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Processo n.º 187/10
1ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por despacho do Desembargador/Relator da Relação de Coimbra, de 16 de
Dezembro de 2009, foi decidido não admitir o recurso que o ora recorrente tinha
apresentado para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão da referida Relação
proferido em 7 de Outubro de 2009. Desta decisão reclamou o recorrente para o
Supremo Tribunal de Justiça, afirmando, para o que ora releva, o seguinte:
“[...] Qualquer interpretação do dito artigo 400.° do Código de Processo Penal
no sentido de que as alterações introduzidas pelas Leis 59/98 e 48/2007 nas
alíneas c) e e) são de aplicação imediata aos processos iniciados anteriormente
à sua vigência sem considerar as excepções a essa aplicação imediata violam os
n.°s 2 dos artigos 5.° destes diplomas legais que as estipulam e está ferida de
inconstitucionalidade por violar o artigo 32.°, n.° 1 da Constituição da
República Portuguesa, pois viola o direito de defesa do arguido ao não permitir
que este recorra de decisões que eram recorríveis aquando do inicio do processo
e que deixaram de ser com a entrada em vigor daquelas, porque afectam e limitam
o seu direito de defesa, [...].
O princípio da inalterabilidade do direito de defesa dos arguidos tem grande
relevância no âmbito da Constituição da República Portuguesa como decorre desde
logo do n.º 6 do artigo 19.° do texto constitucional […]”.
2. A dita reclamação foi indeferida com a seguinte conclusão:
“[…] face ao exposto, a dimensão normativa acolhida do n.° 2 do art. 5.° do CPP,
com a consequente aplicação das alíneas c) e e) do n.° 1 do art. 400.° do CPP,
na sua redacção actual, não afecta o art. 32.°, n.° 1, da CRP, não estando,
pois, ferida de inconstitucionalidade.
Com efeito, o direito ao recurso, garantido como direito de defesa no n.° 1 do
art. 32.° da Constituição, basta-se com um grau de recurso, ou segundo grau de
jurisdição, que o reclamante já utilizou ao recorrer para o Tribunal da Relação.
E a interpretação do art. 5.°, n.° 2 do CPP, no sentido de ser aplicável o novo
regime de recursos pela Lei n.° 48/2007 (nomeadamente as alíneas do n.° 1 do
art. 400.° do CPP), aos processos em que a sentença tenha sido proferida depois
da entrada em vigor da referida Lei, não está ferida de inconstitucionalidade.
Aliás, o Tribunal Constitucional já apreciou esta questão, entre outros, nos
acórdãos n.° 263/2009, de 26 de Maio de 2009, n.° 551/2009, de 27 de Julho de
2009 e n.° 645/2009, de 15 de Dezembro de 2009.
Decidiu-se neste último acórdão, na parte que releva, «não julgar
inconstitucional a norma resultante da conjugação do artigo 400.°, n.° 1, alínea
f), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.° 48/2007 de 29 de Agosto,
e artigo 5.°, n.° 2, do mesmo Código, interpretada no sentido de que, em
processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.° 48/2007, não é
admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas
relações que confirmem decisão da 1.ª instância, proferida após a entrada em
vigor da referida lei, e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».
Esta jurisprudência vale inteiramente para o caso presente […]”.
3. Desta decisão foi interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
Lei do Tribunal Constitucional (LTC), o presente recurso, através de
requerimento onde se afirma, para o que ora releva:
“[...] o ora recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade da
interpretação daquelas alíneas do n.° 1 do art° 400.º do Código de Processo
Penal no sentido de que as alterações introduzidas na sua redacção pelas Leis
n.°s 59/98 e 48/2007 às alíneas c) e e) do n.° 1 do artigo 400º do Código de
Processo Penal são aplicáveis imediatamente aos processos iniciados
anteriormente à sua vigência sem considerar que as excepções dessa aplicação
imediata violam o n.° 2 do artigo 5º do Código de Processo Penal que as
estipula, pois viola o artigo 32.º, n.° 1 da Constituição da República
Portuguesa, violando assim o direito de defesa do arguido [...].
7ª Além disso, tal interpretação viola ainda o disposto no n.° 1 do artigo 13.º
da CRP por violar o principio da igualdade dos cidadãos perante a lei,
[...]
9ª O principio da inalterabilidade do direito de defesa dos arguidos tem grande
relevância no âmbito da Constituição da República Portuguesa, como decorre desde
logo do n.° 6 do seu art.° l9.º.
10ª Em matéria de recursos, iniciando-se o processo no ano de 1998, não são
aplicáveis as alterações introduzidas pelas Leis n.° 59/98 e 48/2007 às alíneas
c) e e) do art.° 400.° do Código de Processo Penal, cuja vigência se iniciou
posteriormente àquele ano, por daí resultar urna limitação ao direito de defesa
do arguido plasmado no artigo 32.°, n.° 1, da Constituição da República
Portuguesa ao introduzirem a irrecorribilidade de decisões anteriormente
recorríveis ao abrigo do Decreto-Lei n.° 78/67, de 17 de Fevereiro. [...]”
4. Na sequência, foi proferida pelo relator neste Tribunal, ao abrigo do
disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na
redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária negando provimento ao recurso. É o seguinte, na parte agora relevante, o
seu teor:
“[...] A questão de constitucionalidade colocada está referida às normas
constantes das alínea c) e e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redacção que
lhe foi conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, na medida em que impede
recursos para o STJ, respectivamente, de “acórdãos proferidos, em recurso, pelas
relações que não conheçam, a final, do objecto do processo” e “de acórdãos
proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da
liberdade”, recursos que, na redacção anterior, alegadamente seriam admissíveis.
Importa sublinhar que tal questão não é nova na jurisprudência constitucional,
podendo, portanto, ser considerada questão simples, para efeito do disposto no
n.º 1 do artigo 78º-A da LTC. Na verdade, as referidas normas e, sobretudo, todo
o conjunto normativo contido no n.º 1 do artigo 400.º do CPP, mesmo na redacção
anterior à Lei n.º 48/2007, já por diversas vezes foi sujeito ao escrutínio de
constitucionalidade, na perspectiva da aplicação aos processos pendentes da lei
processual penal nova, tendo o Tribunal decidido, reiteradamente, no sentido da
sua não inconstitucionalidade. Assim foi, por exemplo, o caso dos Acórdãos n.ºs
263/09, 551/09 ou 645/09, em que estavam em causa dimensões normativas que, tal
como agora, igualmente excluíam o direito ao recurso em processos nos quais a
decisão objecto do mesmo ainda não tinha sido proferida no instante em que a
referida lei entrou em vigor. No Acórdão n.º 263/2009, decidiu-se no sentido da
não inconstitucionalidade da interpretação normativa que entendeu ser aplicável
a nova redacção conferida à alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP nos
processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º 48/2007, em que a
sentença de 1.ª instância foi proferida após a entrada em vigor dessa lei, e
escreveu-se:
«Deve entender-se o critério fixado no aludido artigo 29º da Constituição,
quanto à aplicação da lei de processo penal no tempo, em sintonia com o que se
dispõe no artigo 5º do Código de Processo Penal: a lei nova não se aplica aos
processos iniciados anteriormente à sua vigência, quando possa resultar, dessa
aplicação, uma limitação dos direitos de defesa do arguido. Todavia, o Tribunal
também tem entendido, como já se fez notar, que a garantia consagrada no n.º 1
do artigo 32º da Constituição, quanto ao recurso, não implica, obrigatoriamente,
um duplo grau de recurso, designadamente perante acórdãos condenatórios
proferidos em recurso pelas relações, confirmativos de decisão da 1ª instância
na qual o arguido foi condenado em pena de prisão não superior a 8 anos.
Deste modo, do aludido artigo 29º da Constituição não é possível retirar uma
proibição absoluta de aplicação imediata de lei 'nova', em matéria de recursos
em processo penal, da qual resulte a referida limitação, impedindo o acesso ao
Supremo Tribunal de Justiça de recursos de acórdãos condenatórios proferidos
pelas relações nas aludidas circunstâncias.
É certo que o aludido princípio constitucional proíbe que da aplicação da lei
nova possa resultar uma inesperada e imprevisível alteração do regime de
recursos, em processos pendentes, que afecte o exercício do direito de defesa do
arguido; mas o certo é que o momento relevante para o exercício do direito de
defesa do arguido, designadamente no que respeita à estratégia processual a
adoptar, coincide com a prolação da sentença condenatória em primeira instância
e a sua notificação ao arguido, pois só então se estabilizam os elementos
essenciais a atender no exercício do aludido direito de defesa. Mostra-se, por
isso, preservado, no essencial, o exercício do direito de defesa do arguido
quanto à oportunidade da estratégia processual a adoptar.
Não pode, por isso, afirmar-se que, a norma constitui uma desproporcionada
limitação das garantias de defesa do arguido, restringindo de forma inadmissível
o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça.»
Esta orientação foi confirmada e desenvolvida no Acórdão n.º 551/2009, no qual
se afirma, nomeadamente, o seguinte:
«Essa norma elege como critério de determinação da lei aplicável em matéria de
admissibilidade de recurso de acórdão das relações para o Supremo o momento em
que tenha sido proferida a sentença de 1ª instância que seja confirmada pelo
acórdão de que se pretende recorrer. Foi este, aliás, o critério adoptado no
acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2009, do Supremo Tribunal de Justiça,
publicado no Diário da República, I Série, de 19 de Março de 2009, embora
aplicado a uma situação inversa daquela que agora está em consideração (a
decisão de 1ª instância era anterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007).
Este critério não pode ser censurado por abrir a porta aos riscos que levam a
estender as consequências do princípio constitucional da legalidade penal a
certas normas de processo penal respeitantes à situação processual do arguido.
Na verdade, só com a sentença fica definida a resposta judicial à pretensão
punitiva do Estado. O direito de recorrer, nos termos da lei, das decisões que
lhe forem desfavoráveis que passa a integrar o estatuto do arguido (alínea i) do
n.º 1 do artigo 61.º do CPP) só se define perante uma concreta decisão que lhe
seja desfavorável. É perante o conteúdo desta que se fixam os elementos
determinantes para a formulação do juízo de interessado sobre o exercício do
direito de recorrer, os pressupostos e o âmbito possível do recurso. Até aí o
direito de recorrer, o âmbito do recurso e a sua extensão possível na hierarquia
dos tribunais constituem uma mera potencialidade no estatuto do sujeito
processual, que se ignora se virá a concretizar-se e em que termos. Perante essa
situação de incógnita – para o arguido, para os restantes sujeitos processuais,
para o poder legislativo –, não se verificam as razões que levam a proibir
soluções legislativas que comportem o risco de um possível arbítrio ou excesso
do poder estatal, diminuindo o legislador (ou gerando objectivamente a suspeita
de diminuir), de forma direccionada e intencional, o nível de protecção da
liberdade e dos direitos fundamentais de defesa dos arguidos em processos
concretos já iniciados.
Por outro lado, a eleição do momento em que é proferida a sentença condenatória
como factor de determinação do regime de admissibilidade dos recursos para o
Supremo acautela suficientemente os direitos de defesa, também na perspectiva de
que o arguido é livre de escolher e adequar a sua estratégia processual aos
meios legais existentes no momento em que exerce determinado direito. Só perante
a sentença o arguido saberá se dela discorda e em que termos pode ou lhe convém
atacá-la. Se a lei vigente nesse momento lhe permitir levar o recurso até ao
Supremo Tribunal, é legítimo que opte por reservar a discussão de algum aspecto
da questão ou a apresentação de determinados argumentos para a fase de recurso
perante o Supremo. Ora, a fixação da extensão admissível dos recursos de acordo
com a lei vigente no momento da sentença de 1ª instância preserva integralmente
essa liberdade e a tutela da confiança no seu exercício, que a escolha da lei
vigente em momento posterior, designadamente o do acórdão da relação, poderia
vulnerar.
Mas só isso pode reclamar-se em nome da preservação dos direitos de defesa, não
sendo legítimo que o arguido confie em que o sistema de recursos vigente no
momento em que o processo é instaurado se mantenha inalterado. Não se concebe a
existência de estratégia processual que venha a ser comprometida pela alteração
do regime de recursos antes de ter sido proferida a decisão que se pretende
atacar, porque só perante esta surge, em concreto, o interesse em recorrer e se
define o seu âmbito possível.»
Esta fundamentação, que se subscreve, é inteiramente transponível para o caso
ora em apreço, devendo aqui ser reiterada. De facto, a interpretação em causa –
no sentido de considerar momento processualmente relevante para aferir dos
pressupostos da recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça aquele em que
foi proferida a sentença condenatória da 1.ª instância – não atenta contra as
garantias de defesa do arguido, constitucionalmente consagradas, uma vez que
estas não envolvem nem a existência obrigatória de um duplo grau de recurso, nem
que o momento processualmente relevante para a fixação daqueles pressupostos
deva ser anterior à prolação da sentença condenatória em 1.ª instância. De
resto, e especificamente quanto às alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 400º do
Código de Processo Penal, remete-se também para a argumentação exposta nos
Acórdãos deste Tribunal n.ºs 219/09 e 147/09.
4. No que respeita à alegada violação do princípio da igualdade sempre se dirá,
reiterando também jurisprudência constitucional há muito firmada, que este não
funciona diacronicamente. O que significa que a respectiva aplicação supõe, no
essencial, a comparação do que é comparável. No caso concreto, o respeito pelo
princípio da igualdade implica tratar do mesmo modo todos os processos penais
cuja sentença condenatória tiver sido proferida após a entrada em vigor da Lei
48/2007, sujeitando-os às alterações por esta introduzidas. De facto, como se
diz explicitamente no Acórdão n.º 147/09 já referido, “a norma constante do
artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, ao excluir
determinadas situações da possibilidade de recurso (de acórdãos da Relação) para
o Supremo Tribunal de Justiça, não comporta, na dimensão apontada pelo ora
Reclamante, violação do princípio da igualdade ou do artigo 18.º, n.º 2, da
Constituição. Nos termos de jurisprudência constitucional firme e reiterada, o
núcleo essencial do direito ao recurso, enquanto dimensão integrante das
garantias de defesa em processo criminal, não abrange o direito ao duplo grau de
recurso (ou à tripla jurisdição), pelo que a norma referida não belisca o artigo
18.º, n.º 2, da Constituição. Por outro lado, a violação do princípio da
igualdade só se verificaria se situações idênticas fossem objecto de tratamento
diverso. O certo, no entanto, é que todos os indivíduos na situação do ora
Reclamante se veriam impedidos de interpor o almejado recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça”.
5. Assim sendo, há que concluir pela não inconstitucionalidade das normas do
artigo 400.º, n.º 1, alíneas c) e e), do Código de Processo Penal, na redacção
da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, interpretadas no sentido de que, em
processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º 48/2007, mas cuja
decisão só foi proferida após a entrada em vigor desta Lei, não é admissível
recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a
final, do objecto do processo e de acórdãos proferidos, em recurso, pelas
relações, que apliquem pena não privativa da liberdade.”
5. Inconformado, o recorrente reclama para a conferência, através de
requerimento em que, após considerações sobre a interpretação do direito
infraconstitucional aplicável, manifesta a sua discordância em relação à
jurisprudência do Tribunal e conclui, no essencial, para o que ora releva, da
seguinte forma:
“[...]16.ª Respeita-se a jurisprudência indicada na decisão reclamada, mas salvo
o devido respeito, que pela nossa parte é muito, a mesma não considerou este
elemento histórico para a interpretação da aplicação imediata da lei processual
penal no tempo e a excepção a este princípio geral. [...]”
6. Notificado para responder, querendo, o Ministério Público, ora reclamado,
sustentou a improcedência da reclamação.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
7. Na decisão sumária reclamada considerou-se que a questão era simples, por já
ter sido objecto de anteriores decisões do Tribunal, negando-se, por remissão
para tal jurisprudência reiterada, provimento ao recurso. Não negando que assim
é - o que, desde logo, se poderia considerar comprometer a viabilidade da
procedência da reclamação -, vem o ora reclamante, todavia, afirmar agora não só
a sua discordância em relação a tal jurisprudência, mas também que a mesma não
terá tido em atenção determinados elementos históricos de interpretação do
direito infraconstitucional. Sem razão, porém.
Na verdade, do ponto de vista do juízo de constitucionalidade, não só não são
pertinentes as considerações sobre qual a interpretação “mais correcta” do
direito infraconstitucional, mas também não há, em nenhum dos argumentos
aduzidos na reclamação, qualquer elemento inovador em relação a tudo aquilo que
já fora ponderado na jurisprudência para a qual se remeteu na decisão sumária
ora reclamada, não havendo, assim, qualquer motivo para a modificar.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 4 de Maio de 2010
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Rui Manuel Moura Ramos