou essa jurisprudência, não deixou, todavia, de
vincar que o que estava então em causa era o concreto limite temporal previsto
no artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil (pelo qual ao investigante está vedado
propor uma acção de investigação de paternidade para além do prazo de dois anos
a contar da maioridade ou emancipação), e não a questão de saber se a
imprescritibilidade da acção corresponde à única solução constitucionalmente
conforme.
Do referido acórdão não se pode, portanto, extrair a ilação de que qualquer
regime de prescritibilidade legalmente consagrado para as acções relativas ao
estabelecimento do vínculo de filiação se encontra ferido de
inconstitucionalidade. E não é possível, sem mais, aceitar o princípio de que as
considerações avançadas para sustentar a inconstitucionalidade do prazo de
caducidade previsto para a acção de investigação de paternidade são também
válidas para o prazo fixado no artigo 1842º, n.º 1, alínea a), para a impugnação
de paternidade por parte do pai presumido.
O próprio acórdão n.º 486/04 reconhece – no excerto há pouco transcrito - que,
embora tanto o pretenso filho como o suposto progenitor possam invocar um
direito à identidade pessoal ou ao desenvolvimento da personalidade, a tutela da
personalidade e da liberdade de acção pesa mais para o lado do filho, para quem
o exercício de investigar é indispensável para determinar as suas origens, dando
assim guarida à ideia de que os prazos de caducidade da acção de investigação de
paternidade e da acção de impugnação de paternidade não têm de ser analisados
necessariamente sob o mesmo prisma.
(…) Sendo a acção de impugnação de paternidade intentada pelo marido da mãe, não
pode invocar-se, como obstáculo potencial à respectiva caducidade, o direito
fundamental do filho ao apuramento da respectiva filiação biológica, porquanto a
eventual caducidade de direito de acção pelo transcurso do prazo previsto no
artigo 1842º, n.º 1, alínea a), em nada afecta naturalmente a possibilidade de o
filho, ulteriormente, através de quem o represente ou por iniciativa própria, no
prazo de 1 ano a contar da maioridade ou emancipação, intentar a sua própria
acção, não necessitando de suportar na sua esfera jurídica a preclusão derivada
do “atraso” na impugnação por parte do outro sujeito legitimado (o marido da
mãe).
O que está, deste modo, em causa é saber se a norma que constitui objecto do
presente recurso viola um direito fundamental à identidade pessoal do marido da
mãe, susceptível de fundar a conclusão de que a respectiva acção poderia e
deveria, por imposição constitucional, ser proposta a todo o tempo,
independentemente do momento em que tal sujeito, legitimado para impugnar, teve
conhecimento das circunstâncias que permitem razoavelmente duvidar da sua
paternidade.
Parece, todavia, que não estará aqui em causa um direito à identidade pessoal,
entendida no sentido há pouco explanado de direito ao conhecimento da identidade
dos progenitores (que tem apenas relevo para a acção de investigação de
paternidade), mas o direito ao desenvolvimento da personalidade na dimensão de
um direito de autoconformação da identidade, que não poderá deixar de ser
reconhecido em relação ao presumido pai, quando este tenha motivos para duvidar
da sua paternidade biológica e pretenda esclarecer a sua posição social e
jurídica quer em relação ao filho presumido, quer em relação ao agregado
familiar, quer ainda ao meio social em que se insere.
Há, no entanto, inevitavelmente, uma diferença de grau entre a investigação de
paternidade, em que patentemente está em causa o direito à identidade pessoal do
investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode
implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores),
e a impugnação de paternidade, em que o releva é a definição do estatuto
jurídico do investigante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído
por presunção legal.
Assim se compreende que sistemas jurídicos que admitem a investigação de
paternidade sem limite, mostrando dar preferência à tutela do direito inviolável
à identidade pessoal, já imponham a caducidade do direito de impugnação,
aceitando assim que, decorrido o prazo fixado na lei, se consolide a paternidade
presumida ainda que não corresponda à verdade biológica (notícia desta
diferenciação de regimes em PEREIRA COELHO/GUILHERME DE OLIVEIRA, ob. cit., pág.
139; GUILHERME DE OLIVEIRA, O Critério Jurídico da Paternidade (reimpressão),
Coimbra, 1998, pág.372).
Deve notar-se que o princípio da verdade biológica não tem aqui um valor
absoluto. Sabe-se que as razões que justificam a fixação de um prazo de
caducidade para a acção de impugnação de paternidade não são inteiramente
coincidentes com as que tinham determinado a perempção da acção de investigação
de paternidade, pois que para além das considerações de natureza pragmática que
se prendem com a certeza e segurança jurídica e a eficácia das provas, releva
ainda com particular acuidade, naquele primeiro caso, a protecção da família
conjugal. É esse interesse que explica que um terceiro (pretenso progenitor) não
tenha legitimidade ex novo para afastar a presunção de paternidade do marido da
mãe e obter o reconhecimento da sua paternidade, e só possa intervir
processualmente através ao Ministério Público (mediante requerimento que lhe
deverá ser apresentado em prazo muito curto) e depois de previamente reconhecida
a viabilidade do pedido (artigo 1841º do Código Civil). O direito de impugnação
da paternidade está, assim, apenas, na disponibilidade directa dos membros da
família, no sentido de que só o marido, a mãe e o filho é que se encontram
autonomamente legitimados a intentar a acção. E não está, por isso, excluído que
a situação de discrepância entre a paternidade presumida e a realidade biológica
se mantenha sempre que não haja interesse concreto por parte dos interessados na
destruição da paternidade presumida.
Certo é que o legislador poderá, à semelhança de outros sistemas jurídicos, dar
primazia a considerações de política legislativa fazendo prevalecer o princípio
da verdade biológica sobre o eventual prejuízo para a unidade familiar,
permitindo que a acção de impugnação possa ser proposta a todo o tempo. Há, no
entanto, condicionalismos objectivos que permitem distinguir entre a
investigação de paternidade e a impugnação de paternidade e que podem justificar
que as pretensões de constituição de vínculos novos venham a merecer um
tratamento jurídico diferenciado em relação a pretensões que tenham a vista a
destruição de vínculos pré-existentes (admitindo expressamente esta
possibilidade de conformação legislativa, PEREIRA COELHO/GUILHERME DE OLIVEIRA,
ob. cit., pág. 139).
Sublinhe-se que o prazo para a propositura da acção de investigação de
paternidade, cominado através da inconstitucionalizada norma do artigo 1817º,
n.º 1, do Código Civil, se contava a partir de um facto objectivo (a aquisição
da maioridade ou emancipação do investigante), a ponto de ficar inviabilizado o
exercício do direito de acção quando o interessado apenas tivesse tido
conhecimento efectivo da situação que justifica o impulso processual já depois
de transcorrido o prazo de dois anos a contar desse momento. Poderá facilmente
concluir-se, nesse contexto, que é desproporcionada e violadora do direito à
identidade pessoal a norma que impede a investigação de paternidade em função de
um critério de prazos objectivos, quando os fundamentos para instaurar a acção
surgem pela primeira vez em momento ulterior ao termos desses prazos. Tal norma
consagra, nesses termos, uma efectiva negação da possibilidade de conhecimento
da paternidade.
Ao contrário, o prazo definido no artigo 1842º, n.º 1, alínea a), para a
impugnação da paternidade por parte do pai presumido – que está agora em causa
-, sendo de duração idêntica à daquele, conta-se, todavia, a partir de um facto
subjectivo, que se traduz no «conhecimento de circunstâncias de que possa
concluir-se a sua não paternidade». Este parece ser um prazo razoável e adequado
à ponderação do interesse acerca do exercício do direito de impugnar e que
permitirá avaliar todos os factores que podem condicionar a decisão. E o
presumido pai não pode sequer invocar uma situação de impossibilidade de exercer
o direito, já que, a partir do conhecimento pessoal de factos que indiciem a
inexistência de um vínculo real de filiação, dispõe sempre de tempo útil para
afastar a presunção de paternidade.
Neste contexto, não parece que a fixação de um prazo de caducidade para a
impugnação de paternidade pelo pai presumido, nos termos em que se encontra
previsto na referida norma do artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil,
represente uma intolerável restrição ao direito de desenvolvimento da
personalidade entendido com o alcance de um direito de conformar livremente a
sua vida, quando é certo que a preclusão do exercício do direito de impugnar
pode justamente ter correspondido a uma opção que o interessado considerou ser
em dado momento mais consentâneo com o seu interesse concreto e o seu
condicionalismo de vida.
Por tudo, não pode entender-se – contrariamente ao que se consignou no acórdão
recorrido – que exista uma paridade de situação entre os prazos de caducidade
dos artigos 1817º, n.º 1, e 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil em termos
de se poder aplicar neste último caso as razões que conduziram o Tribunal
Constitucional a declarar a inconstitucionalidade daquele outro preceito. (…)”
Entendeu-se, em suma, conferir adequado relevo à diferença que existe entre a
investigação de paternidade, em que está em causa o direito à identidade pessoal
do investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode
implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores),
e a impugnação de paternidade, em que o que importa é a definição do estatuto
jurídico do impugnante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído
por presunção legal. Assim, visto que o prazo do artigo 1842º, n.º 1, alínea a)
do Código Civil para a impugnação da paternidade por parte do pai presumido se
conta a partir de um facto subjectivo (o «conhecimento de circunstâncias de que
possa concluir-se a sua não paternidade»), considerou-se ser este um prazo
razoável e adequado à ponderação do interesse acerca do exercício do direito de
impugnar.
Importa assim sublinhar, na esteira da jurisprudência já citada, a diferença de
situações que ocorre entre o caso agora em presença e aquele que foi tratado
Acórdão n.º 609/07: por um lado, o direito do filho a conhecer a sua filiação
biológica; por outro, o direito do progenitor registado à autoconformação da
identidade, quando este tenha motivos para duvidar da sua paternidade biológica
e pretenda esclarecer a sua posição social e jurídica em relação ao filho
presumido.
Por todo o exposto, aderindo à jurisprudência fixada no Acórdão n.º 589/07, já
referido, considera-se que o prazo definido no artigo 1842º n.º 1 alínea a) do
Código Civil para a impugnação da paternidade por parte do pai presumido, é um
prazo razoável e adequado à ponderação do interesse acerca do exercício do
direito de acção.
Pelas razões expostas, deve o recurso ser julgado procedente.
III Decisão
7. Assim, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional, por violação do artigo 26.º da Constituição, a
norma do artigo 1842.º nº 1 alínea a) do Código Civil, quando, ao fixar um prazo
de 2 anos, limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido
progenitor, da sua paternidade;
b) Julgar procedente o recurso, ordenando a reforma do acórdão recorrido em
conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Maio de 2010
Carlos Pamplona de Oliveira
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos