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Processo n.º 177/2009
Plenário
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Um Grupo de Deputados à Assembleia da República veio requerer, nos termos do
artigo 281.º, n.º 2, alínea f) da Constituição da República Portuguesa, a
fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, a título principal, das
normas constantes dos artigos 10.º, 20.º, 21.º, n.º 1, 88.º, n.º 4, e
consequentemente, da norma do artigo 109.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, todos da Lei n.º
12-A/2008, de 27 de Fevereiro, que estabelece o regime de vinculação, de
carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas.
2. O teor das normas questionadas é o seguinte.
Lei n° 12-A/2008, de 27 de Fevereiro
Artigo 10.º
Âmbito da nomeação
São nomeados os trabalhadores a quem compete, em função da sua integração nas
carreiras adequadas para o efeito, o cumprimento ou a execução de atribuições,
competências e actividades relativas a:
a) Missões genéricas e específicas das Forças Armadas em quadros permanentes;
b) Representação externa do Estado;
c) Informações de segurança;
d) Investigação criminal;
e) Segurança pública, quer em meio livre quer em meio institucional;
f) Inspecção.
Artigo 20.º
Âmbito do contrato
São contratados os trabalhadores que não devam ser nomeados e cuja relação
jurídica de emprego público não deva ser constituída por comissão de serviço.
Artigo 21.°
Modalidades do contrato
1 — O contrato reveste as modalidades de contrato por tempo indeterminado e de
contrato a termo resolutivo, certo ou incerto.
Artigo 88.°
Transição de modalidade de constituição da relação jurídica de emprego público
por tempo indeterminado
4 — Os actuais trabalhadores nomeados definitivamente que exercem funções em
condições diferentes das referidas no artigo 10.º mantêm os regimes de cessação
da relação jurídica de emprego público e de reorganização de serviços e
colocação de pessoal em situação de mobilidade especial próprios da nomeação
definitiva e transitam, sem outras formalidades, para a modalidade de contrato
por tempo indeterminado.
Artigo 109.°
Lista nominativa das transições e manutenções
1 — As transições referidas nos artigos 88.º e seguintes, bem como a manutenção
das situações jurídico-funcionais neles prevista, são executadas, em cada órgão
ou serviço, através de lista nominativa notificada a cada um dos trabalhadores e
tornada pública por afixação no órgão ou serviço e inserção em página
electrónica.
2 — Sem prejuízo do que nele se dispõe em contrário, as transições produzem
efeitos desde a data da entrada em vigor do RCTFP.
3 — Da lista nominativa consta, relativamente a cada trabalhador do órgão ou
serviço, entre outros elementos, a referência à modalidade de constituição da
sua relação jurídica de emprego público, às situações de mobilidade geral do, ou
no, órgão ou serviço e ao seu cargo ou carreira, categoria, atribuição,
competência ou actividade que cumpre ou executa, posição remuneratória e nível
remuneratório.
4 — Relativamente aos trabalhadores a que se refere o n.° 4 do artigo 88.º, a
lista nominativa consta ainda nota de que a cada um deles mantém os regimes ali
mencionados, bem como o referido no n.° 2 do artigo 114.º.
3. No requerimento de fiscalização abstracta sucessiva apresentado, o
requerente, após assim identificar as normas cuja constitucionalidade pretende
ver apreciada e que constituem objecto do presente pedido, começa por tecer
considerações genéricas sobre o diploma.
Afirma-se antes do mais que, a pretexto de uma reforma da Administração Pública,
o diploma tem como objectivo levar a cabo uma alteração da configuração do
Estado e das suas funções ou tarefas constitucionalmente assinaladas, atingindo
uma parte significativa de trabalhadores que actualmente exercem funções
públicas, por via da mudança do vínculo e/ou estatuto de que usufruem
presentemente e têm a legítima expectativa de continuar a usufruir.
Com efeito, ao alterar radicalmente o regime jurídico-laboral aplicável aos
trabalhadores da Administração Pública – alteração essa que se traduz tanto em
um enfraquecimento dos direitos dos trabalhadores como na redução do seu
universo –, segundo o requerente, a legislação em causa vem comprometer a
própria capacidade do Estado para desempenhar as funções que lhe estão
constitucionalmente atribuídas, com evidentes prejuízos para os cidadãos.
O enfraquecimento dos direitos dos trabalhadores bem como a redução do seu
universo decorre da circunstância de o regime de nomeação passar a ter um âmbito
de aplicação muito restrito, previsto no artigo 10.º do diploma,
generalizando-se, como modalidade de relação jurídica de emprego público, a
figura do contrato de trabalho em funções públicas.
Tal generalização redunda em um novo e substancial passo no sentido de
transferir a regulação jurídica da administração pública e dos seus
trabalhadores do direito administrativo para o direito privado.
A fim de demonstrar a sua afirmação, o requerente observa que carreiras
importantes para o interesse público e o serviço do cidadão – professores de
todos os ramos de ensino (incluindo o ensino superior) médicos e outros
profissionais do Serviço Nacional de Saúde, funcionários da Justiça e da
Administração Fiscal, entre outras – não são abrangidas pela norma do artigo
10.º, devendo os seus trabalhadores, nos termos do artigo 20.º do diploma, ser
contratados em vez de nomeados.
O requerente entende que tal significa sobrepor à vitaliciedade que está ligada
à nomeação definitiva dos trabalhadores da Administração Pública, em consonância
com o papel específico que a Constituição lhes atribui, a precariedade acrescida
que corresponde ao contrato de trabalho.
Afirma-se ainda que, com tal legislação, e ao arrepio da Constituição, a função
pública, como é tradicionalmente conhecida, passará a ser apenas uma das
modalidades (provavelmente só residual) de emprego no sector público.
Tal conformação legislativa traduz-se em uma descaracterização do figurino
constitucional de Administração Pública, nos termos do qual a prossecução do
interesse público implica uma permanência de funções que se passa a dispensar em
relação à maioria dos trabalhadores, considerando o âmbito de aplicação restrito
do artigo 10.º.
O requerente põe em evidência que nessa reestruturação da Administração Pública
vai implicada uma ideia de Estado subsidiário, em que se privilegia as funções
de carácter repressivo e de conservação da ordem pública, de defesa da
legalidade democrática, de soberania nacional e da integridade do território e
de garantia da liberdade e segurança das populações – apenas para essas áreas se
reservando o vínculo de nomeação – em detrimento de outras áreas não menos
essenciais associadas ao Estado Providência ou Estado Social e que visam
assegurar o bem-estar, criando condições propícias a alcançá-lo nos planos
económico, político, social e cultural, garantindo o desenvolvimento pleno do
cidadão e das suas actividades.
Sustenta-se ainda que, estando as funções do Estado constitucionalmente fixadas,
não pode o legislador delas dispor livremente, privilegiando umas em detrimento
de outras.
Segundo o requerente, a determinação constitucional resulta, desde logo, do
preâmbulo da Constituição, que aponta o horizonte de “construção de um país mais
livre, mais justo e mais fraterno”, e do seu artigo 1.º que retoma a ideia de
“construção de uma sociedade livre, justa e solidária”, retirando-se do artigo
2.º que “a realização da democracia económica social e cultural” é um suporte
fundamental do Estado de direito democrático.
A isso acresce que o artigo 9.º fixa as tarefas fundamentais do Estado, tarefas
essas que são articuladas – no Título III da Parte I, respeitante aos direitos
económicos, sociais e culturais – em múltiplas incumbências estaduais: a
Constituição concebe o papel do Estado de tal modo que nele não pode deixar de
estar incluída a capacidade de acção própria, i. é, dos seus serviços e
estruturas, no sentido de garantir os várias direitos económicos, sociais e
culturais.
Assim, incumbe ao Estado intervir, no sentido de organizar, coordenar,
subsidiar, apoiar e fiscalizar (entre outras expressões usadas pelo texto
constitucional), visando a garantia do direito ao trabalho e da protecção dos
direitos dos trabalhadores; da protecção e apoio aos consumidores; da existência
de um sistema público de segurança social; de um serviço nacional de saúde; do
direito à habitação; da protecção do ambiente e qualidade de vida; da protecção
da família, da paternidade e maternidade, das crianças, da juventude, dos
cidadãos com deficiência e da terceira idade, da garantia do acesso à educação e
à cultura e da existência de um sistema público de ensino, incluindo no nível
superior; da promoção da cultura física e do desporto.
Em virtude de o Estado estar constitucionalmente vinculado à prossecução dessas
tarefas e incumbido da sua realização, retira o requerente a conclusão de que
não só a Constituição não sugere a ideia de Estado subsidiário como exige uma
capacidade de intervenção dependente de estruturas e agentes com carácter
permanente.
A par da articulação entre o artigo 9.º e o Título III da Parte I, respeitante
aos direitos económicos, sociais e culturais, retira-se ainda da Parte II da
Constituição – relativa à Organização Económica (artigos 80.º e seguintes),
tendo como princípio fundamental a declaração de subordinação do poder económico
ao poder político democrático – uma definição do papel do Estado de estimular e
apoiar, incentivar e disciplinar as múltiplas actividades económicas (e sem
esquecer os objectivos das políticas agrícola, comercial e industrial, que
ressaltam do Título III da mesma parte II).
Ora, entende o requerente que com a reestruturação da Administração Pública
operada pelo legislador, e na sequência de outras medidas legislativas que vão
na mesma direcção, o Estado se demite de parte das tarefas que lhe são
constitucionalmente impostas.
Importa assim apreciar a conformidade com a Lei Fundamental de normas inseridas
na reforma do regime de vinculação, de carreiras e de remunerações dos
trabalhadores da Administração Pública.
O requerente pretende, designadamente, saber se, operando tal reforma um
resultado assimilado a uma verdadeira “privatização da Administração Pública” –
na medida em que a esmagadora maioria dos seus trabalhadores, ainda que
exercendo funções públicas, vai ficar vinculada segundo um regime contratual de
pendor civilístico – as normas referidas consubstanciam violação de normas e
princípios constitucionais.
Sustenta-se ser esse o caso.
Com efeito, as normas que vêm identificadas e que constituem objecto do pedido
submetido à apreciação do Tribunal Constitucional afastam-se, no dizer do
requerente, da Constituição, desde logo, quanto à ideia e à estrutura da
Administração Pública em sentido próprio, e em conjugação com os direitos dos
trabalhadores, nomeadamente, o direito à segurança no emprego e o direito à
função pública.
Entende-se que o direito à segurança no emprego abrange todas as situações que
se traduzam em injustificada precariedade da relação de trabalho (por exemplo, o
trabalho a termo que é, por natureza, precário), pressupondo ainda que, em
princípio, a relação de trabalho é temporariamente indeterminada. Quanto ao
direito à função pública, sustenta-se que, gozando o respectivo regime de uma
tradicional protecção reforçada, não pode ele contemplar, por exemplo, o
despedimento colectivo por extinção ou reestruturação dos serviços.
Entende-se ainda que, sem prejuízo de a chamada constituição administrativa
atravessar transversalmente grande parte das normas constitucionais, a
Constituição atribui à Administração Pública particular relevo, ao dela se
ocupar, a par do Título VIII da Parte III, dedicado ao Poder Local, no seu
Título IX da Parte III.
Com efeito, do âmbito normativo desses dois Títulos, no essencial, decorre:
– a definição dos limites a que está submetida à partida a Administração
Pública, tendo por um lado a prossecução do interesse público (limite positivo)
e por outro o respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos
cidadãos (limite negativo), acrescentando-se ainda para o Poder Local a
prossecução de interesses próprios das populações respectivas;
– o quadro de princípios que rege a Administração Pública, a começar pelo
princípio da legalidade – a subordinação à Constituição e à lei, prevista também
no artigo 3.º, n.ºs 2 e 3 – e a terminar no princípio da boa fé, que postula um
mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são
juridicamente criadas;
– a estrutura da Administração Pública, com destaque para a desburocratização,
a aproximação dos serviços das populações, as adequadas formas de
descentralização e desconcentração administrativas, e o registo “da necessária
eficácia e unidade de acção da Administração e dos poderes de direcção,
superintendência e tutela dos órgãos competentes” (à cabeça o Governo, no
exercício de funções administrativas: artigo 199.º, alínea d), competindo-lhe
ainda praticar “todos os actos exigidos pela lei respeitantes aos funcionários e
agentes do Estado e de outras pessoas colectivas públicas” – artigo 199.º,
alínea e);
– o regime da função pública, repetindo-se a ideia de estar “exclusivamente ao
serviço do interesse público”, que não pode dissociar-se dos direitos,
liberdades e garantias dos trabalhadores, constitucionalmente destacados, com
realce para o direito à segurança no emprego (artigo 53.º), o direito ao
trabalho (artigo 58.º), o direito de acesso à função pública, em condições de
igualdade e liberdade, em regra por via de concurso (artigo 47.º);
– a responsabilização, interligada com a responsabilidade das entidades
públicas definida no artigo 22.º e complementada no artigo 271.º, sobre a
responsabilidade dos funcionários e agentes.
O requerente complementa a referência que faz ao texto da Constituição com uma
selecção da jurisprudência do Tribunal Constitucional com relevância sobre a
matéria, sustentando-se que tal jurisprudência se tem mostrado sempre sensível
ao estatuto específico do funcionário público.
Seria disso exemplo o Acórdão n.º 154/86 (in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 7, Tomo I, 1986, p. 185 ss.), no passo seguinte:
Não podendo dispensar livremente os seus funcionários, o Estado também não pode
livremente retirar-lhes o seu estatuto específico.
Com efeito, o funcionário público detém um estatuto funcional típico quanto à
relação de emprego em que está envolvido, estatuto este que consiste num
conjunto próprio de direitos e regalias e de deveres e responsabilidades, que o
distinguem da relação de emprego típico das relações laborais comuns (de direito
privado). Esse estatuto adquire-se automaticamente com o próprio acesso à função
pública, passando a definir a relação específica de emprego que o funcionário
mantém com o Estado-Administração. Ora, a garantia constitucional da segurança
no emprego não pode deixar de compreender também a garantia de que o empregador
não pode transferir livremente o trabalhador para outro empregador ou modificar
substancialmente o próprio regime da relação de emprego uma vez estabelecida.
Referindo-se ao direito à função pública, o mesmo acórdão caracteriza-o como
“uma garantia especifica de estabilidade e de segurança no emprego quanto aos
funcionários públicos”, acrescentando que há “uma flagrante imagem da
diferença”, em termos de segurança e prerrogativas, entre o regime da função
pública ao serviço do Estado e o regime laboral do Direito privado.
A mesma linha de entendimento é retomada mais recentemente no Acórdão n.° 683/99
(in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 45, 1999 (Outubro a Dezembro), p.
661 ss.), que cita e transcreve outros arestos do mesmo Tribunal, registando as
diferenças gerais que há que reconhecer entre a relação jurídica de emprego
pública e a relação jurídica laboral de direito privado:
“Como resultado da sua orientação (a do Estado) para a satisfação do interesse
público e da sua integração num corpo ao serviço do Estado, os trabalhadores da
função pública estão sujeitos a um regime jurídico próprio, substancialmente
diferente do regime jurídico que disciplina os trabalhadores do sector privado”
(apontam-se depois, a titulo exemplificativo, algumas diferenças, e, entre elas,
destaca-se, quanto ao recrutamento e selecção dos trabalhadores no sector
público e no sector privado, “a que decorre do preenchimento de um lugar do
quadro de pessoal de um qualquer organismo público resultar de um acto de
nomeação” e de o artigo 47.º, n.º 2, da Constituição assegurar a via do
concurso).
Do mesmo Acórdão n.° 683/99 constam, ainda, passagens do Acórdão n.° 340/92
(Diário da República, II Série, de 17 de Novembro de 1992), podendo ler-se numa
delas o seguinte:
A Administração, (…), é livre para estabelecer as respectivas formas de
organização ou os meios pelos quais se hão-de satisfazer as necessidades que
constituem a sua razão de ser. Simplesmente, esta liberdade não pode ser
entendida no sentido de, a propósito das formas de provimento dos funcionários
públicos, conduzir a uma supressão infundamentada dos seus vínculos de
efectividade e permanência envolvendo a sua substituição por formas de
contratação precárias, transitórias e sem qualquer expectativa de continuidade
profissional.
Face a essa linha jurisprudencial do Tribunal Constitucional, entende o
requerente poder, em suma, dar-se como assente que o Estado-Administração vive
de estruturas e organizações permanentes que asseguram de modo regular e
contínuo a satisfação das necessidades colectivas, qualquer que seja a
intensidade e a extensão destas, e que as organizações humanas que servem o
Estado-Administração supõem um direito à função pública, com o segmento de um
direito ao lugar, que satisfaz a necessária estabilidade, permanência e
efectividade.
Também a essa luz, afirma-se que a regra de transição, consagrada no questionado
artigo 88.°, n.° 4, - ainda que o legislador queira ressalvar “os regimes de
cessação da relação jurídica de emprego público, de reorganização de serviços e
de mobilidade especial próprios da nomeação definitiva”, mas sem que fique
assegurada aos interessados uma opção pelo regime anterior ou pelo novo regime,
como acontece noutros casos de sucessão de regimes legais - contraria os
princípios da segurança jurídica e da confiança ínsitos na ideia de Estado de
direito democrático, consagrada no artigo 2.° da Constituição, e viola os
artigos 53.º e 58° da mesma Constituição, que garantem o direito à função
pública e o segmento do direito ao lugar, como ficou dito no texto.
Isto porque os actuais trabalhadores nomeados definitivamente são surpreendidos
por uma mudança do seu estatuto profissional, que lhes é desfavorável, e que,
aliás, abrange um amplo universo constituído certamente pela percentagem mais
elevada dos trabalhadores da Administração Pública. Há um investimento na
confiança e na manutenção da ordem jurídica vigente que aqueles trabalhadores
vêem fortemente abalado.
Pode pois concluir-se que as soluções consagradas na Lei n.º 12-A/2008, de 27 de
Fevereiro, atingindo uma faixa significativa dos actuais trabalhadores da
Administração Pública nomeados, estão feridas de inconstitucionalidade material,
por violação, no essencial, das seguintes normas e princípios constitucionais,
assim sintetizados:
a) o artigo 2.°, com os princípios da segurança jurídica e da confiança que
lhe estão ínsitos, envolvendo uma ideia de previsibilidade da ordem jurídica,
pois, com o novo regime de vinculação e o novo modelo de esvaziamento das
funções estaduais, são seriamente afectadas as legítimas e justas expectativas
dos trabalhadores da Administração Pública, em especial, as que respeitam aos
trabalhadores vinculados por acto de nomeação, que irão, muitos deles, uma
maioria significativa, ao arrepio da boa fé, perder esse vínculo (e em prejuízo
dos cidadãos, pois ficará afectada a realização da democracia económica, social
e cultural, com ofensa ainda do artigo 267°, que espelha a estrutura da A.P., ao
encontro dessa democracia);
b) os artigos 53.° e 58.°, pois o direito à função pública e o segmento do
direito ao lugar são atingidos com o novo regime de vinculação e a transição
para a modalidade de contrato por tempo indeterminado;
c) o figurino constitucional que a Constituição da República Portuguesa
consagrou, no seu Título IX da Parte III, para a Administração Pública.
4. Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3 da
Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República, em
resposta, ofereceu o merecimento dos autos e juntou documentação relativa aos
trabalhos preparatórios da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, precedida do
respectivo índice.
5. Apresentado e discutido o memorando a que se refere o artigo 63.º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre decidir de
harmonia com o que então se determinou.
II
Fundamentos
6. A questão de constitucionalidade
6.1. O requerente sustenta que a modificação da modalidade de vínculo dos
trabalhadores da função pública que está prevista nos artigos 10.º, 20.º, 21.º,
n.º 1, 88.º, n.º 4 e 109.º, n.º 1 a 4, da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro,
passando a generalidade dos trabalhadores que anteriormente beneficiavam do
regime da nomeação definitiva para o regime da contratação por tempo
indeterminado, viola o direito à segurança no emprego e os princípios da
segurança jurídica e da protecção da confiança com a específica intensidade com
que deveriam valer no que respeita ao exercício de funções públicas, tendo em
consideração o figurino constitucional da actividade e da organização
administrativas e o conjunto de tarefas que corresponde ao Estado de direito
democrático.
Alega, mais concretamente, que o carácter meramente excepcional do regime
especial da nomeação (artigo 10.º da Lei n.º 12-A/2008) e a adopção, em
alternativa, de regimes contratuais para os trabalhadores da Administração
Pública (artigo 20.º e 21.º, n.º 1) violam a segurança no emprego que deve ser
inerente ao trabalho na referida administração (artigos 53.º e 58.º da
Constituição), em vista da estrutura que constitucionalmente lhe está reservada
(artigo 267.º da Constituição) e das tarefas que constitucionalmente estão
cometidas ao Estado (especialmente, artigos 9.º e 81.º da Constituição).
E acrescenta que a alteração da modalidade de constituição da relação jurídica
de emprego público, no que respeita aos trabalhadores actualmente em exercício
de funções, que está prevista nos artigos 84.º, n.º 4, e 109.º, n.º 1 a 4, da
mesma Lei n.º 12-A/2008, viola não só esse estatuto específico da função pública
como também os princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica que
estão ínsitos na ideia de Estado de direito democrático, consagrada no artigo
2.º da Constituição da República Portuguesa.
6.2. Deve começar por dizer-se que, apesar de o requerente apresentar
conjuntamente estas duas questões, é possível distingui-las, pois o universo das
relações jurídicas de emprego em causa não é o mesmo: num caso trata-se de
relações de emprego público a constituir e, no outro, de relações de emprego já
constituídas.
Assim, é possível decompor o pedido em dois diversos problemas que, de seguida,
se resolverão: em primeiro lugar, importa apreciar a questão do direito à
segurança no emprego no âmbito do “estatuto específico” da relação de emprego
público; em segundo lugar, atentar-se-á à questão, mais específica, da alteração
legal da modalidade do vínculo constitutivo da relação jurídica de emprego na
pendência da mesma.
Mais do que possível, a distinção analítica entre os dois problemas assim
enunciados afigura-se como uma distinção necessária: constituindo eles problemas
autónomos, um eventual juízo de não inconstitucionalidade relativo ao primeiro
não preclude a possibilidade de um juízo diverso quanto ao segundo.
6.3. Estes dois problemas têm uma formulação essencialmente subjectiva, já que
no seu centro se encontra a afirmação da existência de um direito à segurança no
emprego e de um direito ao lugar de que seriam titulares os trabalhadores
públicos. Porém, no discurso do requerente encontram-se ainda argumentos
objectivos.
O primeiro diz respeito à existência de uma reserva constitucional do estatuto
da função pública. Sustenta-se, com efeito, e como já se viu, que as normas em
juízo seriam inconstitucionais também por contrariarem o estatuto específico da
função pública, estatuto esse que a Constituição protegeria e que a
jurisprudência do Tribunal sempre teria reconhecido.
Por outro lado, alega-se que a alteração, pelo legislador ordinário, desse
estatuto teria como consequência necessária o comprometimento da capacidade do
Estado para se desempenhar das tarefas que lhe são constitucionalmente
atribuídas, já que se defende a ideia segundo a qual as presentes escolhas do
legislador configurariam um exemplo, a par de outros, de redução do papel do
Estado (seriam esses outros exemplos, nas palavras do requerimento, os “[…]
casos da crescente transferência da prestação de cuidados do Serviço Nacional de
Saúde para o sector privado, da entrega de importantes sectores de ensino
público à prestação privada ou dos modelos privatizadores instalados na área da
administração da justiça, como sejam, por exemplo, os vários mecanismos de
mediação, os mecanismos gerais de arbitragem, a “desjudicialização” do processo
executivo e a privatização do notariado”).
Na lógica discursiva do requerente esta dupla ordem de razões, subjectiva e
objectiva, aparece no entanto estreitamente interligada. Afirma-se a existência
de uma reserva constitucional do estatuto da função pública na medida em que se
afirma, também, a existência [para os trabalhadores públicos] de um direito à
segurança no emprego e de um direito ao lugar; e afirma-se a existência de uma
escolha legislativa que implica a redução do papel do Estado na medida em que se
entende que, da alteração do estatuto da função pública – ou seja, da afectação
dos direitos à segurança no emprego e do direito ao lugar –, decorrerá, numa
relação de causalidade necessária, o comprometimento da capacidade do Estado
para cumprir as funções que, constitucionalmente, lhe são atribuídas.
Assim sendo, nenhuma razão há, para que, metodologicamente, se responda a cada
uma destas razões como se de argumentos separados se tratasse.
Afinal, e na óptica mesma da argumentação apresentada, apenas relevará
jurídico-constitucionalmente o argumento, objectivo, que invoca a possível
“redução do papel do Estado”, na medida em que se confirme a incapacitação deste
último para se desempenhar das suas tarefas, incapacitação essa cuja verificação
depende do juízo a formular sobre a questão do direito à segurança no emprego no
âmbito do “estatuto específico” da relação de emprego público.
Pela análise desta questão se começará.
A)
A questão do direito à segurança no emprego no âmbito do “estatuto específico”
da relação de emprego público
7. Reserva de função pública
O requerente apresenta a caracterização constitucional da Administração Pública,
segundo a lógica dos princípios fundamentais da organização e da actividade
administrativa (artigos 266.º e seguintes da Constituição), e do Estado, segundo
as tarefas que constitucionalmente deve cumprir (artigos 9.º e 81.º da
Constituição). Nessa base, defende que da vigência de tais princípios e tarefas
se retira a conclusão de que existe constitucionalmente um estatuto específico
da função pública - um estatuto de mais firme vinculação e menor precariedade do
que o regime geral das relações laborais comuns.
Esse estatuto específico da função pública poderia justificar-se seja pelo cariz
próprio da Administração Pública (dirigida como está para a realização do
interesse público segundo os princípios da justiça e da imparcialidade), seja
pela estrutura desconcentrada e descentralizada que a Constituição consagra. E
tal estatuto deverá conferir aos trabalhadores da Administração Pública
garantias efectivas do rigoroso exercício do interesse público que servem e dos
princípios a que se subordinam.
Salienta-se desde já que esta posição, que afirma a existência de uma reserva
constitucional em favor do estatuto específico da função pública, parece ter
algum apoio literal no n.º 1 do artigo 269.º (e também no artigo 271.º) da CRP,
que determina que “no exercício das suas funções, os trabalhadores da
Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas
estão exclusivamente ao serviço do interesse público […]”. Desta adstrição
exclusiva ao interesse público decorreria, de acordo com a tese apresentada pelo
requerente, a necessária especificidade dos vínculos do trabalho no âmbito da
Administração Pública.
No mesmo sentido parece pronunciar-se a doutrina que defende a subsistência, na
Constituição, de um “regime da função pública.”
“As tendências mais recentes vão no sentido da aproximação do regime dos
funcionários e agentes das entidades públicas ao regime dos trabalhadores de
entidades privadas. Isso está bem patente no uso do termo “trabalhadores da
Administração pública” nos n.os 1 e 2 do presente artigo, sem esquecer o direito
ao aproveitamento de todo o tempo de trabalho, para o cálculo das pensões de
velhice e invalidez, independentemente do sector de actividade em que tenha sido
prestado (artigo 63.°, n.° 3).
Assim, os funcionários e agentes gozam do direito à segurança no emprego, do
direito de liberdade sindical com os inerentes direitos de participação, do
direito à greve, dos direitos sociais consignados no artigo 59.º e, quando haja
estruturas empresariais, do direito de constituição de comissões de
trabalhadores e de participação nos processos da sua reestruturação. Também a
ideia tradicional da subordinação hierárquica tem vindo a esbater-se perante a
de subordinação a poderes de direcção do empregador.
Todavia, subsiste um “regime de função pública” (epígrafe deste artigo e artigo
165.°), fundado no princípio da prossecução do interesse público pela
Administração (artigo 266.°, n.° 1) e recortado através dos seguintes traços:
— regra do concurso no acesso (artigo 47.°, n.° 2, 2ª parte) e, logicamente
também, sempre que adequado, na carreira;
— vedação do acesso e da permanência aos cidadãos que deixem de cumprir os seus
deveres militares ou de serviço cívico quando obrigatório (artigo 276.°, n.° 5):
vedação de acesso de estrangeiros, salvo os cidadãos dos países de língua
portuguesa com estatuto de igualdade, a funções que não tenham carácter
predominantemente técnico (artigo 15.°, n.° 2 e 3): regras sobre acumulações e
incompatibilidades (artigo 269.°, n.os 4 e 5);
— direito de reclamação e direito de transmissão ou confirmação de ordens de
superiores hierárquicos por escrito (artigo 271.°, n.° 2), direitos de natureza
análoga à dos direitos, liberdades e garantias (artigo 17.°);
— previsão constitucional de garantias em processo disciplinar (n.° 3);
— previsão constitucional da responsabilidade por acções e omissões (artigos
22.° e 271 .°);
— regras sobre acumulações e incompatibilidades (artigo 269.°, n.° 4 e 5).
[…] Na síntese de ViTAL MOREIRA (Projecto de lei-quadro dos institutos públicos
— Relatório final e proposta de lei-quadro. Lisboa, 2001, pág. 50), nem a
Administração pública pode considerar-se uma entidade patronal privada, nem os
seus trabalhadores podem ser considerados trabalhadores comuns”. [Jorge Miranda
em artigo conjunto com Ana Fernanda Neves (sub artigo 269.º, in Constituição da
República Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda /Rui Medeiros, Tomo III, pp.
620 e ss.)
No mesmo sentido depõem também Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da
República Portuguesa Anotada, 4ª ed., Vol. 1, p. 662):
“O conceito constitucional de função pública pressupõe uma clara dimensão
estatutária, traduzida na existência de um estatuto da função pública. É
questionável se a privatização da administração pública (vínculos precários,
privatização da forma de organização, privatização funcional) e se a
substituição da «estatutização pela «contratualização» expressa na adopção do
contrato individual de trabalho como esquema regulativo das relações jurídicas
de emprego público, não encontrará limites constitucionais incontornáveis na
dimensão estatutária da função pública, desde logo nos princípios
constitucionais materiais da administração pública (igualdade,
proporcionalidade, boa fé, justiça e imparcialidade) e nos princípios de reserva
de administração pública e de função pública para determinadas actividades (ex.:
funções de autoridade). Por outro lado, a adopção do contrato de trabalho na
Administração pública não pode defraudar materialmente o princípio da
imparcialidade e igualdade no recrutamento que a regra do concurso garante. Ao
contrário dos empregadores privados, para os quais rege a autonomia privada e a
livre prossecução de interesses próprios, a Administração não pode gozar da
liberdade de escolha do seu pessoal. Por isso, o recrutamento de pessoal em
regime de contrato de trabalho tem de obedecer a um procedimento de escolha que
garanta a objectividade e igualdade no acesso (neste sentido, correctamente, o
AcTC n° 406/03). O «direito privado administrativo» tem de ter as
especificidades e qualificações necessárias para garantir o interesse público e
os princípios constitucionais da Administração pública”.
A fim de comprovar a diferença entre vínculos, indiciada pelo figurino
constitucional da Administração Pública e da função pública, o requerente
invoca, ainda nos termos constantes do relatório, a jurisprudência do Tribunal
Constitucional, designadamente, os acórdãos n.os 154/86, 683/99 e 340/92.
8. As normas sob juízo
Não parece, todavia, que lhe assista razão no juízo que faz das normas da Lei
n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, que concretamente impugna.
Em 1982, na primeira revisão constitucional, decidiu o legislador constituinte
substituir, no n.º 1 do artigo 269.º da Constituição, a expressão “funcionários
públicos” pela alternativa “trabalhadores da Administração Pública”. O intuito
terá sido o de deixar claro que aos “funcionários” seriam também aplicáveis os
direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, então autonomizados (Diário
da Assembleia da República, I Série, n.º 125, pp. 5269-5280). É, pois, à luz
desta disposição constitucional e das outras, com ela sistematicamente
relacionadas, que deve analisar-se a bondade da tese que acabou de ser
explanada, segundo a qual existe uma reserva constitucional de função pública.
8.1. Em primeiro lugar, não pode dizer-se que a alteração do regime de nomeação
(por acto de autoridade unilateral da Administração) para um regime contratual
(por conjugação do interesse público que a Administração Pública serve com a
autonomia privada do particular) ofenda, em si mesmo, a ideia de um estatuto
específico da função pública. Na verdade, nenhuma das regras e princípios que
vimos caracterizarem esse estatuto (sejam elas relativas a concurso no acesso e
na carreira; direito de reclamação; garantias em processo disciplinar,
responsabilidade por acções e omissões ou acumulações e incompatibilidades) é
posta em causa pela mera alteração da modalidade de vínculo em causa e todas
elas são compatíveis com um regime jurídico de matriz contratual. O estatuto
específico da função pública existe constitucionalmente, mas não é atingido
apenas pelo facto de haver formas contratuais de recrutamento de trabalhadores
da Administração Pública.
Como esclarecem Jorge Miranda e Ana Fernanda Neves (loc. cit., pág. 621):
“Estes elementos irredutíveis [que compõem o estatuto da função pública e que
acima se enumeraram] encontram-se tanto nas situações (mais correntes até hoje)
de sujeição dos trabalhadores da Administração pública e demais funcionários e
agentes a um regime estatutário como nas situações de contrato individual de
trabalho”.
8.2. Em segundo lugar, não parece pertinente, à luz da evolução constitucional
portuguesa, a alegação (desenvolvida nos pontos 14 a 22 do requerimento) segundo
a qual o modelo de Estado social que a Constituição consagra exigiria que se
mantivesse o regime de nomeação definitiva e excluiria que a Administração
Pública se regesse por critérios de contratualidade laboral.
O requerente desenvolve a ideia de uma configuração do Estado, segundo as
“tarefas” que deverá constitucionalmente cumprir, que parece poder
caracterizar-se como de “Estado assistencial”. Contudo, se é verdade que a
Constituição rejeita o modelo do “Estado mínimo” e impõe um modelo de “Estado
social” (entendido no quadro da “sociedade livre justa e solidária” a que se
refere logo no seu artigo 1.º e da democracia económica, social e cultural de
que fala o artigo 2.º), não é menos certo que o modelo constitucional de Estado
“não se compadece com o Estado assistencial”.
É precisamente o que sintetiza Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional,
Tomo IV, p. 445):
“Se, obviamente, a Constituição rejeita o Estado mínimo (em face da soma de
tarefas e incumbências que atribui às entidades públicas, à luz do desígnio de
«uma sociedade mais solidária» do art. 1.º), tão pouco se compadece com o Estado
assistencial.
Não se conforma com este por causa de todo o relevo que confere à intervenção de
grupos, associações e instituições existentes na sociedade civil na efectivação
dos direitos sociais. Depois, por causa da garantia da propriedade e da
iniciativa económica privada (reforçada em sucessivas revisões). Enfim, porque,
expressamente, ao considerar o acesso à justiça alude à «insuficiência de meios
económicos» (art. 20.°, n.° 1, atrás considerado) e declara o serviço nacional
de saúde tendencialmente gratuito «tendo em conta as condições económicas e
sociais dos cidadãos» (art. 64.°, n.° 2, alínea c), na versão de 1989)”.
A questão não é, anote-se, político-ideológica, mas eminentemente jurídica e,
mais especificamente, “jurídico-constitucional” (só assim se compreendendo,
aliás, que o requerente insista tão veementemente nela, no âmbito de um processo
jurisdicional de fiscalização da constitucionalidade).
Na verdade, a “democracia económica, social e cultural”, que sustenta a ideia
constitucional de Estado de direito democrático, não corresponde a um modelo
ideológico predefinido de organização e actuação do Estado e da Administração
Pública, mas a uma transcendental exigência de juridicidade constitucional,
exigência esta que se compadece com modelos estruturalmente diversos de
organização administrativa pública e com formas heterogéneas de realização do
interesse público, que o Estado visa servir.
Além disso, o Estado actuante e conformador da sociedade, que a Constituição
prefigura nos seus artigos 2.º e 9.º, não se confunde com o Estado meramente
executor de um programa que seja constitucionalmente fixado, de forma exauriente
e fechada. Bem pelo contrário. Sendo a ideia de Estado social uma implicação do
Estado de direito, e integrando este, nos termos do artigo 2.º, ainda os
princípios da soberania popular e do pluralismo de expressão e de representação
política democráticas, ao poder político legitimamente constituído em cada
legislatura caberá, de acordo com os mandatos populares, decidir sobre o modo de
concretização das normas da CRP que fixam as tarefas fundamentais do Estado. De
nenhuma dessas normas se poderá depreender a vinculação do legislador ordinário
a uma “visão” invariável do Estado – seja ela ou não a “visão mais abrangente do
Estado-providência”, para citar as palavras do ponto 16 do requerimento –, ou a
um programa tão detalhado da sua acção futura que obrigue à manutenção de um
certo modelo de constituição da relação de emprego público.
8.3. Em terceiro lugar, a função pública não é um estatuto que obrigatoriamente
seja marcado pela homogeneidade. Mesmo quem mais enfaticamente defende a
existência de uma especificidade constitucional inerente ao regime da função
pública, como sucede com Paulo Veiga e Moura (A Privatização da Função Pública,
Coimbra 2004, p. 80 a 84 e 257 a 261), reconhece que há no interior da
Administração Pública diferenciações a fazer e especificidades a ter em conta
(ob. cit., pág. 85-94), fazendo inclusivamente, como corolário da posição
diferenciadora, a referência àquilo que designa como “núcleo duro da Função
Pública” (p. 94), do qual naturalmente - acrescente-se - não farão parte todos
os trabalhadores da função pública.
8.4. Em quarto lugar, e infirmando aquilo que é o nó górdio de toda a
construção argumentativa do requerente, não é de todo possível estabelecer um
nexo de causalidade necessária entre a segurança da relação de emprego público
(artigos 53.º e 58.º da Constituição) e o correcto exercício da actividade
administrativa pública no quadro dos princípios constitucionais (artigo 266.º da
Constituição). De facto, como se sabe, há diversas modalidades de constituição
da relação de emprego público. Existem, para além dos trabalhadores nomeados a
título definitivo e em regime de contrato administrativo de provimento,
trabalhadores em regime de “contrato a termo” e em regime de “comissão de
serviço”.
Ora seria ilegítimo pensar que estes últimos teriam necessariamente menor
empenho na realização do interesse público (que constitui a razão fundamental de
ser e o “norte” da Administração Pública) e dos princípios jurídicos
fundamentais (enquanto parâmetros normativos que balizam a prossecução de tal
interesse público) do que os funcionários ou agentes com um vínculo menos
precário e mais estável.
É certo que a estabilidade promove o compromisso, mas não é legítimo presumir
que os trabalhadores com contrato por tempo indeterminado terão menor
empenhamento na prossecução do interesse público do que os trabalhadores
definitivamente nomeados.
Além disso, convém notar que qualquer uma das modalidades de constituição da
relação jurídica de emprego público está, nos termos da lei, submetida às mesmas
garantias de imparcialidade, quer se trate de nomeação (definitiva ou
transitória) quer se trate de contrato (por tempo indeterminado ou a termo
resolutivo, certo ou incerto). Tal significa que, pelo menos na perspectiva do
legislador, inexiste uma correlação de causalidade necessária entre a modalidade
de constituição da relação jurídica de emprego público e o grau de cometimento
na prossecução do interesse público por parte do trabalhador. Com efeito, se
assim não fosse, teria optado a lei por limitar o âmbito de aplicação das
garantias de imparcialidade aos vínculos constituídos por contrato e não por
nomeação definitiva, já que, quanto a estes últimos, se presumiria, pela própria
natureza das coisas, um indiscutível comprometimento com o interesse público.
Nada, no entanto, legitima essa presunção. Como diz Pedro Gonçalves (Entidades
privadas com Poderes Públicos, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 424-5), a propósito
do que deva entender-se o que são, para efeitos de delimitação subjectiva do
exercício privado de poderes públicos, entidades privadas “[i]ndependentemente
do título de investidura – eleição, nomeação, contrato de provimento ou contrato
de trabalho –, esses indivíduos [trabalhadores, funcionários, agentes ou
titulares de órgãos políticos], agindo como membros da Administração e em nome
de uma entidade pública, não são particulares. Desenvolvem uma actividade
profissional, exercem um mandato, por eleição ou por nomeação, em qualquer caso,
com uma legitimação democrática ou na dependência de pessoas com legitimação
democrática”.
Significa isto que a Administração Pública, desenvolvendo-se num quadro
institucional democraticamente legitimado, detém uma estrutura tal que
possibilita que quem age em nome dela o faça em nome do interesse público,
independentemente do modo pelo qual – nomeação ou contrato – se constituiu o
vínculo laboral. E a imposição constitucional é justamente essa: a vinculação
exclusiva da administração ao interesse público (artigo 266.º, n.º 1, da CRP).
8.5. Em quinto lugar, nenhum dos acórdãos do Tribunal Constitucional invocados
pelo requerente permite a inferência de que do estatuto da função pública
decorreria a impossibilidade de estabelecer a regra da contratualização em
matéria laboral. Adiante se fará referência aos acórdãos n.os 154/86 e 340/92.
Por agora, limitamo-nos ao acórdão n.º 683/99.
Aquilo que ficou decidido no Acórdão n.º 683/99, numa jurisprudência, aliás,
posteriormente confirmada em inúmeros outros acórdãos (vejam-se, nomeadamente,
os acórdãos n.os 85/00, 191/00, 368/00, 409/07, 248/08, 412/08 ou 483/08), foi a
inconstitucionalidade da conversão automática de contratos a termo em contrato
definitivo sem necessidade de procedimento de recrutamento e selecção de
candidatos que assegure o respeito pelos princípios da liberdade e da igualdade
no acesso à função pública.
O acórdão não consagra, portanto, nenhum “direito à função pública”, como
pretende o requerente, decidindo apenas no sentido da existência no âmbito desta
de um direito de acesso à função pública, através de concurso, de que resultará
a escolha dos mais aptos para o exercício das funções que especificamente
estejam em causa.
Em suma, o acórdão depõe no sentido da não definitividade dos vínculos pelo mero
decurso do tempo, e não no sentido, que o requerente pretende, de um direito à
função pública.
8.6. Em sexto lugar, é necessário ter em conta que a segurança no emprego
(artigos 53.º e 58.º da Constituição) não é um direito absoluto, mas antes, à
semelhança, aliás, de todos os outros direitos, um direito que admite limites e
restrições à luz de outros direitos e valores constitucionalmente protegidos
(artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
Ora no que especificamente respeita ao emprego público é necessário ponderar o
objectivo constitucionalmente definidor da Administração Pública, ou seja, o
“interesse público”, com o dever de boa administração que lhe é inerente.
Deste modo, deve entender-se que o regime de vínculos, remunerações e carreiras
da Administração Pública poderá restringir a segurança do emprego público em
vista da qualidade da actividade administrativa pública. Se a segurança no
emprego é um imperativo constitucional não o é menos o modelo da boa
administração inerente à prossecução do “interesse público” (artigo 266.º, n.º
1, da Constituição), interesse este ao serviço do qual se encontram
exclusivamente dedicados os trabalhadores da função pública (artigo 269.º, n.º
1, da Constituição).
Era já isto, precisamente, o que se concluía no Acórdão n.º 233/97:
“o direito à segurança no emprego não impede que, havendo interesses com relevo
constitucional que tal justifiquem, a relação jurídica de emprego na
Administração Pública assuma uma certa precariedade, como sucede com a que se
constitui por contrato pessoal. Tal acha-se, de resto, consagrado na lei geral,
onde se prevê essa forma de constituição da relação jurídica de emprego público,
na modalidade de contrato administrativo de provimento e na de contrato de
trabalho a termo certo (cf. artigos 3º e 14º a 21º do Decreto-Lei nº 427/89, de
7 de Dezembro).
De facto, embora a relação jurídica de emprego na Administração Pública tenha
uma certa vocação para a vitaliciedade (cf., hoje, o artigo 5º do citado
Decreto-Lei nº 427/89), não existe (para quem acede à função pública) uma
garantia constitucional de exercer vitaliciamente as respectivas funções”.
Desta forma, ainda que se admita “que a Constituição prevê e protege uma relação
jurídica de trabalho específica, correspondente à função pública no seu sentido
estrito”, não decorre daí que o modelo de vínculo laboral seja um “modelo
estatutário simples ou puro” ou que o legislador não possa “prever outras formas
jurídicas da relação de trabalho da Administração pública, maxime optar pela
forma típica das relações de trabalho privadas, o contrato de trabalho” (veja-se
Ana Fernanda Neves, ob. cit., p. 331 e ss.).
Nada obsta a que, no âmbito das relações de emprego público, a regra geral seja
a da “contratação” e que a “nomeação” seja a excepção, especialmente justificada
em razão da especificidade das funções públicas a exercer.
Foi neste sentido que se chegou mesmo a afirmar no acórdão n.º 4/03:
“a nossa Constituição não afirma qualquer garantia de vitalicidade do vínculo
laboral da Função Pública. Os trabalhadores da Função Pública não beneficiam de
um direito à segurança do emprego em medida diferente daquela em que tal direito
é reconhecido aos trabalhadores em geral”.
É certo que a Administração Pública está, na sua autonomia pública e privada,
sujeita a parâmetros de juridicidade que não vinculam, na mesma medida, a
generalidade dos cidadãos, na específica margem de liberdade decorrente da sua
autonomia privada (sobre esta diferença de limitações entre a autonomia pública
e privada da Administração Pública e a autonomia privada dos particulares,
veja-se, por todos, Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos
Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, p. 532 e segs.).
Todavia, uma tal diversidade estrutural não constitui, de modo nenhum, obstáculo
ou impedimento à adopção de modelos contratuais no âmbito das relações laborais
existentes no seio da Administração Pública. Pelo contrário. As específicas
limitações constitucionalmente impostas à autonomia da Administração Pública
deverão constituir garantia constitucional suficiente da justa e ponderada
realização do interesse público. E a interferência da liberdade de celebração e
de estipulação dos particulares, na determinação de tais relações – não
colidindo com as exigências nucleares da justiça, da imparcialidade, da
igualdade e da proporcionalidade –, só potencia a melhor prossecução do
interesse público, ao serviço do qual os trabalhadores da Administração Pública,
e a própria Administração Pública, exclusivamente se encontram.
8.7. Sendo esta a lógica subjacente ao regime instituído pela Lei n.º
12-A/2008, de 27 de Fevereiro, e não contrariando tal lógica qualquer preceito
ou princípio da Constituição, impõe-se a conclusão de que inexiste qualquer
violação, por parte dos artigos 10.º, 20.º, e 21.º, n.º 1, da Lei n.º 12-A/2008,
do direito à segurança no emprego (artigos 53.º e 58.º da Constituição)
resultante do exercício de funções públicas nos termos em que a Constituição as
concebe (artigos 2.º, 9.º, 81.º e 266.º a 272.º da Constituição).
B)
A questão da alteração legal da modalidade de vínculo no decurso da relação
jurídica de emprego
9. Caracterização da norma sub judicio
Tendo concluído pela admissibilidade constitucional da generalização da
modalidade de contratação na constituição da relação jurídica de emprego
público, subsiste ainda por apreciar a questão de saber se será conforme à
Constituição aplicar o novo regime jurídico aos trabalhadores anteriormente
nomeados, como, no entender do requerente, resultaria da norma constante dos
artigos 88.º, n.º 4, e 109.º. n.os 1 a 6 da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de
Fevereiro, o que teria como efeito a modificação da sua situação estatutária na
pendência da mesma.
Afirma o requerente que a aplicação do novo regime aos trabalhadores que gozam
já de um vínculo de nomeação definitiva frustra as suas legítimas expectativas e
que, assim sendo, a norma que a estabelece viola o direito à segurança no
emprego (artigos 53.º e 58.º da Constituição) bem como os princípios da
segurança jurídica e da protecção da confiança que são ínsitos ao Estado de
direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Desde logo, importa precisar que, contrariamente ao que se alega, não resulta da
norma constante do n.º 4 do artigo 88.º e 109.º. n.os 1 a 6 da Lei n.º
12-A/2008, de 27 de Fevereiro, que o regime nele instituído seja aplicável aos
trabalhadores que gozam já de um vínculo de nomeação definitiva, tendo como
consequência a perda deste último.
Com efeito, apesar de aí se prever que os actuais trabalhadores nomeados
definitivamente que exerçam funções em condições diferentes das referidas no
artigo 10.º transitam, sem outras formalidades, para a modalidade de contrato
por tempo indeterminado, também aí se fixa um regime específico aplicável a essa
categoria de indivíduos que não corresponde materialmente ao regime de
vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções
públicas estabelecido nesse mesmo diploma.
Aliás, não só não existe tal correspondência como, em rigor, se verifica uma
exclusão expressa do regime de cessação da relação jurídica de emprego público e
de mobilidade que, não fosse tal exclusão, a esses trabalhadores seria
aplicável, constante do artigo 33.º do diploma, aí se salvaguardando ser-lhes
aplicável o regime de cessação da relação jurídica de emprego público e de
reorganização de serviços e colocação de pessoal em situação de mobilidade
especial próprios da nomeação definitiva.
A isso acresce que, nos termos do n.º 2 do artigo 114.º do diploma, para que
remete o n.º 4 do artigo 109.º, os trabalhadores em questão mantêm o regime de
protecção social de que vinham beneficiando.
Não é, portanto, correcto afirmar, como se depreende da construção argumentativa
do requerente, que o diploma se aplica, exactamente nos mesmos termos, a
relações de emprego público a constituir e a relações de emprego público já
constituídas. Sendo expressamente salvaguardado que às últimas não é aplicável o
regime previsto no diploma para as relações de emprego público a constituir, as
mesmas são antes reguladas por um regime específico.
Feita essa precisão, não deixa a norma constante dos artigos 88.º, n.º 4, e
109.º. n.os 1 a 6 da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, ainda assim, de
introduzir uma alteração na posição jurídica de trabalhadores nomeados
definitivamente que exerçam funções em condições diferentes das referidas no
artigo 10.º.
Tal alteração traduz-se, essencialmente, na sujeição desses trabalhadores a um
regime de mobilidade geral e de maior flexibilidade da relação jurídica de
emprego no que respeita ao tempo, lugar e modo da prestação laboral
comparativamente àquele de que gozavam anteriormente.
Importa, por isso, verificar a conformidade de uma alteração com esse objecto e
sentido com os parâmetros constitucionais invocados pelo requerente, a saber:
(i) o direito à segurança no emprego (artigos 53.º e 58.º da Constituição); (ii)
os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança que são ínsitos
ao Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
10. O direito à segurança no emprego
10.1. Resulta da construção argumentativa do requerente que na hipótese de se
entender que o regime instituído pelo diploma, na parte relevante, não viola, só
por si, o direito à segurança no emprego, sempre se há-de entender ser tal
direito afectado, pelo menos, no que aos actuais titulares de um vínculo
definitivo diz respeito, na medida em que, por força da norma constante dos
artigos 88.º, n.º 4, e 109.º. n.os 1 a 6, os mesmos (inclusive os que exercem
funções nas condições referidas no artigo 10.º) passam a estar enquadrados num
regime laboral comparativamente mais flexível.
Como vimos anteriormente, o regime legal não compromete, de modo
constitucionalmente censurável, o direito à segurança no emprego (artigos 53.º e
58.º da Constituição) resultante do exercício de funções públicas nos termos em
que a Constituição as concebe (artigos 2.º, 9.º, 81.º e 266.º a 272.º da
Constituição), no que respeita a relações de emprego público a constituir.
Não o comprometendo quanto a essas, não se vê por que razão haveria de
concluir-se diferentemente no que respeita a relações de emprego público já
constituídas. As mesmas nada têm de específico para efeitos de, quanto a elas,
dever o direito à segurança no emprego ser mais intensamente tutelado do que é o
caso relativamente a relações jurídicas a constituir.
A especificidade das relações jurídicas já constituídas assume relevância
tão-somente da perspectiva do princípio da protecção da confiança, sendo por
referência a esse parâmetro que a conformidade constitucional do regime deve ser
apreciada.
10.2. E não se justifica, aqui, a invocação do Acórdão n.º 154/86, onde foi
decidida a inconstitucionalidade de normas que previam a extinção de uma
categoria de funcionários públicos e a sua integração em entidades externas não
integradas na Administração Pública.
Com efeito, há que salientar que a Lei n.º 12-A/2008 não possibilita o resultado
considerado inconstitucional pelo mencionado Acórdão n.º 154/86. Nos termos do
diploma, a “mobilidade interna” deve ser devidamente fundamentada (artigo 59.º,
n.º 1 e 2) e só dentro de rigorosos pressupostos permite dispensar o acordo do
trabalhador (artigo 61.º, n.º 1 e 2); por seu turno, a mobilidade “externa”, que
a lei designa como “cedência de interesse público”, supõe a concordância escrita
do trabalhador (artigo 58.º, n.º 2, da mesma lei).
Além disso, o que está em causa nas normas impugnadas pelo requerente é a
passagem do regime de nomeação definitiva para o regime de contrato por tempo
indeterminado. Ora, as regras sobre mobilidade geral, estabelecidas nos artigos
58.º e seguintes, são aplicáveis a todos os trabalhadores, independentemente da
modalidade do vínculo que os liga à função que desempenham, sendo pois, nos
termos da Lei n.º 12-A/2008, iguais para trabalhadores nomeados definitivamente
e trabalhadores com regime de contrato por tempo indeterminado.
No que à mobilidade especial diz respeito, os trabalhadores que transitem para a
modalidade de contrato por tempo indeterminado mantêm, nos termos no n.º 4 do
artigo 88.º do diploma, o regime de reorganização de serviços e colocação de
pessoal em situação de mobilidade especial próprio da nomeação definitiva.
Por último, no que concerne à cessação da relação jurídica de emprego público,
os trabalhadores que transitem para a modalidade de contrato por tempo
indeterminado mantêm, nos termos no n.º 4 do artigo 88.º do diploma, o regime
próprio da nomeação definitiva.
Assim sendo, impõe-se a conclusão de que o regime instituído pela Lei n.º
12-A/2008, de 27 de Fevereiro, não só não viola como, antes pelo contrário,
incorpora devidamente a doutrina do Acórdão n.º 154/86.
10.3. Igualmente se não justifica a invocação feita pelo requerente do acórdão
n.º 340/92, em que o Tribunal Constitucional se não pronunciou pela
inconstitucionalidade de norma que, ao proceder à extinção de um serviço
público, determinava que todo o pessoal que se encontrasse provido no seu quadro
seria automaticamente integrado no quadro de efectivos interdepartamentais da
Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, ficando a partir de
então sujeito ao regime dos excedentes definido no Decreto-Lei n.º 43/84.
Reproduzindo jurisprudência anterior, designadamente o seu acórdão n.º 285/92,
escreve-se nesse aresto o seguinte:
“[…] a necessidade de modernização da Administração Pública, decorrente do
normal alargamento da própria actividade administrativa, da progressiva
ampliação das prestações de ordem social que lhe cabem num Estado de direito
democrático e da necessidade de responder a novos desafios que se lhe colocam
nos espaços geo-políticos mais amplos em que o País se insere, podem constituir
relevantes interesses de ordem pública que, ao projectarem as suas sequelas no
âmbito do funcionamento e da estrutura da Administração Pública, determinem a
introdução de mecanismos de mobilidade dos seus funcionários e agentes, em
termos que comportem a compressão ou restrição da garantia subjectiva decorrente
do princípio da segurança no emprego. Mas, não sendo, por isso, a relação de
emprego público imodificável em todos os seus elementos, os limites de tal
compressão ou restrição não podem deixar de constituir, na sua tradução
normativa, objecto do controlo de constitucionalidade, em função da concreta
modulação das soluções adoptadas pelo Decreto em apreço.
À semelhança de causas objectivas que podem determinar a cessação dos contratos
de trabalho privados (cfr., neste sentido, v. g., o Acórdão n.º 64/91 deste
Tribunal, publicado no Diário da República, I Série-A, de 11 de Abril de 1991),
também no âmbito da Administração Pública causas objectivas ligadas à
reestruturação e racionalização dos serviços e organismos públicos podem levar à
compressão do estatuto jurídico dos funcionários públicos sem que daí resulte
forçosamente violada a segurança no emprego protegida constitucionalmente. Mas,
à luz do artigo 18.º, tal compressão deve conformar-se segundo o critério da
restrição das restrições (devendo, por isso, «limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»),
deve revestir carácter geral e abstracto, não poderá ter efeitos retroactivos
nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos
constitucionais em causa. Em suma, a compressão da garantia constitucional da
segurança no emprego deve ser necessária, adequada e proporcional e respeitar o
núcleo essencial do correspondente direito à segurança no emprego de que
beneficiam os funcionários públicos”.
Uma vez mais, e pelos fundamentos expostos a propósito do acórdão n.º 154/86,
independentemente da questão de saber se o parâmetro constitucional relevante é
o do direito à segurança no emprego ou deve antes ser o do princípio da
protecção da confiança (sobre este último, v. infra, n.º 11), ponto firme é que
a norma sub judicio não põe em causa a sua doutrina, pois o regime de mobilidade
geral e de maior flexibilidade da relação jurídica de emprego no que respeita ao
tempo, lugar e modo da prestação laboral aí estabelecido (para a sua
caracterização v., supra, n.º 9) configura justamente uma situação de
reestruturação e racionalização dos serviços e organismos públicos que, nos
termos dessa doutrina, admitem uma compressão do estatuto jurídico dos
funcionários públicos.
11. O princípio da protecção da confiança
11.1. Como correctamente afirma o requerente, a tutela constitucional da
confiança emana do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da
Constituição.
Ao apreciar a conformidade da norma sub judicio com o princípio da protecção da
confiança importa ter presente a reflectida jurisprudência do Tribunal
Constitucional sobre o tema.
No Acórdão n.º 287/90, o Tribunal estabeleceu já os limites do princípio da
protecção da confiança na ponderação da eventual inconstitucionalidade de normas
dotadas de «retroactividade inautêntica, retrospectiva».
Neste caso, à semelhança do que sucede agora, tratava-se da aplicação de uma lei
nova a factos novos havendo, todavia, um contexto anterior à ocorrência do facto
que criava, eventualmente, expectativas jurídicas. Foi neste aresto ainda que o
Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos
de «retroactividade autêntica» e o tratamento a conferir aos casos de
«retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do
princípio da protecção da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado
de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
De acordo com essa jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na
vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário
que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível,
quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os
destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes
(deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente
consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo
18.º da Constituição).
Como se disse no Acórdão n.º 188/2009 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt) os dois critérios enunciados são finalmente
reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que haja lugar à
tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar,
que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de
gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais
expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro
lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva
de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que
não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não
continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e
da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do
Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não
reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe
atribui protecção.
Por isso, disse-se ainda no Acórdão n.º 287/90 – e importa ter este dito
presente no caso – que, em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das
leis, “não há (…) um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à
manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a
factos complexos já parcialmente realizados”.
11.2. Assim articulados os limites da tutela constitucional da confiança,
importa verificar se a norma sub judicio merece censura constitucional.
Vimos já (v. supra, n.º 9) que a mesma consiste, essencialmente, na sujeição de
trabalhadores nomeados definitivamente, que exerçam funções em condições
diferentes das referidas no artigo 10.º, a um regime de mobilidade geral e de
maior flexibilidade da relação jurídica de emprego no que respeita ao tempo,
lugar e modo da prestação laboral comparativamente àquele de que gozavam
anteriormente, não lhes sendo portanto aplicáveis todas as normas do novo
regime, nomeadamente as respeitantes aos modos de cessação da relação jurídica
laboral.
Considerando os quatro requisitos que se retiram da jurisprudência do Tribunal
Constitucional para que o princípio da segurança jurídica na vertente material
da confiança seja tutelado, é, desde logo, difícil sustentar que o primeiro se
encontre cumprido, em termos de se poder afirmar que, in casu, o Estado
(mormente o legislador) teria encetado comportamentos capazes de gerar nos
privados «expectativas» de continuidade.
Com efeito, a circunstância de, em abstracto, o trabalhador ver o conteúdo da
sua posição jurídico-laboral sofrer alterações no decurso da relação jurídica de
emprego, só por si, não basta para que se possa considerar sequer existir uma
frustração de expectativas.
Para tanto seria ainda necessário demonstrar que, em concreto, a alteração em
causa vem afectar expectativas geradas em virtude do regime jurídico-laboral
existente no momento da constituição da relação jurídica de emprego.
Ora, é difícil sustentar que consubstancia uma situação de todo inesperada a
alteração na posição jurídica dos trabalhadores, consistente em sujeitá-los a um
regime de mobilidade geral e de maior flexibilidade (em relação ao que lhes era
anteriormente aplicável) quanto ao tempo, lugar e modo da prestação laboral.
Na verdade, nenhuma norma constante dos diplomas que a Lei n.º 12-A/2008 veio
revogar, respeitante à aprovação ou alteração dos quadros de pessoal dos órgãos
ou serviços a que é aplicável (artigo 116.º), garante a posição jurídica dos
trabalhadores, em termos de neles poder ter criado a expectativa de as suas
condições de trabalho - no que respeita a regras de mobilidade bem como no que
respeita ao tempo, lugar e modo da prestação laboral – serem de tal forma
rígidas que jamais seriam susceptíveis de sofrer alterações.
Basta tomar, como exemplo, entre muitos outros possíveis de entre os diplomas
revogados, o Decreto-Lei n.º 41/84, de 3 de Fevereiro, aí sendo regulado o
regime de mobilidade (artigos 19.º e seguintes) em termos tais que, longe de
poder servir de fundamento à criação de expectativas de uma situação de
imodificabilidade da posição jurídico-laboral do trabalhador titular de um
vínculo definitivo, demonstra bem a permanente sujeição do trabalhador a ver a
sua posição jurídico-laboral sofrer alterações ditadas pelo interesse público.
Aliás, bem vistas as coisas, qualquer outro entendimento seria indefensável. É
que a mobilidade dos trabalhadores da Administração Pública é matéria que, pela
sua própria natureza, tendo em conta a necessidade de uma eficiente gestão dos
recursos humanos, carece de ser testada e revista periodicamente, não sendo
razoável, por assim se comprometer de modo excessivo a prossecução do interesse
público (artigo 266.º, n.º 1, da Constituição) assim como o modelo de boa
administração que lhe é inerente, a cristalização do regime no momento da
constituição de cada relação jurídica de emprego público.
Com efeito, tal cristalização traduzir-se-ia em custos administrativos
incomportáveis em matéria de gestão de recursos humanos, pois, na hipótese de
sucessão de leis que viessem alterar o regime de mobilidade, poderia gerar-se
uma situação em que, no limite, se seria obrigado a aplicar um regime de
mobilidade diferente para cada trabalhador, em função do momento da constituição
da relação jurídico-laboral.
Além de incomportável da perspectiva de uma necessária harmonização de regimes
de mobilidade – se cada regime aplicável a cada trabalhador contivesse regras
diferentes, tal poderia levar à incompatibilidade e, portanto, neutralização de
cada regime individualmente considerado e, em agregado, de todo o sistema de
mobilidade – tal situação seria dificilmente tolerável face à exigência de
existência de regras mínimas de uniformidade de tratamento dos trabalhadores da
Administração Pública.
Por ser desrazoável admitir tal cenário, jamais pode, consequentemente,
admitir-se a criação de qualquer expectativa por parte do trabalhador de que
assim seja, pois, de outra maneira, estar-se-ia a admitir a hipótese de os
indivíduos criarem expectativas em relação a comportamentos desrazoáveis por
parte do Estado (entenda-se, do legislador).
Aliás, ainda que, por absurdo, se considerassem cumpridos todos os requisitos ou
“testes” relativos às “expectativas” dos privados, jamais, pelos fundamentos
acabados de articular, se deveria dar por verificado o quarto “teste”, relativo
à inexistência de razões de interesse público que justificassem, em ponderação,
a não continuidade do comportamento estadual.
Ora, sendo os “testes” estabelecidos para a tutela jurídico-constitucional da
confiança cumulativos, o facto de um deles se não cumprir basta para que se não
possa, com esse fundamento, julgar inconstitucional as normas sub judicio.
III
Decisão
Nestes termos, decide-se não declarar a inconstitucionalidade das normas
constantes dos artigos 10.º, 20.º, 21.º, n.º 1, 88.º, n.º 4 e 109.º, n.º 1 a 4,
da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro.
Lisboa, 20 de Abril de 2010.
Maria Lúcia Amaral
Benjamim Rodrigues
Carlos Fernandes Cadilha
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos