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Processo n.º 200/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., inconformado com a decisão sumária proferida a 8 de Abril de 2010, vem dela reclamar dizendo o seguinte:
“Suscitam-se nestes autos duas questões de inconstitucionalidade, uma a propósito dos art°s 363.° e 364.° do CPP e outra relativa ao artigo 127.° do CPP.
No que concerne à primeira, decidiu-se não conhecer do seu objecto por se ter considerado que não existe identidade entre o objecto e a ratio decidendi da decisão recorrida.
Quanto à outra questão, também a mesma foi votada ao não conhecimento, mas por não ter sido arguida a inconstitucionalidade antes de proferida a decisão do Venerando Tribunal da Relação.
Contudo, com o devido respeito por opinião contrária, não assiste razão para não conhecimento do recurso.
Efectivamente, conforme consta no requerimento de interposição de recurso e que aqui se transcreve, o recorrente suscita que seja ‘apreciada a inconstitucionalidade. por violação das garantias de defesa do arguido, das normas constantes nos art°s 363.° e 364.° do CPP, quando interpretadas no sentido de que a imperceptibilidade a gravação da prova, ainda que apenas parcial, não determina a invalidade processual do acto e, consequentemente, obsta à renovação da prova. Com efeito, a não perceptibilidade integral do conteúdo da gravação da prova produzida em audiência, proveniente ou não da deficiente dicção dos intervenientes, limita as garantias de defesa do arguido, em particular, quando pretenda recorrer da decisão, pois além da gravação não existe qualquer outro meio que reproduza, refira-se, integralmente, as declarações prestadas em audiência. Limitação de defesa apenas ultrapassável pela renovação da prova, a documentar mediante gravação ou em acta, caso se verifique que aqueloutra não assegura a reprodução completa do conteúdo das declarações, em especial, quando consideradas as características especiais de determinadas testemunhas, isto é quando se julgue que só a documentação em acta permite a retratação global da prova produzida.’
Ora, convém salientar, desde já e em abono do rigor, que não corresponde à verdade que a prova gravada seja, integralmente, perceptível, pois não o é de facto.
Bastará ouvir as fitas magnéticas correspondentes à gravação da prova testemunhal prestada por Vítor Manuel Dias Garcia e Natércia Dias Garcia para se concluir, facilmente, que não é possível reeditar, na totalidade, o que aquelas terão, realmente, dito em audiência.
Em particular, se ouvidos os trechos da gravação que o recorrente identificou, nas motivações de recurso apresentadas junto do Tribunal a quo, como não sendo inteligíveis, mediante a inserção entre parênteses da expressão imperceptível.
Pelo que não podia o Tribunal a quo concluir, simplesmente, que ‘o que foi gravado é perceptível’ e, consequentemente, negar a verificação da arguida invalidade.
Aliás, pese embora não tenha sido reconhecida a invocada nulidade, diga-se erradamente, a conclusão verdadeiramente expressa na decisão não é a de que toda a gravação é perceptível, porque se acrescenta ‘não obstante as apontadas dificuldades’.
Mas, sobretudo por a decisão referir que ‘… apesar dessas deficientes dicção e audição, as gravações permitem perceber aquilo que os intervenientes processuais perceberam e quando perceberam (momento em que...)’.
E também ao mencionar que ‘... as características pessoais das testemunhas tornam inútil a repetição do acto…’
Donde se infere que o Tribunal a quo julgou que nem tudo o que foi gravado é perfeitamente percebível.
Por outras palavras, julgou que a gravação não permite conhecer tudo quanto foi dito pelas citadas testemunhas em audiência, mas que ainda assim se consegue entender aquilo que elas perceberam e quando perceberam.
Situação que, s.m.o, gera nulidade, já que a gravação não reproduz fielmente toda a prova produzida, e impõe a repetição do acto, com recurso a documentação diversa, de modo a que se assegure a reprodução integral das declarações prestadas oralmente.
Sem prescindir, a não se entender assim, sempre deverá o recorrente ser convidado a aperfeiçoar o seu requerimento de interposição de recurso, de modo a que o objecto do recurso possa ser conhecido.
Mais suscitou o recorrente ‘a apreciação da inconstitucionalidade, por violação do princípios da legalidade, das garantias de defesa, da presunção de inocência e do contraditório, da norma constante no art.° 127.° do CPP, quando interpretada no sentido de permitir, em processo criminal, que possam ser provados determinados factos com recurso a presunções naturais, sem que exista unia prova directa de tais factos. Porquanto a prova indirecta ou indiciária não é apta a dar como provada uma agressão física, por meio de empurrão, murros, chapadas ou pontapés, quando nenhuma prova directa demonstre plenamente a ocorrência de tais factos, situação que colide claramente com os princípios acima referidos. Até porque raramente ou nem sempre os indícios têm unia relação necessária com os factos provados, podendo, portanto, ter várias causas ou efeitos. Pelo que não podem revelar os factos com plena segurança, pois consentem a indução de factos diferentes, o que afasta o seu valor probatório do que resulta, necessariamente, da prova directa. Questões de inconstitucionalidade essas ocasionadas com a prolação do acórdão recorrido.’
É certo que o recorrente não arguiu a inconstitucionalidade antes da proferida a decisão do Tribunal de segunda instância, pois a questão apenas foi ocasionada nesta última decisão e não na anterior, e é nela que surge a interpretação que se julga inconstitucional.
Não sendo assim previsível para o recorrente, nem exigível a arguição de inconstitucionalidade em momento anterior, pelo que só na primeira oportunidade processual o veio fazer.
Senão vejamos, dissecada a decisão da primeira instância, em momento algum se depreende que a norma objecto de apreciação tenha sido aplicada com o sentido constante no acórdão proferido em segunda instância.
Mais, não há, sequer, qualquer referência ao recurso a presunções naturais para a decisão da matéria de facto em primeira instância.
Tal apenas sucede no acórdão do Tribunal a quo, onde se cita a jurisprudência anterior que adere ao entendimento sufragado na decisão recorrida.
Ao invés, resulta da decisão de primeira instância que a convicção do tribunal se baseou apenas em prova directa, o mesmo será dizer que não se socorreu de quaisquer presunções naturais para dar corno provados determinados factos e que não fez aplicação da jurisprudência citada naqueloutro acórdão.
Entendendo-se assim que a questão foi atempadamente suscitada perante este Tribunal.”
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“4. Profere-se decisão sumária ex vi artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos necessários ao conhecimento do recurso, na medida em que o despacho de admissão do mesmo, proferido pelo tribunal a quo, não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76.º, n.º 3 daquele diploma).
4.1. Como é sabido, os recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, versam as normas ou dimensões normativas que, integrando a ratio decidendi da decisão recorrida, tenham visto a sua inconstitucionalidade suscitada – pelo futuro recorrente constitucional – durante o processo. Atenta a instrumentalidade do recurso de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional apenas se pode pronunciar sobre o objecto do recurso quando tal pronúncia reveste – ainda que apenas virtualmente – utilidade nos autos em que se insere. Significa isto que sempre que o objecto do recurso, cuja conformação corre por conta do recorrente, não coincida com a ratio decidendi da decisão a quo, está o mesmo votado ao não conhecimento.
4.2. É o que sucede nos presentes autos no que se refere à questão suscitada a propósito dos artigos 363.º e 364.º do CPP. Com efeito, o Recorrente pretende ver apreciada a respectiva inconstitucionalidade artigos quando interpretados ‘no sentido de que a imperceptibilidade da gravação da prova, ainda que apenas parcial, não determina a invalidade processual do acto e, consequentemente, obsta à renovação da prova.’ Ora, os preceitos em apreço não foram aplicados com este sentido e sim com o sentido de que, não obstante se verificarem deficiências de dicção e audição das testemunhas, ‘o que foi gravado é perceptível’ (cfr. fls. 1064). Não se entendeu, por conseguinte, que existisse qualquer imperceptibilidade da gravação da prova, ainda que parcial.
4.3. Relativamente à questão de inconstitucionalidade do artigo 127.º do CPP constata-se que a mesma não foi arguida durante o processo, isto é, antes de proferida a decisão da Relação. E deveria tê-lo sido, dispondo o Recorrente de todos os elementos necessários, face à decisão proferida em primeira instância, para se aperceber de uma tal interpretação possível do referido preceito. Aliás, a existência de jurisprudência anterior que adere ao entendimento de que se admite a prova, em matéria penal, de factos por via de prova indirecta, conjugada e interpretada no seu todo, como a própria decisão demonstra, basta para que se deva ter como exigível a antecipação de tal questão de constitucionalidade em moldes de a mesma dever ter sido suscitada em momento prévio à decisão da Relação de Coimbra.”
3. Notificado para o efeito, o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal veio-se pronunciar no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento. Como é sobejamente sabido, o conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), como sucede nos autos, depende da prévia verificação de vários requisitos, nomeadamente a suscitação, pelo recorrente, de inconstitucionalidade de uma norma durante o processo, constituindo essa norma fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida, bem como o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
4.1. No que respeita à questão suscitada a propósito dos artigos 363.º e 364.º do CPP, o Reclamante arguiu a respectiva inconstitucionalidade quando interpretados “no sentido de que a imperceptibilidade da gravação da prova, ainda que apenas parcial, não determina a invalidade processual do acto e, consequentemente, obsta à renovação da prova.” Não compete ao Tribunal Constitucional averiguar se a gravação da prova se apresenta, efectivamente, perceptível ou imperceptível. Esta matéria integra-se, em exclusivo, na esfera de competência do tribunal a quo e o juízo que o mesmo tenha produzido a tal respeito constitui um dado que é recebido por este Tribunal, ao qual se atribui, somente e apenas, a tarefa da fiscalização da constitucionalidade normativa. Reitera-se, portanto, o que já foi dito na decisão sumária: a instância recorrida concluiu não se verificar imperceptibilidade na percepção da gravação (não obstante ter reconhecido a existência de dificuldades...). Desta forma, os preceitos em questão não foram aplicados com o sentido especificado pelo Reclamante e sim com o sentido de que, não obstante se verificarem deficiências de dicção e audição das testemunhas, ‘o que foi gravado é perceptível’ (cfr. fls. 1064).
4.2. E não procede a pretensão do Reclamante de que lhe deveria ter sido concedida oportunidade para aperfeiçoar o requerimento de recurso através de despacho-convite para o efeito. Tal despacho, a proferir nos termos do artigo 75.º-A da LTC, visa permitir ao recorrente vir suprir a falta de indicação no dito requerimento de algum dos elementos essenciais do mesmo. Já não se destina o mesmo, no entanto, a conceder oportunidade ao recorrente para vir “sanar” a conformação de um objecto de recurso que se apresenta desconforme com a ratio decidendi patenteada pela decisão recorrida.
4.3. Relativamente à questão suscitada a propósito do artigo 127.º do CPP, quando interpretado no sentido de permitir, em processo criminal, que possam ser provados determinados factos com recurso a presunções naturais, sem que exista uma prova directa de tais factos: entendeu-se não conhecer desta questão pelo facto de não ter sido suscitada durante o processo. O Reclamante vem sustentar a impossibilidade de suscitação de tal problemática em momento anterior na medida em que a aplicação de tal preceito, no sentido impugnado, apenas ocorre na decisão da Relação. Mesmo que assim fosse, e tal juízo normativo fosse absolutamente imperceptível em face da decisão de 1.ª instância – o que é bastante duvidoso – não pode o Reclamante olvidar o ónus de antecipação de aplicação do preceito naquele sentido que sobre ele impendia. Com efeito, a decisão recorrida remete, neste aspecto, para jurisprudência anterior que havia igualmente decidido naquele sentido. Ora, para que uma decisão possa ser qualificada como “decisão-supresa” de modo a considerar-se o recorrente constitucional dispensado do ónus de suscitação atempada (i.e. durante o processo) da questão de constitucionalidade, é necessário que a aplicação do preceito em causa – ou a aplicação do preceito numa determinada interpretação – surja como absolutamente inesperada e imprevisível de um ponto de vista objectivo. Competia ao Reclamante antecipar a aplicação do artigo 127.º do CPP naquele sentido na medida em que o mesmo resulta já de outra jurisprudência anterior cujo conteúdo não pode o mesmo desconhecer. Neste sentido se tem vindo a pronunciar, de modo reiterado, a jurisprudência constitucional. Como se afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 479/89, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992, “ (…) desde logo terá de ponderar-se que não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada). E isso – acrescentar-se-á também logo mostra como a simples ‘surpresa’ com a interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos, certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais (voltando agora à nossa questão) em que seria justificado dispensar os interessados da exigência de invocação ‘prévia’ da inconstitucionalidade perante o tribunal a quo.” (sublinhado nosso)
III – Decisão
5. Face ao exposto, acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar.
Lisboa, 25 de Maio de 2010
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos