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Processo n.º 134/2010
3.ª Secção
Relatora: Conselheiro Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente A., Lda., foi proferida
decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso com o seguinte
fundamento:
[…]
Independentemente de outros possíveis fundamentos de inadmissibilidade do
recurso de constitucionalidade – nomeadamente o ter ele como objecto, não uma
norma ou interpretação normativa, mas uma decisão judicial, em si mesma
considerada (do que decorre a incompetência do Tribunal Constitucional para o
seu conhecimento, uma vez que este Tribunal, conforme preceituado nas várias
alíneas do n.º 1 do artigo 70º da LTC, apenas aprecia normas ou interpretações
normativas), compulsados os autos, verifica-se que em lugar algum das alegações
de recurso para o Tribunal a quo o recorrente suscitou qualquer questão de
constitucionalidade – em termos de, como dispõe o n.º 2 do artigo 72.º da LTC,
este estar obrigado a dela conhecer.
Com efeito, a afirmação de que “[…] o Acórdão Recorrido, ao decidir como
decidiu, para além de violar o disposto no artigo 173.º, n.º 1, do CPTA, acabou
por interpretar e aplicar este preceito em total desconformidade com o direito
de acesso à Justiça e à Tutela Jurisdicional efectiva previsto no artigo 20º, nº
1 e 4, da CRP, sendo, por este segmento, inconstitucional”, e ao contrário do
que o recorrente pretende sustentar no requerimento de interposição do presente
recurso, não pode, de todo em todo, ser considerada uma forma adequada de
suscitação prévia de uma questão de constitucionalidade normativa.
Segundo jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, “[s]uscitar a
inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal
perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de
constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que –
como já se disse – tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a
norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender
de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se
aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao
menos, a norma ou princípio constitucional infringido” (Ac. n.º 269/94,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Como se afirma no Ac. n.º 367/94,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt, “[a]o questionar-se a
compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a
Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor
verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa)
do preceito há-de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado
inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de
tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a
saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não
deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição”.
O modo como o recorrente veio agora, no requerimento de interposição do recurso
de constitucionalidade, delimitar o seu objecto corresponde justamente ao modo
como haveria de ter suscitado a questão de constitucionalidade durante o
processo, por forma a que o Tribunal a quo pudesse e devesse conhecer da questão
de constitucionalidade. Se, na realidade, o que o recorrente pretende impugnar é
um determinado segmento normativo do preceito, exigir-se-ia que, oportunamente,
houvesse enunciado qual o sentido que a este foi atribuído de que se extrai a
norma que se considera inconstitucional.
Tanto basta para que se não possa conhecer do presente recurso de
constitucionalidade.
4. A circunstância de o Tribunal a quo ter decidido conhecer da questão de
constitucionalidade não tem como efeito o suprimento da falta de preenchimento
de um requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade. Como se
escreve no Ac. n.º 710/04 “[…] nem se diga que basta que, apesar de uma
hipotética deficiência da colocação da questão de constitucionalidade por parte
do(s) recorrente(s), o tribunal a quo se tenha efectivamente ocupado dela e
assumido que a tinha como objecto de pronúncia obrigatória. Não basta. Por um
lado, porque o tribunal a quo poderá estar confrontado com uma questão de
inconstitucionalidade da decisão judicial sobre a qual não pode deixar de se
pronunciar, sem, que tal suscitação da questão abra o recurso para o Tribunal
Constitucional; por outro lado, porque, no nosso sistema de fiscalização
concreta de constitucionalidade, tal como se encontra constitucional e
legalmente desenhado, não é admissível substituir o ónus de suscitação atempada
de uma questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu
a decisão por uma qualquer pronúncia que este, por qualquer imaginável razão,
venha a produzir”.
2. Notificado desta decisão, A., Lda. veio reclamar para a conferência, com os
seguintes fundamentos:
1° A Decisão ora Reclamada entendeu que a ora Reclamante, e passa-se a citar “em
lugar algum das alegações de recurso para o tribunal a quo o recorrente suscitou
qualquer questão de constitucionalidade em termos de, como dispõe o n° 2, do
artigo 72° da LTC, este estar obrigado a dela conhecer”;
2° E mais ai se afirma que “suscitar a inconstitucionalidade de uma norma
jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é
colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para
decidir...”;
3° Ora, a Reclamante conhece a jurisprudência rigorosa deste Tribunal sobre os
requisitos da admissibilidade do recurso a que se refere o art. 70°, n° 1,
alínea b), da LTC.
Um desses requisitos consiste precisamente na necessidade de a questão da
constitucionalidade ter sido suscitada durante o processo.
Assim, desde já se diga que tal questão foi directamente colocada perante o STA
quando a ora Reclamante interpôs Recurso de Revista do Acórdão do TCA Sul para
este Supremo Tribunal.
Com efeito, no ponto 3° das suas Alegações, a então Recorrente invocou o
seguinte:
– 3° Finalmente, como se disse, o Acórdão Recorrido fez uma interpretação
inconstitucional do artigo 173°, n° 1, do CPTA, pois, daí resulta que seja
violado o artigo 200, n° 1 e 4, da Constituição da República.
Com efeito, a defender-se a tese do Acórdão Recorrido, repete-se, que, em sede
de execução do presente julgado anulatório só haveria lugar à apreciação do
projecto de arquitectura do recorrente, com a possibilidade de o mesmo ser
expressamente indeferido pela Câmara Municipal de Setúbal, isso iria atentar
contra o direito a que uma causa seja julgada em prazo razoável.
É que, como decorre dos Autos, o recurso contencioso de anulação do acto de
indeferimento proferido pela Vereadora da Câmara Municipal de Setúbal foi
interposto no TAC de Lisboa em 2001.
A sentença que anulou contenciosamente o acto impugnado foi proferida 3 anos
depois – 2004.
Ora, sem prejuízo de tudo aquilo que já foi dito sobre como é que se processa a
execução de sentenças anulatórias de actos de indeferimento de pedidos de
licenciamento de obras, teríamos que, na tese do Acórdão Recorrido, estaria
aberta a porta para uma nova impugnação contenciosa do acto de indeferimento do
projecto de arquitectura (o que a acontecer constituiria uma maneira fraudulenta
de fugir à execução de uma sentença anulatória de acto administrativo de
indeferimento), voltando tudo à estaca zero, e obrigando desnecessariamente (e
inconstitucionalmente) o Recorrente a voltar a recorrer aos Tribunais durante
mais alguns anos para fazer valer o seu direito – direito à aprovação do
projecto de arquitectura, direito esse que já lhe tinha sido reconhecido em sede
de execução de sentença anulatória de acto administrativo que anteriormente lhe
tinha negado esse mesmo direito.
Seria um circuito quase interminável e que acabaria por pôr em causa o direito
de acesso do Recorrente aos Tribunais e o direito a obter uma decisão em prazo
razoável, visto que, desde 2001, ou seja, há quase oito anos, que o ora
Recorrente luta pela defesa dos seus direitos na jurisdição administrativa, não
fazendo sentido que tivesse de voltar o recorrente aos tribunais administrativos
para reintegração da ordem jurídica violada, quando tal reintegração já foi
feita pela sentença do TAF de Almada em 27/3/06, portanto, há quase 3 anos.
Assim, também por aqui, o Acórdão Recorrido, por interpretação e aplicação do
artigo 173°, n° 1, do CPTA, em desconformidade com o artigo 20°, n°s 1 e 4, da
CRP, é inconstitucional, não podendo ser mantido na ordem jurídica por V.
Exas.
Finalmente, nas CONCLUSÕES das suas Alegações de Recurso, e para a matéria que
ora interessa, o então Recorrente concluiu que:
“33° Por último, o Acórdão Recorrido, ao decidir como decidiu, para além de
violar o disposto no artigo 173°, n° 1, do CPTA, acabou por interpretar e
aplicar este preceito em total desconformidade como direito de acesso à Justiça
e à Tutela Jurisdicional efectiva previsto no artigo 20°, n° 1 e 4, da CRP,
sendo, por este segmento, inconstitucional;
34° É que, na tese do Acórdão Recorrido, ao defender-se que a Câmara Municipal
de Setúbal apenas está obrigada a apreciar o projecto de arquitectura da
Recorrente, com a possibilidade expressa de o indeferir, tal implica que, em
caso de indeferimento, o Recorrente tivesse que voltar a recorrer aos Tribunais
Administrativos para fazer valer um direito - direito à aprovação do seu
projecto de arquitectura, direito esse que já lhe foi reconhecido em sede de
execução de julgado anulatório pelo TAF de Almada em 27/3/06;
35° É que a Recorrente, desde 2001, há quase 8 anos portanto, que luta nos
Tribunais Administrativos pela defesa do seu direito à aprovação do seu projecto
de arquitectura, não fazendo sentido que tivesse de voltar a recorrer novamente
aos Tribunais Administrativos para fazer valer um direito – direito à aprovação
do seu projecto de arquitectura, direito esse que já lhe foi reconhecido em sede
de execução de julgado anulatório pelo TAF de Almada em 27/3/06;
36° Por isso mesmo, e sem prejuízo das ilegalidades já atrás assacadas ao
Acórdão Recorrido, este, ao interpretar e aplicar o artigo 173°, n° 1, do CPTA,
para além de ter violado o dever de reconstituição da situação actual hipotética
que existiria se o acto anulado contenciosamente não tivesse sido praticado,
veio permitir que se abrisse uma (desnecessária) nova via contenciosa para
tutela de um direito que já se encontra reconhecido pela jurisdição
administrativa;
37° E tal permissão acabará por se traduzir em mais demoras (injustificadas e
desnecessárias) para o reconhecimento de um direito (o qual, insiste-se, já se
encontra reconhecido pelo Tribunal de execução de sentença do julgado
anulatório), o que implica a violação do artigo 20°, n° i, e n° 4, da CRP,
sobretudo no que toca à obtenção de uma decisão judicial em prazo razoável;
38° Também por aqui, o Acórdão Recorrido não pode manter-se na ordem jurídica,
devendo pois ser revogado por V. Exas. nos termos já constantes das conclusões
25ª e 32ª”.
4º Assim sendo, contrariamente ao que foi entendido na Decisão Reclamada, a
questão da constitucionalidade, ou, para ser mais rigoroso, a interpretação do
artigo 173º do CPTA em desconformidade ao disposto no artigo 20º, n° 1 e n° 4,
foi aí claramente colocada perante o STA.
E o STA sabia que tinha essa questão para apreciar, e, apreciou-a, conforme se
vê a fls. 14 e 15 do Acórdão de 18/11/09.
Daí que, logo no final de fls. 14 do Acórdão, sob a epígrafe — “Violação do art.
200, n° 1 e 4”, o STA tenha passado a analisar a questão da
inconstitucionalidade, ou seja, saber se, face ao invocado pelo então
Recorrente, a interpretação dada pelo TCA Sul ao art. 173° do CPTA em matéria de
execução de julgado anulatório – possibilidade de a Câmara Municipal de Setúbal,
em vez de proferir um acto de deferimento do projecto de arquitectura, voltar a
proferir um novo acto de indeferimento, com a repetição de nova impugnação
contenciosa por parte do particular, violava ou não o Acesso ao Direito e à
Tutela Jurisdicional Efectiva consagrado no art. 20°, n° 1 e 4, da CRP, tendo,
no entanto, acabado por decidir que não havia violação do preceito
constitucional ora em causa.
É certo que na fundamentação da sua decisão o STA não invocou expressamente o
artigo 1730 do CPTA.
Porém, como nos diz LOPES DO REGO “Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e
na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Almedina, 2010, pág. 111, “a
aplicação da norma tanto pode ser expressa como implícita: não é naturalmente
indispensável que o julgador haja explicitamente fundamentado de direito a
decisão que tomou através da invocação dos preceitos legais (ou da interpretação
dos mesmos) especificados pelo recorrente como estando feridos de
inconstitucionalidade.
O que importa decisivamente não são os termos literais ou verbais usados pela
decisão recorrida ... mas, numa “visão substancial das coisas” que a solução de
direito ínsita na decisão do pleito não possa, de um ponto de vista
lógico-jurídico, ter deixado de passar pela consideração das normas ou sentidos
normativos – isto é dos regimes jurídicos indicados pelo recorrente como
padecendo da alegada inconstitucionalidade.
Assim, lido o Acórdão recorrido na parte em que se debruçou sobre a questão da
inconstitucionalidade invocada pela Recorrente, o STA, abordou o âmago da
questão, ou seja, considerou que a execução de sentenças de julgados
anulatórios, tal como ela tinha sido interpretada pelo TCA Sul, não podia ser
vista como uma sentença constitutiva de um direito subjectivo, pois isso seria
injusto por impedir a Administração de reapreciar o caso, proferindo um acto
válido, ainda que do mesmo conteúdo, e, que tal perspectiva, não era injusta e
desadequada à defesa de posições substantivas, não havendo violação do art. 20º,
n° 1 e n° 4, da Constituição.
Não invocando expressamente o artigo 173º, do CPTA, no entanto, invocou o regime
da execução de sentenças anulatórias para dizer que, na sua interpretação, ou
seja, na interpretação de tal regime por parte do TCA Sul na matéria dos Autos,
não havia violação do artigo 20°, nºs 1 e 4, da CRP.
5° Deste modo, contrariamente ao que foi entendido pela Decisão ora Reclamada, a
então Recorrente, no recurso apresentado perante o STA, quer na sua exposição,
quer nas conclusões finais, deixou bem claro que questionava a interpretação
dada pelo TCA Sul ao art. 173° do CPTA que tinha por violadora do artigo 20°, n°
1 e 4, da Constituição.
É evidente, que, em face do rigor depositado pelo Tribunal Constitucional na
apreciação dos recursos de constitucionalidade ao abrigo do art. 70°, n° 1,
alínea b), da LTC, a ora Reclamante, sob o ponto de vista técnico, recortou com
maior detalhe a questão da constitucionalidade em causa.
Mas tal não quer dizer que não o tenha feito no recurso que o STA apreciou.
Fê-lo, utilizando, porventura, outra linguagem, mas que identificou a questão
sobre a qual o STA tinha de se pronunciar, não há dúvidas que o fez.
E o STA, como se viu, também não teve dúvidas que tinha essa questão para
resolver.
E a questão é saber se, ao interpretar-se o artigo 173º do CPTA em matéria de
execução de julgado anulatório de acto administrativo, por forma a permitir que
o órgão da Administração, em vez de praticar desde logo o acto ilegalmente
recusado, venha a praticar um ou vários actos administrativos de indeferimento
com base noutros motivos não invocados no primitivo indeferimento, abrindo assim
a porta a sucessivas e intermináveis impugnações contenciosas de tais actos, não
se estará desta maneira a perpetuar os litígios entre a Administração e os
particulares, negando-se ao particular lesado a justa composição do litígio em
tempo e prazo razoáveis, violando-se assim o art. 20°, n °s 1 e 4, da
Constituição-
6° Invoca a Decisão Reclamada para sustentar que não se deve conhecer do objecto
do Recurso interposto para este Tribunal, o que foi decidido no Acórdão n°
710/04, Processo n° 584/04 deste Tribunal, em que foi Relator o Exm° Conselheiro
Gil Galvão.
Assim, aí foi dito, face ao artigo 72°, n° 2, da LTC, que, este pressuposto de
admissibilidade de recurso só em regra, de considerar preenchido quando o
interessado, pelo menos, identifica a norma que reputa de inconstitucional e
justifica, ainda que de forma sumária, mas de modo claro e preciso, as razões
que, no plano constitucional, invalidam a norma e a sua não aplicação pelo
tribunal em causa.
E no Acórdão invocado afirmou-se que no nosso sistema de fiscalização concreta
de constitucionalidade, tal como se encontra constitucional e legalmente
desenhado, não é admissível substituir o ónus de suscitação atempada de uma
questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a
decisão por uma qualquer pronúncia que este, por qualquer imaginável razão,
venha a produzir.
Ora, com todo o devido respeito, a situação ora em causa, não é, de modo algum,
abrangida pelo citado Acórdão.
Em 1º lugar, porque a questão da interpretação do artigo 173° do CPTA dada pelo
TCA Sul em matéria de execução de julgado anulatório em violação do artigo 20º,
n° 1 e 4, foi colocada de forma clara perante o tribunal de recurso, o STA,
identificando-se a interpretação da mesma que se tinha por violadora do Acesso
ao Direito e à Tutela Jurisdicional Efectiva consagrada no artigo 20°, n°s 1 e
4, da CRP.
E, como já se viu, o STA tomou expresso conhecimento da questão e decidiu sobre
a mesma.
Em 2° lugar, porque não há aqui uma “imaginável razão” que viesse a motivar uma
decisão de inconstitucionalidade pelo tribunal que proferiu a decisão.
A questão da constitucionalidade colocada à apreciação do STA não é algo nubloso
ou imaginativo.
A questão foi colocada como foi e o STA, sabendo que tinha de a conhecer,
enfrentou a mesma e decidiu-a, mal ou bem, mas decidiu-a.
Por isso mesmo, o Acórdão deste Tribunal invocado pela Senhora Conselheira
Relatora para decidir pelo não conhecimento do Recurso interposto pela ora
Reclamante, não tem aqui aplicação.
Por tudo o exposto, e atendendo a que a ora Reclamante interpôs o seu Recurso
para este Tribunal, respeitando o disposto nos artigos 72°, n° 2 e 75°-A, n° 2,
da LTC, deve a presente RECLAMAÇÃO ser deferida pela Conferência, conhecendo-se
assim do objecto do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
3. A reclamante alega que o fundamento oferecido na decisão sumária reclamada
para a não admissão do presente recurso de constitucionalidade – o da falta de
suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de uma questão de
constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida em termos de, como dispõe o n.º 2 do artigo 72.º da LTC, este estar
obrigado a dela conhecer – é improcedente.
Embora reconheça “[…] que, em face do rigor depositado pelo Tribunal
Constitucional na apreciação dos recursos de constitucionalidade ao abrigo do
art. 70º, nº 1, alínea b), da LTC, a ora Reclamante, sob o ponto de vista
técnico, recortou com maior detalhe a questão da constitucionalidade em causa
[entenda-se, no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade]”, entende a reclamante que tal não significa que o não
tenha feito nas alegações de recurso para o Tribunal a quo. Antes pelo
contrário, afirma que resulta de forma clara quer do corpo da motivação das
alegações de recurso para o STA quer das suas conclusões que suscitou a questão
de constitucionalidade de modo processualmente adequado.
Mais afirma que tanto assim é que o STA não deixou de apreciar a questão de
constitucionalidade, sobre a mesma – bem ou mal – tendo tomado posição, sendo
irrelevante o facto de na sua decisão o STA não ter invocado expressamente o
artigo 173.º do CPTA, pois a aplicação da norma tanto pode ser expressa como
implícita.
Por último, entende a reclamante que a jurisprudência do Acórdão n.º 710/2004 –
invocado na decisão sumária reclamada para sustentar que se não pode conhecer do
objecto do recurso de constitucionalidade – não é aplicável ao caso. Não o é
quer porque, como já havia afirmado, a questão de constitucionalidade foi
suscitada de modo processualmente adequado, sobre a mesma tendo a decisão
recorrida tomado posição, quer porque inexiste qualquer razão alternativa para o
Tribunal a quo ter decidido apreciar a questão de constitucionalidade que não o
facto de a isso estar obrigado por a mesma ter sido suscitada pela recorrente,
ora reclamante, nas suas alegações de recurso.
Não tem razão a reclamante.
Com efeito, em lugar algum das alegações de recurso é indicada, através da
formulação de uma regra abstractamente enunciada e com vocação para uma
aplicação potencialmente genérica, autonomizável da pura actividade subsuntiva
determinada por circunstâncias específicas do caso concreto e, portanto,
passível de controlo jurídico-constitucional, qual a norma do caso.
Como se afirma na decisão sumária reclamada, “[o] modo como o recorrente veio
agora, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade,
delimitar o seu objecto corresponde justamente ao modo como haveria de ter
suscitado a questão de constitucionalidade durante o processo, por forma a que o
Tribunal a quo pudesse e devesse conhecer da questão de constitucionalidade. Se,
na realidade, o que o recorrente pretende impugnar é um determinado segmento
normativo do preceito, exigir-se-ia que, oportunamente, houvesse enunciado qual
o sentido que a este foi atribuído de que se extrai a norma que se considera
inconstitucional”.
Tanto basta para que se não possa conhecer do presente recurso de
constitucionalidade.
A isso acresce, como também é dito na decisão sumária reclamada, que “[a]
circunstância de o Tribunal a quo ter decidido conhecer da questão de
constitucionalidade não tem como efeito o suprimento da falta de preenchimento
de um requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade. Como se
escreve no Ac. n.º 710/04 “[…] nem se diga que basta que, apesar de uma
hipotética deficiência da colocação da questão de constitucionalidade por parte
do(s) recorrente(s), o tribunal a quo se tenha efectivamente ocupado dela e
assumido que a tinha como objecto de pronúncia obrigatória. Não basta. Por um
lado, porque o tribunal a quo poderá estar confrontado com uma questão de
inconstitucionalidade da decisão judicial sobre a qual não pode deixar de se
pronunciar, sem, que tal suscitação da questão abra o recurso para o Tribunal
Constitucional; por outro lado, porque, no nosso sistema de fiscalização
concreta de constitucionalidade, tal como se encontra constitucional e
legalmente desenhado, não é admissível substituir o ónus de suscitação atempada
de uma questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu
a decisão por uma qualquer pronúncia que este, por qualquer imaginável razão,
venha a produzir”.
Ao contrário do que sustenta a reclamante, a remissão feita na decisão sumária
reclamada para a fundamentação do Ac. n.º 710/04 é perfeitamente justificada.
É-o, porque se trata de expor qual a posição do Tribunal Constitucional sobre a
questão de saber se, em abstracto, a circunstância de o Tribunal a quo ter
conhecido de uma questão de constitucionalidade teria como efeito o suprimento
da falta de preenchimento do requisito de suscitação prévia, de modo
processualmente adequado, de uma questão de constitucionalidade normativa
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida em termos de, como dispõe o
n.º 2 do artigo 72.º da LTC, este estar obrigado a dela conhecer, requisito
esse, em cuja não-verificação se funda a decisão sumária reclamada para não
admitir o presente recurso. Ora, o Acórdão referido ocupa-se justamente dessa
questão, pelo que a sua invocação na decisão sumária reclamada tem todo o
sentido.
Quanto ao argumento, constante da reclamação, de que é irrelevante o facto de na
sua decisão o STA não ter invocado expressamente o artigo 173.º do CPTA, pois a
aplicação da norma tanto pode ser expressa como implícita, não se percebe qual a
pertinência da sua utilização contra a decisão sumária reclamada. É que –
independentemente da sua procedência – só faria sentido utilizar tal argumento
perante uma decisão sumária cujo fundamento para a não admissão do recurso de
constitucionalidade tivesse sido a de não ter a norma cuja constitucionalidade
se pretende ver apreciada sido efectivamente aplicada pela decisão recorrida.
Ora, como reconhece a reclamante, o fundamento oferecido na decisão sumária
reclamada para a não admissão do recurso foi, além da natureza não normativa da
questão colocada, o da falta de suscitação prévia, de modo processualmente
adequado, de uma questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida.
Perante a não-verificação desses pressupostos processuais, a decisão sumária
reclamada não chegou a tomar posição sobre a verificação ou não de qualquer
outro pressuposto processual (sendo os pressupostos processuais estabelecidos na
lei e referidos expressamente na decisão sumária reclamada cumulativos, a
não-verificação de um deles basta para que não possa o Tribunal Constitucional
conhecer do recurso).
Com efeito, apesar de aí se afirmar que “[a] circunstância de o Tribunal a quo
ter decidido conhecer da questão de constitucionalidade não tem como efeito o
suprimento da falta de preenchimento de um requisito de admissibilidade do
recurso de constitucionalidade” não deve ser interpretado como uma apreciação da
verificação ou não do pressuposto processual de ter sido a norma cuja
constitucionalidade se questiona efectivamente aplicada na decisão recorrida.
Trata-se, apenas, de um dictum que tem por objectivo tornar claro, ainda quanto
à não-verificação do requisito de suscitação prévia de uma questão de
constitucionalidade normativa que, mesmo na hipótese de o Tribunal a quo ter
decidido conhecer de uma qualquer questão de constitucionalidade, tal
circunstância não teria, em todo o caso, como efeito o suprimento da falta de
preenchimento de um requisito de admissibilidade do recurso de
constitucionalidade.
III
Decisão
4. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a
presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 5 de Maio de 2010
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão