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Processo n.º 53/2010
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
A., B., C. e D. interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa que os condenou pela prática de crimes de
discriminação racial e ofensas à integridade física.
Por decisão sumária de fls. 349 não se tomou conhecimento dos recursos de
constitucionalidade, pelos seguintes fundamentos:
“1. No que se refere ao recurso interposto por C., é patente que do mesmo não é
possível tomar conhecimento, na medida em que, como se deduz do respectivo
requerimento de interposição, o seu objecto é a conformidade constitucional da
própria decisão recorrida.
Com efeito, nos termos das várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional, o recurso de constitucionalidade só pode ter como
objecto normas (a estas se podendo equiparar as interpretações normativas),
sendo que o recorrente imputa, à própria decisão recorrida e não a qualquer
norma ou interpretação normativa nela aplicada, a violação de normas e
princípios constitucionais.
Não possuindo o Tribunal Constitucional competência para apreciar o objecto que
lhe é submetido pelo recorrente, não se conhece deste recurso, por falta de
preenchimento dos seus pressupostos processuais.
2. No que diz respeito aos recursos interpostos pelos restantes recorrentes –
A., B. e D. -, ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, por alegada aplicação de norma julgada inconstitucional nos
Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º s 322/04, 405/04, 375/06 (quanto à norma
do artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal) e 194/07 (quanto à norma do
artigo 411º, n.º 1, do mesmo Código), é também patente que não pode conhecer-se
do respectivo objecto, por inverificação dos pressupostos processuais desses
recursos.
Com efeito, a norma do artigo 412º, n.º 3, do CPP não foi aplicada, no acórdão
recorrido, no sentido julgado inconstitucional nos mencionados arestos.
No Acórdão n.º 322/04, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma
constante dos n.º s 3 e 4 do artigo 412° do Código de Processo Penal,
interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação
do recurso em que o arguido impugne a decisão sobre a matéria de facto, das
menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele n.º 3, pela forma prevista no
referido n.º 4, tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a
improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja facultada
oportunidade de suprir tal deficiência; no Acórdão n.º 405/04, o Tribunal
Constitucional julgou inconstitucional a norma dos n.º s 3 e 4 do artigo 412.º
do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de
indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugna a
decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas na alínea a) e, pela
forma prevista no n.º 4, nas alíneas b) e c) daquele n.º 3, tem como efeito o
não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso
nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal
deficiência e, bem assim, julgou inconstitucional a norma do n.º 4 do mesmo
artigo 412.º, interpretada no sentido de que a falta de transcrição, pelo
arguido recorrente, das gravações constantes dos suportes técnicos a que se
referem as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do mesmo artigo
tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a
improcedência do recurso nessa parte, sem que ao mesmo seja dada a oportunidade
de suprir tal deficiência; no Acórdão n.º 375/06, o Tribunal Constitucional
indeferiu um pedido de aclaração do Acórdão n.º 328/06.
Ora, no acórdão recorrido, a norma do artigo 412º, n.º s 3 e 4, do CPP foi
aplicada no sentido de que o despacho de aperfeiçoamento não se justificava
quando, nem nas conclusões, nem no corpo da motivação, o recorrente cumpra o
ónus consagrado naquele preceito.
Não tendo a decisão recorrida aplicado a interpretação normativa julgada
inconstitucional nos acórdãos indicados pelos recorrentes, não pode tomar-se
conhecimento dos recursos de constitucionalidade, quanto à norma do artigo 412º,
n.º 3, do CPP.
Por último, e quanto à norma do artigo 411º, n.º 1, do CPP, constata-se que a
interpretação do artigo 411º, n.º 1, do CPP julgada inconstitucional no Acórdão
n.º 194/07 - a de que o prazo para a interposição de recurso em que se impugne a
decisão da matéria de facto e as provas produzidas em audiência tenham sido
gravadas, se conta sempre a partir da data do depósito da sentença na
secretaria, e não da data da disponibilização das cópias dos suportes
magnéticos, tempestivamente requeridas pelo arguido recorrente, por as
considerar essenciais para o exercício do direito de recurso – não foi também
aplicada na decisão recorrida.
Com efeito, a decisão recorrida assentou no pressuposto de que os recursos
interpostos não tinham por objecto a reapreciação da prova gravada, pelo que
essa decisão não podia ter aplicado a interpretação julgada inconstitucional no
Acórdão n.º 194/07 (que assentou precisamente no pressuposto de que o recurso
visava a impugnação da decisão da matéria de facto).
Não tendo a decisão recorrida aplicado a interpretação normativa julgada
inconstitucional no acórdão indicado pelos recorrentes, não pode tomar-se
conhecimento dos recursos, quanto à norma do artigo 411º, n.º 1, do CPP, por
inverificação dos pressupostos do recurso contemplado na alínea g) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional”.
Notificados da decisão sumária, dela vêm agora os recorrentes reclamar para a
conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional.
C. sustenta o seguinte (fls. 361):
“O Recorrente solicita que este tribunal se pronuncie sobre a
constitucionalidade da interpretação normativa do art.º240 do Código Penal, no
sentido de que incluiu a conduta de um cidadão que se limita a emitir opiniões
num fórum da internet e a participar em manifestações legalmente convocadas.
No entendimento do Recorrente, o Tribunal a quo violou os princípios
constitucionais da legalidade (art.º29 CRP), da intervenção mínima (art.18 CRP),
e da liberdade de expressão, ao ampliar o âmbito de intervenção do art.º 240 do
CP, fazendo assim uma interpretação normativa extensiva e excessiva das condutas
que se podem incluir naquele tipo legal.
E é nestes termos que o Recorrente interpela este tribunal, que de acordo com as
suas competências de garantia da legalidade e da constitucionalidade em
Portugal, se pronuncie e fiscalize os limites do tipo legal do art.º 240 do CP e
se é constitucional (ou legal) ampliar de tal forma o âmbito de uma norma
restritiva de direitos, liberdades e garantias”.
A. sustenta o seguinte (fls. 363):
“Conforme, salvo o muito respeito, ressalta claramente da leitura do acórdão ora
recorrido, este foi ao encontro da tese considerada inconstitucional em doutos
arestos desse Tribunal de que o despacho de aperfeiçoamento não se justificava
quando, nem nas conclusões, nem no corpo da motivação, o recorrente não cumpra o
ónus consagrado naquele preceito.
Tal foi a fundamentação do acórdão recorrido, da qual se discorda e se ataca
nesta sede. Salvo o devido respeito, não se compreende a fundamentação do Ex.mo
Senhor Relator:
Se o recorrente cumprisse o ónus consagrado no art. 412º., nº.3 e 4 CPP
evidentemente que não haveria lugar a despacho de aperfeiçoamento porque nada
haveria a aperfeiçoar.
Acresce que o acórdão ora em crise assentou no pressuposto errado para o
recorrente, e sempre salvo o muito respeito, de que o recurso no visava a
impugnação da matéria de facto, porque em momento prévio proibiu tal apreciação
mediante o não convite ao aperfeiçoamento.
No entanto, o recurso interposto para a Relação de Lisboa versa sobre matéria de
facto, e, não havendo de cisão transitada em julgado sobre esta matéria, deve
por ora o recurso também ser admitido por violação da doutrina do Acórdão 194/07
do TC no que respeita à interpretação do art.411º, nº. 1 no sentido de que o
prazo para interposição de recurso se conta sempre a partir do prazo do depósito
da sentença na secretaria e não da disponibilização das cópias magnéticas
tempestivamente requeridas”.
B. apresentou reclamação com o mesmo conteúdo da anterior (fls. 364).
D. apresentou também reclamação com o mesmo conteúdo da dos dois anteriores
recorrentes, apenas com algumas diferenças formais (fls. 365).
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu
às reclamações (fls. 320), dizendo, em síntese:
- Quanto à reclamação de C., que este arguido, na motivação de recurso, “ataca,
fundamentalmente, a decisão recorrida, não invocando nenhuma
inconstitucionalidade normativa em abono da sua tese”, e que, não obstante o
alegado na reclamação para a conferência, mantém-se válidos os argumentos da
decisão sumária, sendo, além do mais, “mais do que duvidoso que o acórdão, do
tribunal de 1ª instância, tenha feito a interpretação – normativa extensiva e
excessiva – do art. 240º. do Código Penal, a que o reclamante alude”;
- Quanto à reclamação de A., que o Tribunal da Relação de Lisboa não aplicou a
norma do artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, no sentido julgado
inconstitucional pelo ora reclamante, uma vez que a referida norma “foi aplicada
no sentido de que o despacho de aperfeiçoamento não se justificava quando, nem
nas conclusões, nem no corpo da motivação, o recorrente cumpra o ónus consagrado
naquele preceito”, e que o Tribunal da Relação de Lisboa não aplicou a norma do
art. 411º, nº1, do Código de Processo Penal, no sentido julgado inconstitucional
pelo ora reclamante, uma vez que “a decisão recorrida assentou no pressuposto de
que os recursos interpostos não tinham por objecto a reapreciação da prova
gravada”;
- Quanto às reclamações de B. e de D., que a argumentação a utilizar é em tudo
semelhante à relativamente ao anterior arguido.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
No que se refere à reclamação deduzida por C., constata-se que o reclamante não
se pronuncia sobre as razões que levaram a que se considerasse, na decisão
sumária, que não era possível conhecer do objecto do recurso de
constitucionalidade: o traduzir-se esse objecto na conformidade constitucional
da própria decisão recorrida, matéria que o Tribunal Constitucional não possui
competência para apreciar (como decorre das várias alíneas do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional).
Por outro lado, dado o teor da reclamação, confirma-se a pretensão do
recorrente: é a própria decisão recorrida que se censura, sob o ponto de vista
da sua conformidade constitucional, e não qualquer norma ou interpretação
normativa nela aplicada. Com efeito, embora o reclamante comece por afirmar que
pretende a apreciação da constitucionalidade de certa interpretação normativa do
artigo 240º do Código Penal, logo a seguir afirma que a violação de certos
preceitos constitucionais se ficou a dever ao próprio tribunal a quo.
Aliás, mesmo que o recorrente/reclamante não imputasse expressamente a
inconstitucionalidade à decisão recorrida, sempre seria de considerar que só na
aparência podia ser qualificada como interpretação susceptível de ser sindicada
pelo Tribunal Constitucional a interpretação do artigo 240º do Código Penal
segundo a qual este preceito “inclui a conduta de um cidadão que se limita a
emitir opiniões num fórum da Internet e a participar em manifestações legalmente
convocadas” (a interpretação indicada pelo reclamante). Com efeito, esta
interpretação mais não traduz, em substância, do que a subsunção dos factos ao
direito a que procedeu o tribunal recorrido, aspecto que ao Tribunal
Constitucional não compete controlar, por redundar no controlo da própria
decisão e não no de uma norma nela aplicada.
Termos em que improcede o alegado na reclamação.
No que diz respeito às reclamações deduzidas pelos restantes recorrentes – A.,
B. e D. -, cumpre recordar que, na decisão sumária reclamada, não se conheceu
dos respectivos recursos de constitucionalidade, interpostos ao abrigo da alínea
g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por se ter
considerado que a norma do artigo 412º, n.º 3, do CPP (cuja apreciação os
recorrentes pretendiam) não foi aplicada, na decisão recorrida, no sentido
julgado inconstitucional em anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional,
e, bem assim, por se ter entendido que a interpretação já julgada
inconstitucional da norma do artigo 411º, n.º 1, do CPP (cuja apreciação os
recorrentes também pretendiam) não foi aplicada na decisão recorrida.
Segundo os reclamantes, e quanto à norma do artigo 412º, n.º 3, do CPP, seria
patente que a decisão a aplicou no sentido de que não há lugar ao despacho de
aperfeiçoamento quando nem nas conclusões, nem no corpo da motivação, se cumpra
o ónus consagrado no preceito. Extraem daqui os reclamantes que devia
conhecer-se do recurso de constitucionalidade.
Todavia, se se atentar no disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea g), da Lei do
Tribunal Constitucional – a alínea ao abrigo da qual interpuseram o presente
recurso -, facilmente se verifica que este preceito exige que a decisão
recorrida tenha aplicado norma já anteriormente julgada inconstitucional ou
ilegal pelo Tribunal Constitucional. Ora, no presente caso tal não sucedeu,
porque a interpretação questionada pelos recorrentes, e aplicada na decisão
recorrida, nunca foi julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal
Constitucional: daí não se mostrar preenchido um dos pressupostos do recurso
previsto naquela alínea g),. Ou seja, não há jurisprudência constitucional
anterior considerando inconstitucional não haver lugar ao despacho de
aperfeiçoamento quando nem nas conclusões, nem no corpo da motivação, se cumpra
o ónus consagrado no artigo 413º, n.º 3 (a interpretação que os
recorrentes/reclamantes censuram), motivo pelo qual não está preenchida a
previsão do artigo 70º, n.º 1, alínea g), da Lei do Tribunal Constitucional.
E, quanto à norma do artigo 411º, n.º 1, do CPP, valem as mesmas considerações:
a interpretação que constitui o objecto do recurso de constitucionalidade não
corresponde – pelos motivos explicitados na decisão sumária - àquela sobre a
qual versou a jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional referenciada
pelos recorrentes, pelo que não está preenchido um dos pressupostos do recurso
da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
E, sobre esses motivos, não se pronunciam os reclamantes, não havendo portanto
razão para alterar a decisão sumária, também nesta parte. Acrescente-se apenas
que o Tribunal Constitucional não possui poderes para controlar a verificação do
pressuposto de que partiu o tribunal recorrido - que os reclamantes contestam -,
uma vez que a sua competência se cinge ao controlo da conformidade
constitucional de normas (cfr. as várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei
do Tribunal Constitucional).
Termos em que improcede o alegado nas reclamações.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, inferem-se as reclamações.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC para cada
reclamante.
Lisboa, 14 de Abril de 2010
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão