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Processo n.º 27/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do
artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, da
decisão sumária proferida pelo relator, na parte em que esta decidiu não
conhecer de três questões de constitucionalidade – duas de índole normativa e a
outra respeitante à própria decisão – colocadas no recurso.
2 – Fundamentando a sua reclamação discreteou, assim, o reclamante:
«A., recorrente nos autos em epígrafe, tendo sido notificada da decisão
sumária n.º 43/2010 que decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do
art. 188°, n.º 3, do Cod. de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de que o juiz de
instrução pode destruir o material coligido através de escutas telefónicas,
quando considerada não relevante, sem que antes do arguido dele tenha
conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual interesse para a sua defesa
— suscitada em 3. Do requerimento de recurso e não tomar conhecimento das demais
suscitadas, vem, respeitosamente, requerer a aclaração, nos termos da alínea a)
do nº 1 do art. 669° do Código de Processo Civil, disposição aplicável por força
do art. 69° da Lei do Tribunal Constitucional, com os seguintes fundamentos:
Na douta decisão aclaranda parte-se do principio de que a forma aparente para
a recusa de decisão, quanto à inconstitucionalidade normativa resultante da
eventual nulidade, consistente na arguida não reabertura da audiência final para
exercer o contraditório acerca de prova documental supervenientemente obtida, o
que se mostra invocado na motivação do recurso, e, diz-se, por força do disposto
em norma que não integra o objecto do recurso.
Ora, a forma idónea de pôr em causa a omissão de reabertura da audiência em
julgamento era o recurso, visto a nulidade ter sido detectada apenas com a
notificação, do acórdão final de ia instância onde vem dito, a fls. 27,
“Igualmente importantes foram os Relatórios Sociais”.
O que o recorrente fez.
Pelo que requer o esclarecimento sobre se foi encarado pelo Tribunal
Constitucional o controlo da decisão sobre a sanação da nulidade, efectuada que
foi a impugnação da decisão de 1ª Instância por recurso e aí, nos termos
referidos no requerimento de recurso, alegada a interpretação da norma.
Mais se requer quanto à alegada inconstitucionalidade da própria decisão
judicial, o esclarecimento sobre se o sentido da indicada norma que resultou da
interpretação adoptada no acórdão recorrido é, ou não, conforme à Constituição.
Tão pouco se entende qual o sentido de uma referencia ao modelo de recurso de
amparo porquanto a decisão faz um juízo de valoração da factualidade concreta.
Mas, a subsunção que supõe uma interpretação da previsão e da estatuição
normativas não implica o confronto do resultado com o disposto nas normas e
princípios constitucionais- Isto porque, salvo o devido respeito, que é muito,
parece suprimir-se o momento interpretativo que foi posto em causa pelo
recorrente, tornando-o totalmente irrelevante.
Tanto mais que as normas processuais que consagram os ónus e pressupostos
processuais hão-de ser interpretadas da forma mais favorável ao exercício do
direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva, postergando-se
interpretações formalistas do quadro normativo que sobre os mesmos disponha.
TERMOS EM QUE
SE REQUER A REFERIDA ACLARAÇÃO,
PARA UM COMPLETO ENTENDIMENTO DA DECISÃO».
3 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional respondeu
sustentando o indeferimento da reclamação, por nada haver a aclarar na decisão
reclamada.
4 – A decisão reclamada tem, na parte útil à compreensão da
reclamação, o seguinte teor:
«[…]
5 – Constituem pressupostos do recurso interposto ao abrigo do
artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, que o tribunal a quo haja aplicado, como
ratio decidendi, uma norma e que a sua inconstitucionalidade tenha sido
suscitada durante o processo.
Deste modo, para poder conhecer-se deste tipo de recurso, torna-se
necessário que a inconstitucionalidade da norma sindicanda tenha sido suscitada
durante o processo, devendo este requisito ser entendido, segundo a
jurisprudência constante deste Tribunal (veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º
352/94, in Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994), “não num
sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada
até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que
essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda
pudesse conhecer da questão”, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz
sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”, por
ser este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal
Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame,
portanto, de uma questão que o tribunal recorrido pudesse e devesse ter
apreciado (ver ainda, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, Diário da República II
Série, de 10 de Janeiro de 1995, e ainda o Acórdão n.º 155/95, in Diário da
República II Série, de 20 de Junho de 1995).
Entende-se, por isso, que não constituem já momentos processualmente
idóneos aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição de nulidades,
pedidos de aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a obtenção de
decisão com aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento ou
modificação, com base em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia ter
pronunciado (cf., entre outros, os acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário da
República II Série, de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 33º vol., p. 663; n.º 374/00, publicado no Diário da República
II Série, de 13 de Julho de 2000, BMJ 499º, p. 77, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 47º vol., p. 713; n.º 674/99, publicado no Diário da República
II Série, de 25 de Fevereiro de 2000, BMJ 492º, p. 62, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 45º vol., p. 559; n.º 155/00, publicado no Diário da República
II Série, de 9 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º
vol., p. 821, e n.º 364/00, inédito).
Por outro lado, o recurso para este Tribunal apenas pode traduzir-se
numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão
recorrida haja feito efectiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento
normativo do aí decidido.
Trata-se, neste caso, de um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e
incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra
recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso pelos vários
tribunais da constitucionalidade de normas jurídicas, bem como da natureza da
própria função jurisdicional constitucional (cf. José Manuel M. Cardoso da
Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e
actualizada, pp. 40 e segs, e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94 e n.º
560/94, publicados no Diário da República II Série, respectivamente, de 6 de
Setembro de 1994 e de 10 de Janeiro de 1995, e, ainda na mesma linha de
pensamento, o Acórdão n.º 155/95, e, aceitando os termos dos arestos acabados de
citar, o Acórdão n.º 192/2000, ambos publicados no Diário da República II Série,
respectivamente, de 20 de Junho de 1995 e de 30 de Outubro de 2000).
Por fim, importa, ainda, reter que este Tribunal, por mor das suas
particulares competências cognitivas e dos poderes que lhe estão consignados ex
constitutionis, não pode assumir-se como uma instância de amparo, não sendo,
assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou
do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta
aplicação do direito efectuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar
ao acto judicial de “aplicação” a violação (directa) dos parâmetros
jurídico-constitucionais.
Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o
mérito do julgamento efectuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do
Tribunal Constitucional não incide sobre a correcção jurídica do concreto
julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas
pela decisão recorrida.
6 – Ora, ao contrário do afirmado, a recorrente não colocou, nas
alegações de recurso do acórdão do tribunal colectivo da comarca de Macedo de
Cavaleiros, interposto para o Tribunal da Relação do Porto, a questão de
constitucionalidade concernente às “normas do artigo 370.°, n.ºs 1 e 4, do CPP,
com a aplicação correspondente do art.º 355.° do CPP, […] na interpretação
acolhida no acórdão recorrido, [...] de que, em matéria de relatórios sociais
dos arguidos podem os mesmos ser juntos ao processo e valerem em julgamento,
nomeadamente para o efeito da convicção do Tribunal mesmo que não tenham sido
produzidas ou examinadas em audiência de julgamento”, nem a relativa às “normas
constantes do art. 374.°, n.º 2, do CPP, conjugadas com o art. 355.º, n.º 1, do
CPP, […] na interpretação acolhida no acórdão recorrido, […] de que o exame
crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal pode recair
sobre provas que não foram produzidas nem examinadas em audiência de
julgamento”.
Em ponto algum das conclusões das referidas alegações se vê
formulada ou hipotizada a questão de validade constitucional destas normas
jurídicas, por violação do agora alegado artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da
Constituição da República Portuguesa.
Tais questões de inconstitucionalidade apenas são incipientemente
denotadas no requerimento de arguição de nulidade do acórdão recorrido. Todavia,
e independentemente da falta de clareza da sua formulação, já se disse que esse
momento processual não é adequado, segundo as regras do processo de fiscalização
concreta de constitucionalidade, para suscitar as questões de
constitucionalidade.
Assim sendo, não podem essas questões de constitucionalidade
considerar-se adequada e tempestivamente suscitadas.
Do mesmo passo, não pode o Tribunal Constitucional pronunciar-se
quanto à questão de constitucionalidade reportada ao artigo 29.º, n.º 5, da
Constituição. Trata-se, no caso, a verificar-se, não de uma
inconstitucionalidade normativa, mas de inconstitucionalidade da decisão
judicial, porquanto o que está em causa é o alegado desrespeito pela decisão
judicial do princípio constitucional ne bis in idem. Já, se viu, todavia, que a
eventual aplicação directa e errada de normas ou princípios constitucionais gera
uma situação de inconstitucionalidade da decisão judicial a se e não uma questão
de inconstitucionalidade normativa, não tendo o Tribunal Constitucional
competência para sindicar aquela hipotética errada aplicação.
Temos, assim, que o Tribunal Constitucional não pode conhecer, por
diferentes razões, destas questões de inconstitucionalidade.
7 – Por se considerar tratar-se de questão simples, em virtude de já
haver sido apreciada e decidida pelo Tribunal Constitucional em vários arestos
anteriores, passa a conhecer-se imediatamente, ao abrigo do disposto no n.º 1 do
artigo 78.º-A da LTC, da questão de inconstitucionalidade da norma constante do
artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação segundo
a qual é lícita a destruição da parte das escutas telefónicas recolhidas, sem
que a arguida tivesse a possibilidade de sobre elas se pronunciar quando o juiz
as considere irrelevantes para a prova do processo.
Como é sabido, o Tribunal Constitucional teve uma primeira posição
sobre a questão no sentido da inconstitucionalidade, posição essa sempre tomada
em Secção e com votos de vencido (Acórdãos n.º 660/2006, 450/2007 e 451/2007,
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Esta posição veio, todavia, a ser abandonada pelo Acórdão n.º
70/2008, tirado em Plenário, disponível em www.tribunalconstitucional.pt., tendo
o aqui relator integrado a maioria que fez vencimento.
Esta posição veio a ser reiterada em todos os Acórdãos posteriores
que conheceram da matéria (cf. Acórdãos n.ºs 128/2008, 204/2008, 205/2008,
340/2008, 378/2008 e 477/2008).
É esta doutrina que aqui se acolhe, dando por reproduzida a
fundamentação em que a mesma se abona constante do referido Acórdão n.º 70/2008.
7 – Destarte, atento tudo o exposto o Tribunal Constitucional
decide:
a) Não tomar conhecimento do recurso das questões de
constitucionalidade relativas às “normas constantes dos artigos 370.°, n.ºs 1 e
4, do CPP, com a aplicação correspondente do art.º 355.° do CPP” e das “normas
constantes do art. 374.°, n.º 2, do CPP, conjugadas com o art.º 355.º, n.º 1, do
CPP”, bem como da relativa à decisão, esta por alegada violação do artigo 29.º,
n.º 5 da Constituição da República Portuguesa;
b) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 188º, n.°
3, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto, quando interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode destruir
o material coligido através de escutas telefónicas, quando considerado não
relevante, sem que antes o arguido dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se
sobre o eventual interesse para a sua defesa;
c) Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 7
UCs».
B – Fundamentação
5 – Como resulta da argumentação esteante da reclamação, a
reclamante não coloca qualquer questão de inteligibilidade do discurso
fundamentador da decisão reclamada, porquanto não aponta qualquer obscuridade ou
ambiguidade da fundamentação que careça de ser esclarecida.
A reclamante limita-se a afirmar a sua discordância com o decidido
quanto ao não conhecimento das questões recortadas na decisão sumária, com base,
aliás, numa concepção de existência de algum paralelismo, que não se ajusta ao
sistema, entre o recurso de constitucionalidade e os recursos de instância, bem
como dos poderes de conhecimento do Tribunal Constitucional relativamente aos
demais tribunais.
Ora, este aspecto foge ao âmbito legal do instrumento da reclamação
admitido no n.º 3 do artigo 78.º -A da LTC.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação e condenar a reclamante nas custas, fixando a taxa
de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 14/04/2010
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos