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Processo n.º 243/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. requereu a suspensão da execução que B. moveu a C., Limitada pendente no 9.º Juízo Cível de Lisboa com o n.º 893/A/95, invocando a interposição de recurso extraordinário de revisão da sentença exequenda.
Este requerimento foi indeferido por despacho proferido em 13 de Outubro de 1997.
O requerente interpôs recurso de agravo deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão proferido em 9 de Março de 1999, julgou-o improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Contadas as custas deste recurso, o requerente foi notificado para pagar € 17 741,77, correspondendo €. 11 848,13, a taxa de justiça, € 3 536,26 a procuradoria, e € 2 357,38 a reembolso de custas de parte
O requerente, além do mais, pediu a reforma da conta de custas, alegando a inconstitucionalidade dos artigos 13.º e 18.º, n.º 2, do CCJ.
Em 11 Março de 2010 foi proferida decisão que deferiu esta pretensão, onde se lê o seguinte:
«…No presente apenso de agravo, que tinha o valor tributário de € 23 344 408,57 decorrente do valor da execução principal, foram contadas ao requerente custas no montante total de € 17 741,77, respeitando € 11 848,13 a taxas, correspondendo € 3 536,26 a procuradoria, € 2 357,38 a custas de parte.
Este apenso, até à realização da conta, consta de 71 folhas de processado, respeitando a um recurso de agravo de um despacho interlocutório que indeferiu o pedido de suspensão da instância executiva, O despacho que deu azo ao recurso não chega a ocupar uma página (fls. 33) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa tem seis páginas manuscritas (fls. 59 e ss.).
A tramitação foi manifestamente singela e de reduzida complexidade.
Todavia, por aplicação dos critérios legais decorrentes do CCJ de 1996, que não estabelecem limite máximo para as custas, o valor contado de custas é de € 17 741,77 (fls. 72).
Este valor afigura-se, assim, desproporcionado e injustificadamente inibidor da utilização dos serviços públicos de justiça.
Para a fixação desses valores contribuiu a ausência de previsão de um limite máximo ou da possibilidade da intervenção moderadora do juiz na fixação do valor das taxas devidas pela tramitação ocorrida.
Pelo que, também aqui e subscrevendo as considerações do douto Acórdão do Tribunal Constitucional, concluímos que essa desproporção flagrante e o exagero daquela quantia viola não só o principio estruturante constitucional da proibição do excesso, como também o direito de acesso aos tribunais, previsto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
Face ao que antecede, fica prejudicado o conhecimento da reclamação na parte atinente à procuradoria.
Pelo exposto:
a) Julgo inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, da CRP, conjugado com o princípio da proibição do excesso, decorrente do artigo 2.º, da CRP, a norma que se extrai da conjugação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1, 15.º, n.º 1, alínea o), l8.º, n.º 2, e tabela anexa do CCJ, na redacção do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na parte em que dela resulta que as custas (incluindo taxas de justiça, custas dos incidentes, procuradoria e custas de parte) devidas por um processo, comportando a tramitação efectiva que este apenso tomou, ascendem ao montante global de € 17 741,77, determinado exclusivamente em função do valor da acção, sem o estabelecimento de qualquer limite máximo, e na medida em que não se permite que o tribunal reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado desse montante;
b) Ordeno se proceda à reforma da conta nos termos previstos no artigo 27.º, do CCJ, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, aplicando-se a respectiva Tabela de taxa de justiça.»
O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), para o Tribunal Constitucional, da parte da decisão que recusou a aplicação da norma resultante da conjugação dos artigos 13.º, n.º 1, 15.º n.º 1, alínea o), 18.º, n.º 2 e tabela anexa ao CCJ na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, por considerar aquela norma ferida de inconstitucionalidade material e violadora do direito de acesso aos tribunais consagrado pelo artigo 20.º da Constituição da Republica Portuguesa (CRP), conjugado com o princípio da proibição do excesso decorrente do artigo 2.º da CRP.
Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
«A norma que se extrai da conjugação do disposto nos artigos 13.º n.º 1, 15.º, n.º 1, alínea o), 18.º, n.º 2, e tabela anexa ao Código das Custas Judiciais, na versão emergente do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na parte em que dela resulta que as custas (incluindo taxas de justiça, custas dos incidentes, procuradoria e custas de parte), devidas por um processo (um apenso respeitante a um recurso de agravo de um despacho interlocutório, cujo processado consta, até à realização da conta, de 71 folhas, de natureza e tramitação simples e linear), ascendem ao montante total de €17 741,77, viola o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da CRP, conjugado com o princípio da proibição do excesso, decorrente do artigo 2º da Lei Fundamental.
Com efeito, o montante das referidas custas foi determinado, exclusivamente, em função do valor da acção, sem o estabelecimento de qualquer limite máximo, não podendo, o tribunal reduzir o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, nomeadamente, a natureza e a diminuta complexidade do processo, bem como o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão.
Termos em que deverá ser negado provimento ao presente recurso e confirmado o despacho recorrido.»
Fundamentação
A conta do recurso de agravo aqui em causa foi elaborada de acordo com o Código das Custas Judiciais (CCJ), na redacção do Decreto-Lei n.º 224-A/1996, aplicável ao processo em causa.
Conforme este Tribunal já constatou relativamente ao sistema de fixação do valor das custas em processo civil instituído por aquele diploma, apesar da complexidade processual ter alguma conexão com o valor da causa e do resultado puro do critério adoptado se encontrar atenuado por várias normas que previam a redução da taxa de justiça, em função da natureza das espécies processuais (artigo 14.º e 15.º do CCJ, na redacção do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro), da hierarquia do tribunal onde se processavam (artigo 18.º do CCJ, na redacção do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro), ou da fase em que terminavam (artigo 17.º do CCJ, na redacção do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro), o facto do valor da taxa de justiça acompanhar automática e ilimitadamente o aumento do valor da causa, permitia que se atingissem taxas de justiça de elevadíssimo montante, flagrantemente desproporcionadas relativamente ao custo do serviço prestado, não podendo as mesmas, em regra, ser aferidas com o benefício obtido, uma vez que no nosso sistema processual, em matéria de responsabilidade pelo pagamento de custas, vigora o princípio da causalidade, segundo o qual quem paga as custas é quem não obtém vencimento na causa, dela não retirando qualquer benefício.
O CCJ, na redacção do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, não previa mecanismos, como a fixação de um limite máximo para a taxa de justiça ou a possibilidade do juiz, a partir de determinado valor, reduzir o seu montante, atendendo ao grau de complexidade da causa, os quais só foram posteriormente introduzidos pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro (artigo 73.º-A e 27.º, n.º 3), que permitem evitar a cobrança de taxas desproporcionadas.
Mas a cobrança de taxas elevadas pela prestação dos serviços de justiça, não só pode determinar a sua desproporcionalidade, afrontando o princípio constitucional estruturante da proibição do excesso, como também pode pôr em risco o próprio direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos (artigo 20.º, n.º 1, da CRP).
Na verdade, quando as taxas de justiça atingem um montante de tal modo elevado que dificultem, de modo inexigível, a generalidade dos cidadãos de recorrer aos tribunais para defesa dos seus direitos, estamos perante inequívocas violações daquele direito constitucional.
Como escrevem Jorge Miranda e Rui Medeiros:
«A lei não pode (…) adoptar soluções de tal modo onerosas que na prática, impeçam o cidadão médio de aceder à justiça. Ou seja, salvaguardada a protecção jurídica para os mais carenciados, as custas não devem ser incomportáveis em face da capacidade contributiva do cidadão médio, não sendo constitucionalmente admissível a adopção de soluções em matéria de custas que, designadamente nos casos de maior incerteza sobre o resultado do processo, inibam os interessados de aceder à justiça (…).
Concretamente, se é certo que nada impede que o montante das custas seja variável, a verdade é que o estabelecimento de um sistema de custas cujo montante aumente directamente e sem limite na proporção do valor da acção coloca pelo menos, dois tipos de problemas.
Por um lado, não está excluído que, rompida a proporcionalidade entre as custas cobradas e o serviço de administração da justiça prestado, se deixe de estar perante verdadeiras taxas e se entre, pelo contrário, no domínio dos impostos.
Por outro lado, no plano estritamente material, a solução em causa pode, na prática, consubstanciar-se na imposição de um sistema de custas excessivas inaceitável em face do artigo 20.º.” (Constituição Portuguesa anotada, tomo I, p. 183, da edição de 2005, da Coimbra Editora).
E Gomes Canotilho e Vital Moreira:
«O reconhecimento do direito ao acesso ao direito e aos tribunais seria meramente teórico para muitas pessoas se não se garantisse que o direito à justiça não pode ser prejudicado por insuficiência de meios económicos (n.º 1, in fine) … Incumbe à lei assegurar a concretização desta norma, não podendo, por exemplo, o regime das custas judiciais ser de tal modo gravoso que torne insuportável o acesso aos tribunais (…).
A Constituição não determina a gratuitidade dos serviços de justiça, como sucede em termos tendenciais, com os serviços de saúde (artigo 64.º - 2/a) e o ensino básico universal (artigo 74.º - 2 /a). Mas o direito de acesso à justiça proíbe seguramente que eles sejam tão onerosos que dificultem, de forma considerável, o acesso aos tribunais.» (Constituição da República Portuguesa anotada, Volume I, da 4.ª edição, da Coimbra Editora).
E a consagração de um sistema de apoio judiciário a quem tem uma situação económica insuficiente para fazer face aos custos duma acção, através da concessão de dispensa do pagamento total ou parcial das custas, não basta para garantir o acesso aos tribunais, quando o regime de custas permite a cobrança de valores muito elevados.
Na verdade, quando estas atingem valores exagerados, não são só aqueles que não têm meios para os pagar que, se não forem dispensados de o fazer, se inibem de solicitar a intervenção do tribunal, mas também os que, apesar de disporem duma situação económica que lhes permite satisfazer tais montantes sem pôr em causa a sua sobrevivência condigna, igualmente se abstêm de recorrer ao tribunal, perante o risco de poderem ter de despender uma quantia exorbitante em custas.
Assim se conclui que o sistema de fixação das taxas de justiça do CCJ, na redacção do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, acima exposto, permitia a cobrança de taxas de justiça, cujo montante, exageradamente elevado, podia atentar contra os referidos parâmetros constitucionais da proibição do excesso e do direito de acesso aos tribunais.
Apesar de não caber a este Tribunal aferir qual o concreto patamar em que se situa o limite em que a prestação pública se desliga dos custos da respectiva actividade ou em que o cidadão fica inibido de recorrer aos tribunais, por força do valor das custas, deve, contudo, velar pelo respeito pelos referidos parâmetros constitucionais, perante o concreto valor das taxas cobrada num determinado processo, como resultado da aplicação da tabela legal, segundo o princípio do controlo da evidência.
Foi este controlo que o Tribunal Constitucional efectuou com resultados diferentes, entre outros, nos Acórdãos n.º 1182/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35.º Volume, p. 447), n.º 521/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 44.º Volume, p. 793), n.º 349/02 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 53.º Volume, p. 693), n.º 227/07 (Diário da República, II Série, de 22 de Maio de 2007) e n.º 471/07, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 70.º Volume, p. 269).
O recurso cuja tributação está aqui em causa é de agravo e foi interposto numa execução com o valor de €. 2 334 408,57, por quem não era parte nesse processo, embora nele tivesse um interesse indirecto (era sócio da executada).
Foram contadas ao recorrente custas no montante de € 17 741,77, respeitando € 11 848,13 a taxas, € 3 356,26 a procuradoria com natureza de taxa, e € 2 357,26 a reembolso de custas de parte.
Foi a seguinte a tramitação deste recurso:
- Em 29 de Outubro de 1997, o recorrente apresentou requerimento de interposição de recurso de despacho que indeferiu um requerimento por si apresentado de suspensão da instância executiva, com fundamento na pendência de recurso de revisão da sentença exequenda, solicitando que se lhe conferisse efeito suspensivo.
- O recurso foi admitido como de agravo a subir quando se mostrasse finda a fase da penhora, por despacho proferido em 10 de Novembro de 1997.
- O recorrente apresentou alegações em 9 de Dezembro de 2007.
- O exequente apresentou contra-alegações em 15 de Janeiro de 2008.
- Após audição do exequente, foi proferido em 5 de Fevereiro de 1998, despacho a fixar ao recurso efeito meramente devolutivo, tendo na mesma altura sido proferida decisão de sustentação da decisão recorrida.
- O recorrente em 28 de Maio de 1998 solicitou a subida do recurso, por ter terminado a fase da penhora.
- Em 4 de Junho de 2008 foi ordenada a subida dos autos de recurso ao Tribunal da Relação de Lisboa.
- Após solicitação de informação sobre o valor da causa, o Desembargador Relator proferiu em 15 de Setembro de 1998 despacho de admissão do recurso.
- Após vistos aos Desembargadores Adjuntos e solicitação de informações ao processo onde havia sido interposto o recurso, foi proferido Acórdão em 9 de Março de 1999, que julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida.
- O recorrente em 23 de Março de 1999 solicitou cópia dactilografada deste acórdão.
- Esta pretensão foi deferida por despacho proferido em 25 de Março de 1999.
Da análise desta descrição constata-se que estamos perante um recurso de agravo em que o Tribunal da Relação decidiu uma questão interlocutória de manifesta simplicidade, colocada por quem não era parte no processo, tendo o recurso seguido uma tramitação linear, sem quaisquer incidentes imputáveis às partes.
Assim sendo, tendo em consideração o custo de vida no momento em que o recurso foi tramitado, a contagem de taxas no valor de € 15 204,39 (€ 11 848,13 + € 3 356,26) é manifestamente desproporcionada às características do serviço público concreto prestado. Na verdade, este montante exagerado resulta apenas do elevado valor da acção, sem qualquer tradução na complexidade do processamento em causa, o qual decorreu com uma tramitação simples, não existindo qualquer correspondência entre os custos dos meios do Estado envolvidos e o valor total das taxas cobradas.
Só a ausência de previsão de um limite máximo ou da possibilidade da intervenção moderadora do juiz na fixação do valor das taxas devidas pela tramitação ocorrida permitiu que estas atingissem aquele valor manifestamente desproporcionado e injustificadamente inibidor da utilização dos serviços públicos de justiça.
Essa desproporção flagrante e o exagero daquela quantia viola não só o principio estruturante constitucional da proibição do excesso, como também o direito de acesso aos tribunais, previsto no artigo 20.º, n.º 1, da CRP, pelo que deve confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade efectuado pela decisão recorrida, julgando-se improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público.
Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da CRP, conjugado com o princípio da proibição do excesso, decorrente do artigo 2.º da CRP, a norma que se extrai da conjugação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1, 15.º, n.º 1, alínea o), 18.º, n.º 2, e tabela anexa do CCJ, na redacção do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na parte em que dela resulta que as taxas de justiça devidas por um recurso de agravo de um despacho interlocutório, interposto por quem não é parte na causa, sendo a questão de manifesta simplicidade e tendo o recurso seguido uma tramitação linear, ascendem ao montante global de € 15 204,39, determinado exclusivamente em função do valor da acção, sem o estabelecimento de qualquer limite máximo, e na medida em que não se permite que o tribunal reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado desse montante;
b) Confirmar o juízo de inconstitucionalidade feito pela decisão recorrida e, consequentemente, negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 29 de Junho de 2010. – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro –
Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos