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Processo n.º 476/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., inconformada com a decisão sumária proferida a 1 de Julho de 2010, vem dela reclamar dizendo o seguinte:
“1 - DA DECISÃO RECLAMADA
1° — Pela presente Reclamação vem a Ré/Recorrente colocar em questão a decisão sumária de fls., que decidiu não conhecer do recurso de constitucionalidade interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de Abril de 2010, invocando, sinteticamente, os seguintes argumentos: a) recurso manifestamente infundado; b) a questão da violação constitucional da interpretação conjugada dos artigos 87° do R.A.U., 57° do N.R.A.U. e 1106° do Código Civil não foi correctamente suscitada no Tribunal ‘a quo’.
2.º — Face ao teor da decisão sumária aqui proferida a fls., não pode a aqui Reclamante deixar de consignar a sua total rejeição pelo teor dos fundamentos que aí se encontram plasmados, com o que, pelos fundamentos que passará de imediato a expor, pretende que a mesma seja revogada, substituindo-a por outra que sujeite o seu recurso a competente julgamento.
II - DA EXPECTATIVA JURÍDICA
3° — O primeiro fundamento da rejeição imediata do recurso baseou-se no circunstancialismo de à aqui Reclamante não assistirem quaisquer expectativas jurídicas, ao abrigo do artigo 2° da C.R.P., atendendo a que à mesma não assistir qualquer direito à transmissão, ao abrigo do artigo 87°, n° 1, alínea f), do R.A.U., uma vez que tal transmissão já se tinha verificado a favor da tia da Ré/Recorrente.
4° — Ora, quando a este fundamento cabe dizer que, como vem sendo doutrina e jurisprudência pacificas o artigo 85° daquele diploma, designadamente o previsto na alínea f), do n° 1, do preceito, que consentia a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, a pessoas que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos e bem assim aos seus parentes e afins.
5° — Ou seja, as pessoas que habitassem o locado em economia comum, juntamente com o arrendatário, há mais de dois anos, tinham direito à transmissão do arrendamento segundo as prioridades concedidas pelo n° 3 da mesma norma. O mesmo se diga relativamente aos parentes e afins.
6.º — Não é, por isso, afastada a expectativa vigente no revogado R.A.U. de que a favor da Ré/Recorrente operava a transmissão do arrendamento a seu favor.
7° — Além desta expectativa não nos poderemos esquecer, como parece ter ocorrido na decisão sumária de fls., que as mesmas também nascem em virtude da legislação vigente.
8° — Ora, conforme temos sistematicamente repetido nos presentes autos, a Ré/Recorrente, em virtude da norma constante da alínea b) do n° 1 do art. 1106° do C.C., encontra-se numa profunda situação de desigualdade por aplicação do art. 57° do N.R.A.U..
9° — E é essa a ‘pedra de toque’ que escapou à decisão sumária de fls., dado que o legislador criou exactamente para as mesmas situações práticas, e sem que algo manifestamente o justificasse, soluções totalmente diferenciadas.
10° — Se assim não fosse, e também não nos cansamos de repetir, à Ré/Recorrente assistiria a transmissão do arrendamento em questão a seu favor.
11° — Como bem explicita Jorge Miranda ‘o sentido primário da fórmula constitucional é negativo, consiste na vedação de privilégios e descriminações.’ (in Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, pág. 120). Esses privilégios e descriminações implicam vantagens e desvantagens justificadas e fundadas. Ora, entendemos que em situações como a da Ré/Recorrente, octogenária e com mais de sessenta anos a viver em economia comum com os anteriores arrendatários, seja impossível de descriminação negativa, antes porém, face à sua condição sócio-económica e de idade deverá ser amplamente protegida pelo sistema jurídico, ao invés de pô-la na rua, sujeitando-a a ficar sem abrigo e com patentes dificuldades de obter uma outra habitação em substituição, face à sua condição sócio-económica.
12° — Razão pela qual, as normas em análise, além de materialmente inconstitucionais, nos exactos termos constantes do nosso requerimento de interposição de recurso de fls._, criaram expectativas fundadas na Ré/Recorrente de que, em circunstância de igualdade num Estado de Direito Democrático, não poderia ser despejada, sobretudo vendo outras pessoas nas mesmas condições que as suas, e que inclusivamente até não se encontram tão desfavorecidas (física e economicamente) como ela.
13° — Razões pelas quais, no nosso modesto entendimento, determinam que ‘caia por terra’ a decisão sumária de fls..
Ainda que assim não se entenda, sempre se diga que:
III - DO OBJECTO DO RECURSO
14° — Nos termos do artigo 75°-A, n° 2, da Lei do Tribunal Constitucional, as partes devem invocar, no seu requerimento de recurso, a norma ou princípio constitucional que considera violado, e ainda a peça processual onde a questão foi suscitada.
15.º — Salvo melhor entendimento em sentido contrário, não nos parece que, da parte Ré/Recorrente, não tenham sido cumpridos tais requisitos no recurso em análise. Vejamos então.
16° — Resulta expressamente do recurso de apelação interposto pela Ré/Recorrente, designadamente, nas suas páginas 10 a 13 (vide fls. a interpretação da violação constitucional quer não só do artigo 57 do N.R.A.U., mas igualmente a invocação dos princípios constitucionais violados pelo ‘surgimento’ dos novos preceitos normativos, tudo numa análise conjugada com a primitiva legislação.
17° — Resultando ainda de forma expressa, clara e inequívoca as normas constitucionais que, a manter-se o entendimento de que então se recorria, se encontravam a ser violadas.
18° — Tendo-se inclusivamente aí acrescentado a interpretação que, no modesto entendimento da Ré/Recorrente, deveria vingar.
19° — Pelo que, também por esta via não deve ser acolhida a decisão sumária de fls., segunda a qual não se encontra invocada a inconstitucionalidade da interpretação conjugada dos artigos 1106° do C.C., artigo 57° do N.R.A.U. e artigo 85° do R.A.U..
CONCLUINDO:
I — O douto Acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa é inconstitucional por violação dos artigos 2°, 13° e 18° da Constituição da República Portuguesa.
II — A Ré/Recorrente cumpriu todos os requisitos exigíveis pelo artigo 75°-A, n° 2, da Lei do Tribunal Constitucional.”
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“3. Profere-se decisão sumária ex vi artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, pelo facto de, quanto à primeira questão suscitada, o recurso se apresentar manifestamente infundado e, no que se refere à segunda, não se encontrarem preenchidos os pressupostos necessários ao conhecimento do mesmo.
Importa começar por delimitar a factualidade relevante para a apreciação dos autos: o arrendatário inicial, Eduardo Júlio Nunes, celebrou um contrato de arrendamento de um imóvel, sito em Lisboa, algures entre as décadas de 20 e 30 do século passado. Tendo o mesmo falecido em 1959, o dito contrato foi transmitido a sua irmã, Ofélia Aguieira, tia da Recorrente, que com ele habitava. A Recorrente passou a habitar no locado em 1946. Ofélia Aguieira veio a falecer em 20 de Janeiro de 2008.
4. A Recorrente invoca, por um lado, a inconstitucionalidade do artigo 57.º, n.º 1, do NRAU, face aos princípios da confiança e da igualdade. Em seu entender, assistia-lhe direito à transmissão do arrendamento à luz do regime anterior constante do artigo 85.º, n.º 1, alínea f), do RAU. Assim, na medida em que o artigo 57.º do NRAU veio limitar os casos de transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário por morte daquele a quem tenha sido transmitido o arrendamento às situações das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do mesmo preceito, ter-se-á eliminado a possibilidade de lhe ser transmitido o direito por óbito da tia. Na medida em que a vigência do regime anterior criou expectativas na Recorrente, legítimas, quanto à referida transmissão, sairia assim beliscado o princípio da confiança.
Para que se possa aferir de uma violação em concreto deste parâmetro, ínsito no princípio do Estado de direito democrático proclamado logo no artigo 2.º da Constituição, é necessário que se encontrem preenchidos alguns pressupostos essenciais que têm vindo a ser densificados pela jurisprudência constitucional. Desde logo, é necessário os cidadãos tenham expectativas quanto a determinada matéria, nomeadamente quanto à continuidade de determinado regime jurídico, e que tais expectativas derivem de comportamentos ou decisões do Estado, designadamente no exercício da função legislativa. Por outro lado, tais expectativas devem ser legítimas.
A existirem expectativas por parte da Recorrente, as mesmas não são, notoriamente, legítimas. Com efeito, do regime jurídico que a mesma invoca, e no qual pretende fundar as suas expectativas, não decorria qualquer direito a lhe ser transmitido o direito ao arrendamento por óbito da tia. O artigo 85.º, n.º 1, alínea f), do RAU, previa o direito à transmissão (isto é, a uma primeira transmissão), por morte do primitivo arrendatário ou da pessoa a quem este tivesse cedido a sua posição contratual, a favor das pessoas que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos. Ora, o direito à primeira transmissão do arrendamento, isto é, à transmissão a partir do primitivo arrendatário, havia já ocorrido a favor da tia da Recorrente, não se encontrando a mesma, portanto, abrangida pelo regime que invoca. Deste modo, nem encontramos qualquer actuação do Estado no sentido de criar expectativas de continuidade, nem quaisquer expectativas que a Recorrente eventualmente tivesse criado ao abrigo do artigo 85.º, n.º 1, alínea f), do RAU se podem ter por legítimas na medida em que carecem de qualquer fundamento. Do mesmo modo, apresenta-se desprovida de relevância a invocação do princípio da igualdade quanto a esta questão, não só porque o mesmo não actua diacronicamente mas porque, como vimos, o regime anterior não estabelecia o que a Recorrente lhe imputa.
5. No que toca à segunda questão de constitucionalidade deduzida no requerimento de recurso, impõe-se decisão de não conhecimento quanto ao respectivo objecto. Com efeito, o conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC pressupõe a verificação de diversos requisitos previstos na Constituição e na lei. Nomeadamente, o objecto destes recursos deve consistir em questões de constitucionalidade normativa que, integrando a ratio decidendi da decisão recorrida, tenham sido adequadamente suscitadas durante o processo. Ora, esta questão não foi suscitada adequadamente perante a Relação, tendo então a Recorrente limitado a dizer o seguinte: ‘[…] a situação é ainda mais injusta, quando, face à vigente norma do art. 1106º do Código Civil, o legislador voltou a permitir transmissão a favor desses descendentes, nos contratos celebrados sob a vigência do N.R.A.U..’
Como se referiu no acórdão n.º 710/2004, publicado no Diário da República, II série, de 11 de Fevereiro de 2005, o ónus de suscitação adequada da questão de constitucionalidade, nos termos previstos no artigo 72.º, n.º 2, da LTC, ‘[…] só é, em regra, de considerar preenchido quando o interessado, pelo menos, identifica a norma que reputa de inconstitucional, menciona a norma ou princípio constitucional que considera infringido e justifica, ainda que de forma sumária, mas de modo claro e preciso, as razões que, no plano constitucional, invalidam a norma e impõem a sua ‘não aplicação’ pelo tribunal da causa, ao abrigo do disposto no artigo 204º da Constituição.’ Tal não se verificou, de todo, no presente caso.”
3. Os Recorridos José Correia Baptista, Lda. e outros, notificados do teor da reclamação, não responderam.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Analisemos os fundamentos da reclamação apresentada, começando pela questão relativa ao não conhecimento. A decisão reclamada determinou a impossibilidade de conhecer a questão suscitada a propósito da interpretação conjugada dos artigos 85.º do RAU, 57.º do NRAU e 1106.º do Código Civil (na redacção introduzida pelo NRAU) pelo facto de a mesma não ter sido suscitada de modo adequado pela instância recorrida. Reage a Reclamante, afirmando, em primeiro lugar, que todos os “requisitos” elencados no artigo 75.º-A, n.º 2 da LTC foram observados. Isto em nada infirma o que foi estipulado, na medida em que tal preceito trata de requisitos do requerimento de recurso e não de requisitos propriamente ditos do recurso de constitucionalidade tentado interpor, os quais englobam a suscitação da questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, nos termos do artigo 72.º, n.º 2 da LTC. Sustenta ainda a Reclamante que especificou então a interpretação que deveria vingar. Isto não basta, no entanto, para que se possa dar por observado o ónus em apreço. Competia à Reclamante imputar, ainda que sumariamente, a inconstitucionalidade à norma questionada. Não o tendo feito, não pode a questão ser conhecida.
5. Relativamente à primeira questão suscitada e da qual se tomou conhecimento na decisão sumária, pronunciando-se esta no sentido da respectiva manifesta falta de fundamento: como resulta da decisão reclamada, o parâmetro constitucional cotejado pela Reclamante comporta vários testes, entre os quais a existência de expectativas na continuidade de determinado regime jurídico as quais hão-de ser legítimas. Ora, não podem relevar as expectativas na continuidade de determinado regime jurídico, que consubstanciam o mencionado parâmetro, as quais emergem do princípio da confiança, quando do regime jurídico em questão não resultava para a reclamante qualquer direito à transmissão ao arrendamento. O que aquele regime previa era o direito a transmissão por morte do primitivo arrendatário. Tal transmissão havia já ocorrido. O que a Reclamante pretende – direito a uma segunda transmissão – não se encontrava previsto pelo regime jurídico anterior, sendo portanto manifestamente infundada a convocação do princípio da confiança. Do mesmo modo, é infundada a convocação do princípio da igualdade não só porque o mesmo não actua de modo diacrónico mas também porque do regime anterior não resultava o conteúdo normativo que a Reclamante lhe pretende assacar.
Adianta agora a Recorrente que a violação do princípio da igualdade advém também do facto de não lhe ser aplicado o novo regime, dando assim origem a situações de desigualdade entre pessoas que, nas mesmas circunstâncias, não beneficiam de idênticos regimes no que toca ao direito à transmissão do arrendamento. Ora, a questão assim apresentada não foi suscitada durante o processo. O que a Reclamante então suscitou foi a questão da violação do princípio da igualdade pelo facto de ter sido revogada a norma constante do artigo 90.º do RAU e de o respectivo conteúdo não ter sido transposto para o novo regime.
Pelo que se conclui pela improcedência da reclamação.
III – Decisão
6. Face ao exposto, acordam, em conferência, indeferir a reclamação.
Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Outubro de 2010.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.