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Processo n.º 321/09
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I - Relatório
1. A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Beja deduziu
acusação para julgamento em processo comum, perante tribunal singular, contra A.
imputando-lhe a prática, como autor material, de um crime de falsidade de
testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º do Código Penal. Na mesma peça processual
foi nomeado defensor ao arguido. Notificado, o arguido nada disse pelo que os
autos foram remetidos à distribuição.Por despacho proferido em 23 de Fevereiro
de 2009, nos termos do artigo 311.º do Código de Processo Penal, decidiu o juiz
não receber a acusação, devolvendo os autos ao Ministério Público a fim de ser
proferido novo despacho de encerramento de inquérito. No mesmo despacho, o juiz
julgou inconstitucional, por violar o princípio constitucional da igualdade
consagrado no artigo 13.º da Constituição, a norma do artigo 283.º do Código de
Processo Penal, quando interpretada no sentido de ser lícito ao Ministério
Público deduzir acusação para julgamento em processo comum com intervenção do
tribunal singular sem fundamentar, no despacho de encerramento do inquérito, as
razões da não aplicação tanto das medidas alternativas previstas nos artigos
280.º e 281.º, como das formas de processo especiais previstas no Livro VIII do
mesmo diploma legal, nos casos em que estejam preenchidos os respectivos
requisitos.Considerou-se ainda que a não aplicação do processo sumaríssimo, do
processo abreviado e do instituto da suspensão provisória do processo
consubstancia um acto decisório, sujeito ao dever de fundamentação do artigo
97.º, nºs 3 e 5 do Código de Processo Penal, não se alcançando do despacho o
motivo da dedução da acusação em processo comum singular já que o despacho não
se encontra fundamentado. É certo, aceita-se nesta decisão, que o arguido dispõe
de meios processuais para reagir contra tal actuação do Ministério Público, pelo
que, em princípio, não competiria ao tribunal apreciar essa matéria; todavia,
por considerar que a actuação do Ministério Público contende com a Constituição,
tal censura deve ser declarada pelo tribunal, ordenando-se o cumprimento dos
trâmites devidos. Diz-se na decisão:
“Cumpre proferir despacho a que alude o disposto no art. 311º do CPP. Para
julgamento em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, o MP deduziu
acusação contra A., imputando-lhe a prática de um crime de falsidade de
testemunho, p. e p. pelo art. 360º nº.1 do Cód.Penal. A moldura abstracta da
pena prevista para tal tipo de crime é de pena de prisão de seis meses a três
anos ou com pena de multa não inferior a sessenta dias. Compulsados os autos,
verifica-se que ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais - cf. CRC
de fls. 24. Resulta ainda que, desde que o MP adquiriu a notícia do crime até
que deduziu a acusação, não decorreram 90 dias.Assim sendo, a questão que desde
logo se coloca é a seguinte: Porquê a dedução de acusação em processo comum
quando estão verificados os requisitos objectivos da suspensão provisória do
processo, do processo sumaríssimo, e do processo abreviado- Pergunta esta que
não poderá obter resposta uma vez que a Digna Magistrada não verteu em despacho
fundamentado o raciocínio que teve necessariamente de fazer para afastar a
aplicação daquele instituto e formas especiais de processo.Como é sabido, se em
relação ao processo sumaríssimo já antes vigorava o princípio da legalidade,
após as alterações introduzidas ao CPP pela Lei 59/2007, de 04 de Setembro,
também o instituto da suspensão provisória do processo e o recurso ao processo
abreviado deixaram de estar sob a alçada de qualquer critério de oportunidade,
imperando hoje também aí o princípio da legalidade.E a este respeito, dúvidas
não há de que foi essa a intenção do legislador, não só pelo argumento literal
resultante da alteração da redacção dos arts. 281º e 391º-A do CPP, mas também
por aquilo que se fez expressamente constar nos trabalhos preparatórios. Com
efeito, como resulta da Acta nº. 22 da Unidade de Missão para a Reforma Penal,
ali se afirmou que as alterações a introduzir em sede de processos especiais têm
o objectivo de reforçar a aplicabilidade deste tipo de processos para promover
uma realização célere da justiça e uma rápida reposição da paz jurídica. «(...)
No âmbito da suspensão provisória do processo são introduzidas diversas
alterações com vista ao aumento da aplicação deste regime, destacando-se as
seguintes: é eliminado o carácter facultativo da sua utilização pelo Ministério
Público, ao qual é determinado que aplique a suspensão, com a concordância dos
restantes sujeitos processuais e do juiz, desde que estejam preenchidos os
respectivos requisitos; (...) Quanto ao processo abreviado, são
introduzidas as seguintes alterações: eliminação do carácter facultativo desta
forma processual, atribuindo-se o dever de promoção ao Ministério Público desde
que estejam preenchidos os respectivos requisitos; (...)». Essa
necessidade de ampliar a aplicabilidade de tais regimes fica patente na consulta
ao relatório anual da PGR relativo a 2007, disponível in www.pgr.pt, do qual
resulta que nesta comarca, durante esse ano, foram apenas deduzidas 58 acusações
em processo abreviado, 62 em processo sumaríssimo, 2 arquivamentos por dispensa
de pena e 9 suspensões provisórias do processo, o que contrasta com as 279
acusações para julgamento em Tribunal Singular. Mesmo após as alterações
introduzidas ao CPP, fazendo uma consulta dos elementos estatísticos disponíveis
neste Tribunal, verifica-se que desde 15 de Setembro de 2007 até à presente data
foram distribuídos a este 2º Juízo: 179 processos com acusação para julgamento
em Tribunal Singular; 88 processos sumários; 36 sumaríssimos; 25 abreviados; 2
arquivamentos por dispensa de pena e 8 suspensões provisórias do processo. Quer
isto dizer que, somados os números relativos aos regimes processuais
alternativos e especiais, o total é inferior ao número de acusações para
julgamento com intervenção do Tribunal Singular, sendo que na maior parte das
condenações foi aplicada pena de multa.A respeito do novo paradigma de aplicação
da suspensão provisória do processo, já o STJ teve oportunidade de se pronunciar
no sentido de não haver qualquer margem de oportunidade para o MP na sua
aplicação - Acórdão de 12/02/2008, em que foi relator o Conselheiro Simas
Santos, disponível in www.dgsi.pt, o qual mereceu o comentário concordante de
Rui do Carmo in Revista do Ministério Público, nº. 114, págs. 189 e sgs. Estando
o MP vinculado a um critério de legalidade estrita, o juízo de ponderação que
subjaz à não aplicação daqueles institutos e formas especiais de processo
consubstancia um acto decisório e, como tal, sujeito ao dever de fundamentação -
art. 97º nºs. 3 e 5 do CPP. No fundo, exige-se ao MP na fase de inquérito a
mesma ponderação e fundamentação que ao juiz é exigida na escolha e determinação
da medida concreta da pena. Ora, voltando ao caso concreto, como se viu tal
fundamentação não existiu. O CPP contempla actualmente vários mecanismos que
permitem ao arguido tanto impulsionar a aplicação de tais regimes, como reagir à
sua não aplicação. São eles: - possibilidade de o arguido requerer a suspensão
provisória do processo ou a aplicação de pena em processo sumaríssimo (arts.
281º nº.1 e 392º); - possibilidade de o arguido requerer a abertura de instrução
para ver aplicado o arquivamento em caso de dispensa de pena ou a suspensão
provisória do processo (arts. 280º nº.2 e 307º nº.2); - arguição de nulidade por
aplicação de uma forma de processo quando a lei determinar a utilização de outra
(art. 120º nº.2).Em qualquer destes casos, o controlo judicial da actuação do MP
no inquérito só pode ser efectuado se o arguido lançar mão de algum destes
meios. Pelo que, em termos estritamente intra-processuais, não seria lícito
fazê-lo no âmbito do presente despacho.No entanto, o processo penal também
assume uma dimensão extra-processual, no âmbito da qual recai sobre os Tribunais
a salvaguarda de imperativos constitucionais. E, a este nível, uma actuação do
MP nos moldes descritos contende, no meu entender, com a Constituição da
República Portuguesa, quer em termos daquilo que ali é consagrado a respeito das
funções e estatuto do MP, quer em termos de direitos fundamentais. Com efeito,
se compete ao MP participar na execução da política criminal definida pelos
órgãos de soberania e exercer a acção penal orientada pelo princípio da
legalidade, a dedução de acusação em processo comum singular em situações que
objectivamente seriam de integrar numa suspensão provisória do processo e,
subsidiariamente, numa forma de processo especial, viola o disposto no art. 219º
da CRP porquanto contraria aquilo que actualmente está definido em termos de
orientações sobre a pequena criminalidade (Lei 51/2007, de 31 de Agosto) e, como
se viu, contende com o princípio da legalidade.Na vertente dos direitos
fundamentais, a total ausência de fundamentação da decisão de não aplicação da
suspensão provisória do processo e das formas de processo especiais que no caso
caberiam, facilmente se confunde com mera discricionariedade, até mesmo
arbitrariedade, o que acaba por se traduzir numa violação do princípio da
igualdade, consagrado no art. 13º da CRP. Seguindo de perto a
comunicação do Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Lisboa,
Dr. João Ramos, no âmbito de acção de formação contínua subordinada ao tema 'A
Reforma do Processo Penal', que teve lugar no passado dia 16 de Janeiro, a qual
será oportunamente objecto de publicação na Revista do CEJ, mas cujo texto me
foi gentilmente facultado e autorizada a citação, «(...) continuam a ser
dominantes no sistema de justiça formal os processos relativos à pequena e média
criminalidade e escassa a utilização das formas especiais de processo e medidas
de consenso. Continua, por actual, a necessidade de insistir no cumprimento do
paradigma de política criminal de diferenciação de tratamento da pequena e média
criminalidade.(...)A ideia de celeridade e economia processual não são fruto de
uma mera lógica de produtividade e eficácia. É fruto da própria lógica de
justiça, potenciadora de efeitos de prevenção geral positiva ou de integração,
ensinou Anabela Rodrigues.E ensinou Figueiredo Dias que 'a intervenção do
sistema formal de controlo deve estritamente limitar-se pelas máximas da mais
lata diversão e da menor intervenção socialmente suportáveis'.Já Pinto Torrão,
em 2000, a propósito da SPP, afirmava ser ilegítimo ao MP, findo um determinado
inquérito, impor a continuação do processo e a sua submissão a julgamento quando
verificados os pressupostos do nº.1 do art. 281º, quando 'essa continuação se
mostrar desnecessária para a prossecução dos fins de política criminal'. A
reforma, acentuando o poder-dever do MP de optar pela suspensão provisória do
processo, quando verificados os seus pressupostos, (...) fechando assim a porta
a interpretações que na redacção anterior (...) insistiam tratar-se de opção não
vinculativa, esquecendo que mesmo nunca tal opção seria arbitrária mas um acto
de discricionariedade (ou oportunidade) vinculada. Trata-se agora, claramente,
de um critério de legalidade. Como recentemente salientaram Rui do Carmo e Conde
Correia, a reforma do CPP, se ainda era necessário, avivou os traços dos
percursos a trilhar pelo MP na decisão final a proferir no exercício da acção
penal. Esse é um percurso de prioridades balizadas por regras legais e
princípios que igualmente se impõem ao juiz, como o princípio da igualdade, da
dignidade humana com não estigmatização do arguido através de um julgamento
desnecessário, da proibição do excesso, da necessidade, da intervenção mínima,
da celeridade e economia processuais. (...) O percurso decisional do MP tem de
começar pelo escrutínio da aplicabilidade ao caso de decisões alternativas à
acusação e só depois a acusação, e, acusando, a forma comum é preterida se
estiverem reunidos os requisitos de uma forma especial e, na concorrência de
medidas alternativas ou de formas de processo especial, a opção deve respeitar
os princípios enunciados.Assim, o arquivamento por dispensa da pena terá
prioridade sobre a suspensão do processo. No sumário, a suspensão terá
prioridade sobre a realização do julgamento. Por razão de celeridade o processo
sumário prevalecerá sobre o processo abreviado. Por razão de legalidade, nas
situações de flagrante delito, reunidos os requisitos, o processo sumário parece
dever prevalecer sobre o processo sumaríssimo. O processo sumaríssimo
prevalecerá sobre o abreviado. O processo comum só pode aparecer depois de
afastada a possibilidade de dispensa de pena, a suspensão provisória do
processo, o processo sumário, o processo sumaríssimo e o processo abreviado.»O
Autor remata esta questão, referindo-se à actuação do MP junto dos tribunais,
dizendo: «A actual diversidade e antagonismo de decisões, afronta o princípio
constitucional da igualdade». À semelhança do que acontece com as decisões
judiciais, é através da respectiva fundamentação que se pode colher o
cumprimento de tal imperativo constitucional e que, a par de outros princípios
como o da publicidade, confere aos Tribunais a sua legitimidade democrática.
Daí que não seja sustentável a postura da Digna Magistrada do MP em não
verter nos autos o 'percurso decisional', como refere o Autor citado, que
conduziu à dedução de acusação em processo comum, preterindo a aplicação da
suspensão provisória e das formas especiais do processo. Esta mesma posição
presta-se a que, amanhã, nesta comarca ou em qualquer outra, perante o mesmo
tipo de crime, o MP decida suspender provisoriamente o processo ou acusar sob
uma forma de processo especial, sem que aos arguidos e à sociedade em geral
sejam dadas a conhecer as razões para um tratamento desigual em situações em
tudo idênticas. Mais, se transpusermos este raciocínio para as situações mais
corriqueiras relacionadas com a criminalidade rodoviária, concluiremos que se
trata de uma questão premente, com reflexos no dia-a-dia da actividade dos
tribunais criminais. Designadamente, podemos ter vários arguidos 'apanhados' em
infracção no âmbito de operações de fiscalização de trânsito a decorrer por todo
o território nacional, que cometeram o mesmo tipo de ilícito, v.g. condução em
estado de embriaguez, e que poderão ter um tratamento processual diferenciado,
sem que lhes sejam dados a conhecer os fundamentos que subjazem a essa mesma
diferenciação. Disso são exemplo os casos noticiados pela comunicação social de
figuras públicas que beneficiaram da suspensão provisória no âmbito de processos
em que estava em causa a prática daquele tipo de ilícito penal quando, é um
facto notório, a maioria dos arguidos é julgada e condenada em processo sumário,
condenações essas que não raras vezes têm reflexos económicos e profissionais,
especialmente no que respeita à pena acessória de proibição de conduzir, muito
mais gravosos comparativamente com os que adviriam para aqueloutros. Como é
óbvio, não está mal suspender os processos das ditas figuras públicas. Errado é
não estender, em termos de igualdade, a aplicação de tal instituto à
generalidade das situações em que se mostrem preenchidos os respectivos
requisitos.E o respeito pelo princípio da igualdade só pode, como se disse, ser
aferido na fundamentação do despacho de encerramento do inquérito. Nestes
termos, e ao abrigo do disposto nos arts. 3º nº.3 e 204º da CRP, julgo
inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma do art. 283º
do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que é lícito ao
Ministério Público deduzir acusação para julgamento em processo comum com
intervenção do tribunal singular sem fundamentar no despacho de encerramento do
inquérito as razões da não aplicação tanto das medidas alternativas previstas
nos artigos 280º e 281º, como das formas de processo especiais previstas no
Livro VIII do mesmo diploma legal, nos casos em que estejam preenchidos os
respectivos requisitos. Como consequência do juízo de inconstitucionalidade ora
formulado, não recebo a acusação, antes determinando a remessa dos autos ao
Ministério Público, após trânsito em julgado do presente despacho, a fim de
proferir novo despacho de encerramento do inquérito que supra tal vício. (…)”
2. É desta decisão que o Ministério Público interpõe recurso obrigatório para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea
a) e 72.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), nos
seguintes termos:
“O Ministério Público vem, ao abrigo do disposto no art. 70.°, al. a) e 72.°,
n.° 1, al. a) e n.º 3 da Lei n.º 28/82 de 15/11 interpor recurso obrigatório
para o Venerando Tribunal Constitucional da decisão proferida a fls. 34 e segs
dos autos, que não recebeu a acusação deduzida contra o arguido A..O recurso é
restrito à matéria de inconstitucionalidade, porquanto na decisão recorrida se
recusou a aplicação do art. 283° do Cód. Processo Penal, julgando-o
inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13°
da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido de que é
lícito Ministério Público deduzir acusação para julgamento em processo comum com
intervenção de tribunal singular sem fundamentar no despacho de encerramento do
inquérito as razões da não aplicação tanto das medidas alternativas previstas
nos arts. 280° e 281º, como das formas de processo especiais, nos casos em que
estejam preenchidos os respectivos requisitos. (…)”
3. Foi ainda interposto, pelo Ministério Público, no Tribunal Judicial de Beja,
recurso ordinário do despacho em causa para a Relação de Évora, que ficou a
aguardar a decisão do presente caso.
4. Convidado, no Tribunal Constitucional, a enunciar o exacto sentido da norma
que constitui o objecto do seu recurso, o Ministério Público especificou que a
norma impugnada é a que resulta da interpretação, conjugada, dos artigos 283.º,
280.º e 281.º e dos artigos relativos às formas especiais previstos no Livro
VIII, do Código de Processo Penal, no sentido que é lícito ao Ministério Público
deduzir acusação para julgamento em processo comum sem fundamentar, no despacho
de encerramento de inquérito, as razões da não aplicação das medidas
alternativas ou das formas de processos especiais, nos casos em que estejam
preenchidos os respectivos requisitos.
5. As partes foram convidadas a alegar. O Ministério Público alegou e
concluiu:“(…) Não é inconstitucional a norma que resulta da interpretação dos
artigos 283º, 280° e 281° e dos normativos relativos às formas especiais
presentes no livro VIII, do Código do Processo Penal, no sentido de que é lícito
ao Ministério Publico deduzir acusação para julgamento sem necessidade de ter de
expressamente justificar, no despacho de encerramento de inquérito, as razões da
não aplicação das medidas alternativas ou das formas de processos especiais.
(…).”
6. O recorrido não apresentou contra-alegação. Depois, as partes foram
confrontadas com a questão, oficiosamente suscitada, de não conhecimento do
objecto do recurso, mas não responderam. Importa, assim, decidir.
II - Fundamentação. A admissibilidade do recurso
7. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), nos
termos da qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos
tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em
inconstitucionalidade. O recurso tem na base a recusa de aplicação ou de
aplicabilidade de norma jurídica, regime jurídico ou interpretação normativa ao
caso concreto, com fundamento na sua inconstitucionalidade, exigindo-se que a
decisão da questão de constitucionalidade influa na decisão da questão de fundo,
pelo que a recusa de aplicação da norma jurídica tem de ser, na decisão
recorrida, uma ratio decidendi, não sendo passíveis de recurso desaplicações
normativas versando sobre normas só hipoteticamente aplicáveis ao caso,
irrelevantes ou inevitavelmente ultrapassadas ou precludidas.Ora, só haverá
recusa efectiva de aplicação de norma quando se configure como condição do
afastamento de regime jurídico que, não fosse o juízo negativo de conformidade
com a Constituição, seria convocável e aplicável ao caso. Assim, a
admissibilidade do recurso interposto ao abrigo desta alínea tem, como
pressuposto, que a norma desaplicada devesse – na lógica da decisão recorrida –
ter sido efectivamente utilizada como fundamento normativo da decisão
recorrida.Concluída a instrução com pronúncia ou esgotado o prazo para
requerimento da instrução, os autos são remetidos ao tribunal competente para a
fase de julgamento. Após a distribuição, quando for caso disso, o processo é
concluso ao juiz para ser proferido o despacho a que alude o artigo 311.º do
Código de Processo Penal.A decisão recorrida consubstancia o despacho de
saneamento do processo, altura em que o juiz se pronuncia sobre a existência de
nulidades e outras questões prévias ou incidentais. No caso de não ter tido
lugar instrução, cabe-lhe então: a) rejeitar a
acusação, se a considerar manifestamente infundada (omissão da identificação do
arguido, da narração dos factos, da indicação das disposições legais aplicáveis
ou das provas e ainda caso os factos não constituam crime); b)
não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na
parte em que ela represente uma alteração substancial dos factos, ou c)
designar data para realização da audiência – artigos 311.º e
312.º, ambos do Código de Processo Penal.Acontece que as normas dos artigos
283.º, 280.º, 281.º, e as formas dos processos especiais do Código de Processo
Penal previstas no Livro VIII do Código de Processo Penal dizem respeito a actos
do Ministério Público, estabelecendo os requisitos para dedução de acusação,
seja em processo comum ou em processos especiais, e os requisitos para os
institutos do arquivamento em caso de dispensa de pena e da suspensão provisória
do processo. São normas que disciplinam exclusivamente a actividade do
Ministério Público, e não são directamente aplicáveis pelo juiz recorrido, no
despacho em questão.Entendimento que leva a concluir que a decisão recorrida não
desaplicou as normas que enuncia, pois que nunca poderia aplicá-las. O que
efectuou foi uma censura ao modo como o Ministério Público interpretou e aplicou
tais normas quando deduziu a acusação, uma vez que o juízo de
inconstitucionalidade incide, estritamente, sobre norma reportada aos artigos
280.º, 281.º, 283.º do Código de Processo Penal e os relativos aos processos
especiais do Livro VIII do Código de Processo Penal, matéria que é atinente à
competência decisória do Ministério Público.Não resulta, portanto, da lógica
interna da decisão recorrida nem do contexto que a suscita qualquer verdadeiro
juízo de desaplicação dessas normas. Com efeito, atendendo à fundamentação da
decisão recorrida e à respectiva fórmula decisória, é de concluir que aquele
juízo incide sobre a interpretação que a magistrada do Ministério Público deu
aos artigos já mencionados do Código de Processo Penal, mas que não podiam ter
sido efectivamente utilizadas como fundamento jurídico da decisão
recorrida.Assim sendo, porque se entende que não ocorreu verdadeiramente uma
desaplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade, o presente
recurso não é admissível.
III - Decisão
8. Nestes termos, o Tribunal decide não tomar conhecimento do recurso.Sem
custas.
Lisboa, 12 de Maio de 2010
Carlos Pamplona de Oliveira
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos