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Processo n.º 1206/2007
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. O Banco A., S.A. reclamou créditos em execução fiscal promovida pelo Serviço
de Finanças de Olhão, em que é executada B. e exequente a Fazenda Nacional, com
fundamento na titularidade de um crédito com garantia real.
Por ocasião da realização da venda do imóvel sobre que recaía a garantia, a
Fazenda Pública não notificou o credor reclamante com garantia real para o
efeito de, depois de frustrada a venda judicial através de propostas em carta
fechada devido à inexistência de propostas, este se pronunciar sobre a
modalidade de venda por negociação particular bem como sobre o preço base.
Assim, do despacho do Chefe do Serviço Local de Finanças de Olhão que determinou
que se procedesse à venda desse imóvel por negociação particular (após a venda
do imóvel por propostas em carta fechada não ter sido conseguida, por nenhuma
proposta ter sido formulada), apresentou o Banco A., S.A. reclamação, pedindo a
anulação do processado, incluindo a venda deste modo efectuada.
2. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé julgou a reclamação
improcedente. Fê-lo nos seguintes termos:
Importa apreciar e resolver as seguintes questões:
(.)
1ª Caso a venda efectuada numa execução fiscal por meio de propostas em carta
fechada fique deserta, tem o órgão de execução fiscal que notificar o credor
reclamante para se pronunciar sobre a subsequente modalidade de venda-
(.)
Vejamos em seguida a primeira das enunciadas questões.
Como sabemos, por princípio «a venda será feita por meio de propostas em carta
fechada, pelo valor base que for mencionado nas citações, editais e anúncios a
que se refere a presente secção» (art.° 248.º do Código de Procedimento e de
Processo Tributário).
Casos há, no entanto, em que outra pode ser a modalidade da venda, avultando,
inter alia, o previsto no art.° 252.° do Código de Procedimento e de Processo
Tributário, o qual, na parte relevante, nos diz o seguinte:
«1. A venda por uma das modalidades extrajudiciais previstas no Código de
Processo Civil só se efectuará nos seguintes casos:
a) Quando a modalidade de venda for a de propostas em carta fechada e no dia
designado para a abertura de propostas se verificar a inexistência de
proponentes ou a existência apenas de propostas de valor inferior ao valor base
anunciado;
(…)»
Nos normativos referidos (nem de quaisquer outros do Código de Procedimento e de
Processo Tributário) não se vê rasto da alegada necessidade do credor reclamante
ser ouvido sobre a modalidade da venda no caso de se frustrar a venda por meio
de propostas em carta fechada Mas também se não pode ignorar que o processo
civil é subsidiário do processo tributário e, por isso, em caso de lacuna deverá
a mesma ser preenchida com o recurso ao mesmo, nos termos regulados pelo art.°
2.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Daí que se compreenda a
pretensão dos Reclamantes em recorrer aos termos da lei processual civil para
tentar levar a água aos seus moinhos e por isso importa fazer um excurso sobre o
que nos reserva esse regime legal.
Com relevo encontra-se o art.° 886.°-A do Código de Processo Civil, que nos diz
o seguinte:
«1. Quando a lei não disponha diversamente, a decisão sobre a venda cabe ao
agente de execução, ouvidos o exequente, o executado e os credores com garantia
sobre os bens a vender.
2. A decisão tem como objecto:
a) A modalidade da venda, relativamente a todos ou a cada categoria de bens
penhorados, nos termos da alínea e) do artigo 904.º da alínea b) do n.° 1 do
artigo 906.° e do n.° 3 do artigo 907.°;
(…)
4. A decisão é notificada ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes
de créditos com garantia sobre os bens a vender.
5. Se o executado, o exequente ou um credor reclamante discordar da decisão,
cabe ao juiz decidir; da decisão deste não há recurso.»
Ainda com aparente relevo constata-se que do art.° 904.° do mesmo Código de
Processo Civil consta o que segue:
«A venda é feita por negociação particular.
(...)
d) Quando se frustre a venda por propostas em carta fechada, por falta de
proponentes, não aceitação das propostas ou falta de depósito do preço pelo
proponente aceite;
(...).»
Assim sendo as coisas, o regime previsto no Código de Procedimento e de Processo
Tributário para o caso de a venda por propostas em carta fechada ficar deserta é
similar ao que o Código de Processo Civil prevê. A questão poderia ser diversa
apenas se estivesse em causa a necessidade do órgão da execução fiscal ouvir o
executado e o credor reclamante na execução fiscal previamente à sua decisão de
escolha da modalidade da venda mas essa, como vimos, não é a que aqui se coloca.
Mas ainda que fosse, sempre a solução a encontrar deveria ser diversa da
propugnada pelos Reclamantes, como de resto se acentuou no recente Acórdão do
Supremo Tribunal Administrativo, prolatado no dia 28-03-2007 (.)
Neste acórdão, o STA decidira que o legislador preceituara integral e
imperativamente no CPPT o regime da venda no processo de execução fiscal,
excluindo, ao contrário do que acontece na execução comum, a audição do credor
com garantia sobre a modalidade da venda (e consequente notificação da decisão
do agente de execução). Daqui decorreria a necessária aceitação, por parte do
dito credor e no caso de negociação particular, do comprador ou do preço
proposto pelo exequente, justificando-se tal interpretação atendendo à natureza
e características da execução fiscal. Estando nela em causa a cobrança de
receitas tributárias que visam “a satisfação das necessidades financeiras do
Estado e de outras entidades públicas” e a promoção da justiça social, da
igualdade de oportunidades e das necessárias correcções das desigualdades na
distribuição da riqueza e do rendimento – artigo 5.º, n.º 1 da Lei Geral
Tributária –, a execução fiscal caracterizar-se-ia pela sua celeridade.
3. Da decisão do TAF de Loulé veio o Banco A., S.A. interpor o presente recurso
de constitucionalidade sobre o qual, inicialmente, recaiu um despacho de
indeferimento por falta de preenchimento de pressupostos processuais, mas que,
após reclamação deferida pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º
464/2007, veio a ser admitido pelo Tribunal a quo.
A norma que delimita o objecto do recurso de constitucionalidade é a que resulta
das disposições conjugadas da alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º e n.º 3 do artigo
252.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e dos artigos 201.º,
904.º e alínea c), do n.º 1 do artigo 909.º do Código de Processo Civil, quando
interpretada “no sentido de dispensar a audição dos credores providos com
garantia real nas fases de venda ordenada pelos Serviços de Finanças e,
fundamentalmente, quando é ordenada a venda por negociação particular e feita a
adjudicação consequente”.
No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade o recorrente
alega que a norma viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da
CRP, pois entende não ser aceitável que, num Estado de Direito, o legislador
consagre, expressamente, a protecção dos direitos dos credores reclamantes
providos de garantia real para aplicação na jurisdição comum e omita esses
mesmos direitos no âmbito de uma execução fiscal.
A esse fundamento, vem o recorrente, nas alegações apresentadas, acrescentar o
da violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2), do princípio
do acesso à justiça (artigo 20.º, n.º 4) e do direito de propriedade privada
(artigo 62.º, n.º 1), assim pretendendo reforçar o entendimento de que, mesmo
considerando-se as características particulares da execução fiscal, ainda assim
não se justifica que aí seja dispensada a audição prévia dos credores
reclamantes providos de garantia real para efeitos de escolha da modalidade de
venda e de fixação do preço base.
4. Relativamente ao princípio da igualdade, afirma o recorrente que a opção do
legislador de não consagrar, expressamente, para o processo de execução fiscal,
a solução do processo de execução comum, se apresenta in casu , e numa
perspectiva jurídico-constitucional, intolerável ou inadmissível, por se não
poder encontrar para ela fundamento material bastante. A diferença entre o
regime da execução fiscal e o regime da execução comum não é materialmente
sustentada em critérios objectivos, constitucionalmente relevantes, e que
permitam tratar de forma desigual a tramitação da execução fiscal, sendo para
tanto insuficiente a justificação assente na necessidade de celeridade da
execução fiscal e no interesse público da cobrança de impostos. Além disso, diz,
é violado o princípio da igualdade porque, quando detém a posição processual de
credor reclamante em execução comum e na liquidação do activo em processo de
insolvência, a Fazenda Nacional é sempre ouvida enquanto credor com garantia
sobre os bens a vender nesses processos.
5. No que respeita ao princípio da proporcionalidade, o recorrente reconhece
que a execução fiscal, dado o seu fim de arrecadação coerciva de dívidas ao
Estado ou entidades equiparadas, tende a caracterizar-se por uma pretendida
celeridade, o que revela ter este princípio geral uma notável premência nessa
forma de processo. Simplesmente, considera que não existe qualquer justificação
para aí dispensar a audição prévia dos credores reclamantes providos de garantia
real. São três os argumentos utilizados. Em primeiro lugar, o recorrente
considera que o argumento da celeridade prova demais, na medida em que também na
execução comum é relevante a celeridade, sendo que aí não é legítimo que a
Fazenda Nacional deixe de ser ouvida quando reclama os seus créditos em execução
pendente no Tribunal Comum. Além disso, afirma que não se vislumbra de que modo
é que a audição dos credores vai atrasar a execução fiscal, sendo certo que
basta uma notificação aos credores reclamantes feita nos termos previstos no
CPPT (o que vale por dizer que na grande maioria das situações se trata de
notificações feitas aos mandatários forenses dos referidos credores). Por
último, entende o recorrente não valer o argumento segundo o qual o fim da
execução fiscal é o de garantir a não preterição dos créditos do Estado, porque
os credores reclamantes com garantia real têm em muitas e variadas situações
direito a serem pagos, prioritariamente, aos créditos do Estado.
6. Relativamente ao direito de propriedade privada consagrado no n.º 1 do
artigo 62.º da CRP, entende o recorrente que o mesmo se estende ao direito do
credor à satisfação do seu crédito e que tal direito é violado pela dispensa de
audição prévia. O facto de o credor com garantia real poder ser confrontado com
uma modalidade de venda e preço que desconhecia e que por esse facto é colocado
na situação de credor preterido por uma decisão arbitrária de um agente
administrativo é, desde logo, razão bastante para considerar infundado,
ilegítimo e inconstitucional o regime do CPPT em relação ao CPC. Porque assim se
coloca o credor provido de garantia real na situação de ver total ou
parcialmente frustrada a possibilidade de satisfação do seu crédito sobre o seu
devedor que até lhe prestou uma garantia, a dispensa de audição prévia é
excessiva, abrindo a porta a tudo quanto é possível imaginar no seio do mercado
imobiliário, incluindo a venda dos bens por menos de metade do seu valor de
mercado (como terá ocorrido no caso dos autos).
7. Já o direito de acesso aos tribunais surge violado pela circunstância de
entre a frustração da venda por propostas em carta fechada e a consumação da
venda por negociação particular vigorar a arcana praxis da Administração Fiscal,
o que tem como efeito que o credor reclamante desconhece o momento temporalmente
adequado para intervir na venda do bem, assim ficando privado de desencadear
qualquer actuação processual tendente a acompanhar a venda e, consequentemente,
de defender a efectivação da garantia patrimonial do seu crédito. Por via do
secretismo da actuação da Administração Fiscal e em face da dispensa de
notificação, o credor reclamante com garantia real vê ser-lhe negado o direito
ao contraditório e a um processo justo e equitativo.
Os recorridos não apresentaram contra-alegações.
II
Fundamentos
8. Nos processos de execução fiscal, a execução não pode prosseguir se não forem
citados os credores que detenham garantias reais relativamente aos bens
penhorados. É o que determina o Código de Procedimento e de Processo Tributário,
que confere ainda, aos referidos credores, um prazo de 15 dias após a citação
para que possam reclamar os seus créditos (artigos 239.º e 240.º do CPPT).
Em regra geral, e neste tipo de processos, a venda de bens penhorados faz-se
por meio de propostas em carta fechada, conforme dispõe o artigo 248.º do CPPT.
A disposição, introduzida por redacção da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, veio
pôr termo ao regime anteriormente vigente, nos termos do qual se admitia, neste
tipo de processos, a venda por arrematação em hasta pública, sempre que o órgão
de execução fiscal, em despacho fundamentado, sustentasse a manifesta vantagem
da adopção dessa modalidade de venda, tendo em conta a natureza dos bens a
penhorar e uma vez assegurada a transparência da operação.
Com esta mudança de regime, efectuada em 2001, terá querido o legislador
ordinário dificultar o conluio entre potenciais compradores que o processo de
venda em hasta pública sempre possibilitaria. Semelhante intenção, manifestada
na reforma do processo de execução comum (que veio a proibir, também, a adopção
dessa modalidade de venda: veja-se o preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12
de Dezembro), justificar-se-ia, por maioria de razão, em processo de execução
fiscal, que, prosseguindo o interesse público da cobrança de impostos, não pode
deixar de ser ordenado de modo a garantir a transparência de todas as operações.
Ao impor, como regra geral, a venda feita por meio de propostas em carta
fechada, pretendeu portanto o legislador assegurar que, neste tipo de processo,
as acções de venda se realizassem num contexto inquestionável de “regularidade”.
A regra tem, no entanto, excepções. De acordo com o artigo 248.º do CPPT, a
venda é feita desse modo [por meio de propostas em carta fechada] “salvo quando
diversamente se disponha na presente lei”. A disposição diversa é a que consta
do artigo 252.º, que determina que a venda se faça por outra das modalidades
previstas no Código de Processo Civil quando “no dia designado para a abertura
de propostas se verificar a inexistência de proponentes ou a existência de
propostas de valor inferior ao valor de base anunciado”.
Foi precisamente a inexistência de propostas o que ocorreu no caso em juízo.
As outras modalidades a que se refere o artigo 252.º [do CPPT] são as que
constam do artigo 886.º do Código de Processo Civil: venda em bolsa de capitais
ou mercadorias; venda directa a pessoas ou entidades; venda por negociação
particular; venda em estabelecimento de leilões; venda em depósito público ou
equiparado; venda em leilão electrónico. No caso, a Administração Fiscal decidiu
escolher a modalidade da venda por negociação particular.
Nos termos do regime de execução comum, os credores reclamantes de créditos com
garantia sobre os bens a vender são sempre ouvidos quanto à escolha da
modalidade da venda e quanto à fixação do valor base dos bens. É o que decorre
do artigo 886.º-A do CPC, que determina que a decisão – que inclui tanto a
escolha da modalidade da venda, quanto a fixação do preço dos bens, quanto a
eventual formação de lotes – seja notificada pelo agente de execução aos
credores reclamantes, que dela podem discordar. Se tal suceder, o juiz decidirá,
sem recurso: n.º 7 do artigo 886º-A do CPC.
Como já se viu, entende a decisão recorrida que em processo de execução fiscal
se não deve aplicar esta regra, pelo que a venda dos bens penhorados se
efectuará sem a notificação dos credores reclamantes, que assim não poderão
discordar da decisão tomada, nem quanto à modalidade da venda, nem quanto ao
preço base atribuído pela Administração Fiscal aos bens a vender. Isto, apesar
de o Código de Procedimento e de Processo Tributário determinar, no seu artigo
2.º, que, “de acordo com a natureza dos casos omissos”, são de aplicação
supletiva ao procedimento e ao processo judicial tributário as normas do Código
de Processo Civil. Como também já se sabe, as razões para este entendimento
fundam-se nas exigências próprias do processo fiscal, nomeadamente nas
exigências de celeridade. Considera portanto a decisão recorrida que, por causa
destas exigências próprias, a “natureza” da questão a decidir impedirá aqui a
aplicação subsidiária do regime do CPC.
9. Deve começar por dizer-se que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar
se a decisão recorrida interpretou correctamente o direito infra-constitucional.
Na verdade, não lhe cabe censurar a correcção do juízo hermenêutico desenvolvido
pelo tribunal a quo e, nomeadamente, se, como defende o recorrente, decorre do
disposto nos artigos 2.º e 252.º do CPPT que o CPC é subsidiariamente aplicável
à notificação dos actos relevantes na execução fiscal como seja a venda qualquer
que seja a modalidade adoptada.
Sob apreciação está única e exclusivamente a norma que resulta das disposições
conjugadas da alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º e n.º 3 do artigo 252.º do CPPT e
dos artigos 201.º, 904.º e alínea c), do n.º 1 do artigo 909.º do CPC, quando
interpretada “no sentido de dispensar a audição dos credores providos com
garantia real nas fases de venda ordenada pelos Serviços de Finanças e,
fundamentalmente, quando é ordenada a venda por negociação particular e feita a
adjudicação consequente”.
Na interpretação do recorrente tal norma seria inconstitucional por violação do
princípio da igualdade, do princípio da proporcionalidade, do direito de
propriedade privada e do direito a um processo justo e equitativo.
Vejamos, pois.
10. Sustenta o recorrente que a opção do legislador de não consagrar,
expressamente, para o processo de execução fiscal, a solução do processo de
execução comum, lesa antes do mais o princípio da igualdade, consagrado no
artigo 13.º da CRP.
Alega-se essencialmente que tal opção se apresenta, in casu e numa perspectiva
jurídico-constitucional, como uma solução intolerável ou inadmissível, por se
não encontrar para ela fundamento material bastante. Ao ser “apenas” justificada
a partir da necessidade de celeridade da execução fiscal e no interesse público
da cobrança de impostos, a diferença, quanto ao ponto agora relevante, entre o
regime da execução fiscal e o regime da execução comum não será (no entender do
recorrente) materialmente sustentada em critérios objectivos, que permitam
tratar de forma desigual a tramitação da execução fiscal; além disso, diz-se, é
violado o princípio da igualdade porque, quando detém a posição processual de
credor reclamante em execução comum e na liquidação do activo em processo de
insolvência, a Fazenda Nacional é sempre ouvida enquanto credor com garantia
sobre os bens a vender nesses processos.
Não tem razão o recorrente. É que a justificação da dispensa de audição prévia
do credor reclamante com garantia real com base na necessidade de celeridade da
execução fiscal e no interesse público de cobrança de impostos consubstancia
objectivamente fundamento material bastante para efeitos de uma distinção de
regimes, não cabendo ao Tribunal substituir-se ao legislador na avaliação da
razoabilidade dessa distinção sobre ela formulando um juízo positivo, como se
estivesse no lugar deste e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a
solução razoável, justa e oportuna (cf. Acórdão da Comissão Constitucional n.º
458, de 25 de Novembro de 1982, in Apêndice ao Diário da República, de 23 de
Agosto de 1983). O controlo do Tribunal é antes de carácter negativo,
cumprindo-lhe tão-somente verificar se a solução legislativa se apresenta em
absoluto intolerável ou inadmissível, de uma perspectiva
jurídico-constitucional, por para ela se não encontrar qualquer fundamento
inteligível. Como foi salientado, entre muitos outros, nos Acórdãos n.ºs 186/90,
187/90 e 188/90 (qualquer deles disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “o
princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade
legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a
adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja,
desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento
razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional.
Numa perspectiva sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio
vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio
(Willkürverbot)”.
No que especificamente respeita à razoabilidade de diferenciação de regimes com
base na relevância do interesse público subjacente à eficiência do sistema
fiscal, ainda que versando norma diferente da dos autos, decidiu o Tribunal
Constitucional, no Acórdão n.º 345/2006, que:
[…] atento o interesse público subjacente à actividade da cobrança dos impostos,
cuja eficiência é essencial para o regular funcionamento dos serviços públicos,
vocacionados à satisfação de necessidades colectivas, não surge como inadequada,
irracional ou desajustada a solução de só consentir a sustação da execução
fiscal perante um despacho judicial que ou determine o prosseguimento do
processo de recuperação da empresa executada ou decrete a sua falência, não
deixando o normal andamento da execução fiscal inteiramente dependente do mero
requerimento por um credor desse tipo de processos, sem prévio controlo
judicial, por mais perfunctório que seja, da sustentabilidade desse
requerimento.
A não aplicabilidade do regime do artigo 870.º do CPC ao processo de execução
fiscal explica-se, assim, pelo interesse público ínsito na cobrança de créditos
através do processo de execução fiscal, que recomenda que não se coloque na
disponibilidade das partes, independentemente de qualquer intervenção judicial,
a possibilidade de suspensão do processo, que tem como corolário um prejuízo
para aqueles interesses.
A razoabilidade de diferenciação de regimes com base na relevância do interesse
público subjacente à eficiência do sistema fiscal, revelado quer em normas de
natureza substantiva, quer de índole adjectiva, tem sido reiteradamente
salientada por este Tribunal. Assim, no Acórdão n.º 153/2002, que não julgou
inconstitucional a norma da primeira parte do n.º 1 do artigo 736.º do Código
Civil, que outorga ao Estado um privilégio mobiliário geral, para garantia de
créditos fiscais provenientes de IVA e respectivos juros compensatórios,
considerou-se não ser “arbitrária, irrazoável ou infundada – e, como tal,
violadora do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição –
a consagração de tal privilégio a favor do Estado”, pois se trata “de uma medida
legislativa justificável atentas as múltiplas funções do Estado – económicas,
sociais e culturais –, funções estas que exigem uma cobrança, rápida e segura,
das receitas provenientes das contribuições e impostos para cobrir as despesas
públicas com aumento constante”, que “atentas as finalidades subjacentes ao
sistema fiscal”, torna “justificável a quebra da regra da par conditio
creditorum, a que a norma ora em causa procede”. Ou nos Acórdãos n.ºs 302/97,
303/97, 213/98, 251/98 e 355/98, que não julgaram inconstitucional a norma do
artigo 35.º, n.º 1, do Código de Processo Tributário, que estabelecera um prazo
prescricional de 5 anos para as contra-ordenações fiscais, superior ao do regime
geral, consignando-se que a aludida diferenciação de prazos não “encerra uma
desigualdade de tratamento arbitrária, sem fundamento razoável ou material
bastante dos arguidos em processos de contra-ordenação fiscal em comparação com
os arguidos em outros processos de contra-ordenação”, considerando-se, além do
mais, que “a relevância das funções cometidas pela Lei Fundamental ao «sistema
fiscal» (artigos 106.º e 107.º da Constituição da República Portuguesa)
constituirá suporte material bastante para legitimar o estabelecimento de um
regime especial de prescrição do procedimento contra-ordenacional fiscal menos
favorável aos infractores, dificultando e desincentivando a fuga ao cumprimento
dos deveres fiscais – essenciais à satisfação das necessidades financeiras do
Estado e demais entidades públicas e à realização de relevantes objectivos de
justiça social”.
Idênticos valores justificam que, no presente caso, se considere não arbitrário
que, para a sustação da execução fiscal, o legislador tenha considerado
insuficiente a mera apresentação por um qualquer credor de requerimento de
processo de recuperação de empresa ou de declaração de falência, exigindo, para
que tal sustação tenha lugar, uma intervenção judicial no sentido do
prosseguimento daquele processo ou do decretamento da falência.
No sentido da razoabilidade da solução legislativa em causa ainda se poderá
invocar a diferença de consistência das diversas categorias de crédito em causa:
enquanto nos processos comuns (de execução e de falência), os créditos dos
credores comuns ainda demandam, em regra, uma actividade de reconhecimento
judicial ou da assembleia de credores, já os créditos do Estado, advindos de
impostos ou de contribuições para a Segurança Social, têm-se, à partida, por
definitivos, certos e exigíveis com o acto de liquidação, que tem a natureza de
um título formal, de fonte legal, de reconhecimento da existência dos créditos,
sem prejuízo, obviamente, de superveniência de anulação judicial perante
impugnação da liquidação. Sendo assim, compreende-se que, quando estejam em
causa créditos dependentes de reconhecimento, a sustação da execução apenas
ocorra após prolação de despacho judicial de prosseguimento da acção de
recuperação da empresa ou de decretação da falência.
Não ocorre, pois, a alegada violação das normas e princípios constitucionais
invocados pela recorrente.
Também a dispensa, em processo de execução fiscal, ao contrário do que sucede em
processo de execução comum, de audição prévia do credor reclamante com garantia
real não é materialmente infundada, irrazoável ou arbitrária, ficando a
satisfação do crédito do credor reclamante com garantia real dependente de
factores aleatórios, como seja o de ser um particular ou a Fazenda Pública a
promover a execução.
E não o é, desde logo, pelo simples facto de que, em execução fiscal, quem
conduz o processo é a Fazenda Pública, a quem a lei reconhece competência para
avaliação patrimonial com base em critérios legalmente determinados. Ao
contrário do que sucede em processo de execução comum, que corre os seus termos
num tribunal e é conduzido por um solicitador de execução nomeado pelo tribunal,
e em que, portanto, a contribuição de terceiros, designadamente, de credores
reclamantes com garantia real, pode revelar-se de extrema utilidade para efeitos
de avaliação do bem objecto de venda, o processo de execução fiscal corre na
repartição de finanças do executado, sendo o valor base para venda, tratando-se
de imóveis, inscritos ou omissos na matriz, fixado pelo órgão da execução
fiscal, podendo a fixação ser precedida de parecer técnico do presidente da
comissão de avaliação ou de um perito avaliador designado nos termos da lei [tal
é, nos termos da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 250.º do CPPT, o regime
vigente à data da execução fiscal em causa e anterior às alterações introduzidas
pela Lei n.º 53.º-A/2006, de 29 de Dezembro].
Tudo isto permite concluir que não seja desrazoável, ou arbitrário, presumir a
capacidade técnica ou a idoneidade da Administração Fiscal para proceder ela
própria à avaliação de um bem, tanto mais que se lhe reconhece essa competência
para efeitos de cálculo do imposto devido pelo contribuinte (pelo menos nas
situações em que o valor do imposto está directamente relacionado com o valor do
bem sobre que incide o imposto). Nestes termos, não tem razão o recorrente,
quando entende que a inconstitucionalidade do regime sob juízo se funda, desde
logo, na violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.
Resta saber se o juízo de inconstitucionalidade se não poderá fundar na lesão de
outras normas ou princípios constitucionais.
11. O Tribunal tem sempre dito, em jurisprudência firme, que o direito de
propriedade a que se refere o artigo 62.º da Constituição “não abrange apenas a
proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a
propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são
incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os
direitos de crédito e os «direitos sociais» (Vejam-se, entre muitos outros, os
Acórdãos n.ºs 491/02, 273/04 e 620/04, todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
Significa isto que, não havendo coincidência entre o conceito constitucional de
propriedade e o correspondente conceito civilístico, e incluindo-se no âmbito de
protecção da norma contida no n.º 1 do artigo 62.º da CRP situações patrimoniais
outras que não apenas as respeitantes à propriedade das coisas e aos direitos
reais menores, alguma tutela reservará a garantia constitucional da propriedade
aos chamados direitos de crédito.
O conteúdo concreto que, nos diferentes momentos históricos, adquirem estes
direitos é no entanto conformado pela lei ordinária e não pela Constituição.
Assim, e como o Tribunal tem esclarecido em jurisprudência também ela constante
– vejam-se, entre outros, os Acórdãos n.ºs 340/91, 494/94, 516/94, para além dos
já citados Acórdãos n.ºs 273/04 e 620/04 –, no âmbito de protecção da norma
constitucional relativa à garantia do património privado não se contém o direito
de crédito em si mesmo considerado, mas tão somente o direito do credor à
satisfação do seu crédito, direito esse que se traduz na possibilidade de
exigir, em caso de inadimplência, a realização coactiva do crédito à custa do
património do devedor.
12. Por imperativo constitucional que decorre, desde logo, do princípio do
Estado de direito, está o legislador ordinário vinculado a conformar os
processos de execução comum e de execução fiscal de modo tal que, através de
ambos, se atinjam os fins de realização do Direito e de efectiva garantia de
exercício dos direitos. É certo que os dois tipos de processo (de execução comum
e de execução fiscal) se distinguem entre si por assinaláveis diferenças de
natureza (cfr. supra, ponto 10). Como se disse no Acórdão n.º 263/02, “[n]ão se
vislumbrando qualquer composição de interesses no acto de instauração da
execução pelos serviços da administração fiscal, não pode naturalmente
aceitar-se a sua natureza materialmente jurisdicional”, pelo que o processo de
execução fiscal envolverá “uma actividade que se enquadra ainda no exercício da
função tributária” assumindo por isso fundamentalmente um carácter
administrativo, “sem deixar de se reconhecer que esse processo comporta, em todo
o caso, momentos claramente jurisdicionais.” (Diário da República, II.ª Série,
n.º 262, 13/11/2002, p. 18789). Contudo, e não obstante estas assinaláveis
diferenças de natureza – que explicam que o processo de execução fiscal não
possa ser considerado um processo judicial “puro” –, o que é claro é que através
da conformação deste último, tal como através da conformação do processo de
execução comum, estará sempre o legislador ordinário vinculado a adoptar
procedimentos justos e adequados de acesso ao Direito e de realização do
Direito: quanto mais não seja, e independentemente da natureza de que se revista
o concreto procedimento em causa, tal vinculação decorrerá inquestionavelmente
do princípio consagrado no artigo 2º da CRP.
Ora, sendo a realização do Direito determinada pela conformação jurídica dos
processos e dos procedimentos, tal conformação corresponderá a um dever do
legislador, que terá que ser cumprido – ainda de acordo com os imperativos
constitucionais inscritos no artigo 2º - com observância das exigências
decorrentes quer do princípio da proibição do excesso quer do princípio da
proibição do “deficit” ou da insuficiência.
Com efeito, e como o Tribunal tem sempre dito (vejam-se a este propósito os
Acórdãos nºs 205/2000 e 491/2002), o princípio da proporcionalidade ou da
proibição do excesso, enquanto princípio vinculativo das acções de todos os
poderes públicos, decorre antes do mais das próprias exigências do Estado de
direito a que se refere o artigo 2.º da Constituição, por ser consequência dos
valores de segurança nele inscritos. Como se sabe, o que através dele se
pretende é evitar cargas coactivas excessivas ou ingerências desmedidas na
esfera jurídica dos particulares (assim mesmo, J.J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7.ª ed., pp. 273).
No entanto, tal como do princípio do Estado de direito decorre o imperativo
constitucional de proibição do excesso, também do mesmo princípio decorre a
proibição da insuficiência ou do deficit: é tão censurável, para a perspectiva
constitucional, que o legislador imponha cargas excessivas aos particulares,
quanto o é que adopte medidas insuficientes para proteger ou garantir a
realização dos seus direitos, caso decorra da Constituição um dever de legislar
em ordem a essa protecção ou realização. (Canotilho, op. et loc. cits)
Como vimos, a conformação dos processos de execução comum e fiscal corresponde
ao cumprimento de um dever de legislar, que merecerá assim censura
constitucional se vier a ser cumprido ou de forma excessiva ou de modo
insuficiente ou deficitário.
13. Sobre o que seja o princípio da “proibição do deficit”, ou da “proibição da
insuficiência”, e sobre as circunstâncias apertadas em que pode o juiz
constitucional censurar uma medida legislativa por esta se mostrar, face a
deveres estaduais de protecção ou de prestação de normas, deficitária ou
insuficiente, já se pronunciou com clareza o Tribunal. No Acórdão n.º 75/2010,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt, ocupou-se o Tribunal da dogmática
geral dos imperativos jurídico-constitucionais de protecção, já que estavam
então em causa deveres de normação, impendentes sobre o legislador ordinário,
destinados a proteger bens jusfundamentais face a potenciais agressões provindas
de terceiros. No presente caso, estamos perante deveres de normação impendentes
sobre o legislador ordinário, dirigidos a garantir o cumprimento de bens
jusfundamentais através da instituição de organizações e procedimentos. Em ambas
as situações, o juízo de inconstitucionalidade só poderá ser emitido se se
provar que o legislador cumpriu insuficientemente, ou deficitariamente, o dever
de prestação de normas a que estava vinculado.
Basicamente, poderá considerar-se que existe um deficit inconstitucional de
protecção (ou de prestação normativa), quando as entidades sobre as quais recai
o dever de proteger adoptam medidas insuficientes para garantir a protecção
adequada às posições jusfundamentais em causa, sendo que tal sucede sempre que
se verificar um duplo teste: (i) sempre que se verificar que a protecção não
satisfaz as exigências mínimas de eficiência que são requeridas pelas posições
referidas; (ii) cumulativamente, sempre que se verificar que tal não é imposto
por um relevante interesse público, constitucionalmente tutelado. (Neste
sentido, e quanto à dogmática geral dos imperativos jurídico-constitucionais de
protecção, veja-se o já citado Acórdão n.º 75/2010, ponto 11.4.3).
Para que se saiba se a protecção adoptada satisfaz ou não as exigências mínimas
de eficiência requeridas pelas posições jusfundamentais em causa necessário é
que se tenha em conta a intensidade do perigo ou do risco de lesão que pode
resultar, para as referidas posições, da medida legislativa sob juízo. Por seu
turno, para que se saiba se tal risco de lesão é ou não justificado, em
ponderação, por motivos constitucionais relevantes, necessário é que se
identifiquem os bens jurídicos e interesses contrapostos às referidas posições,
e se decida se, na escolha do legislador, foi ou não sobreavaliado o seu peso
(Acórdão n.º 75/2010, loc. cit).
14. Assim, e seguindo a metodologia atrás definida, importa, desde logo,
identificar qual o valor constitucionalmente protegido que possa estar em
conflito com o direito do credor à satisfação do seu crédito e, uma vez
identificado este, proceder a um juízo da razoabilidade da ponderação, efectuada
pelo legislador ordinário, entre os direitos e ou valores em conflito.
A sentença recorrida louva-se no acórdão do STA de 28 de Março de 2007, proc.
n.º 026/07, que justifica a dispensa de audição prévia dos credores reclamantes
com garantia real a partir das características próprias do processo de execução
fiscal. O princípio da celeridade nessa forma de processo – por estar em causa a
cobrança de receitas tributárias que visam a satisfação das necessidades
financeiras do Estado e de outras entidades públicas e a promoção da justiça
social, da igualdade de oportunidades e das necessárias correcções das
desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, nos termos do n.º 1 do
artigo 5.º da Lei Geral Tributária – requereria, ele próprio, a dispensa de
audição.
Conforme resulta de jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, “[o]
legislador [não está] impedido de tutelar os créditos do Estado de forma mais
intensa, quer no plano substantivo, através da criação de garantias reais, quer
no plano adjectivo, através de formas processuais adequadas que respeitem o
núcleo essencial do direito de propriedade” (nesse sentido, não obstante aí se
ter concluído pela violação do n.º 1 do artigo 62.º, Acórdão n.º 516/94). É o
que sucede no caso dos autos, em que por razões relacionadas com a necessidade
de celeridade na cobrança de impostos para a prossecução do interesse público o
legislador, de acordo com a interpretação do direito infra-constitucional
adoptada na sentença do Tribunal a quo, prescinde da audição prévia dos credores
reclamantes com garantia real.
Assim identificado o valor constitucionalmente protegido, importa então proceder
a uma ponderação entre a intensidade do sacrifício imposto ao direito do credor
à satisfação do seu crédito e a necessidade da dispensa, em execução fiscal, da
audição prévia de credores reclamantes com garantia real para efeitos de escolha
da modalidade de venda e de fixação do preço base, por apenas desse modo se
lograr a cobrança de impostos para a prossecução do interesse público.
Ao apreciar a norma do n.º 1 do artigo 300.º do Código de Processo Tributário,
entretanto já revogado, que previa como regra a impenhorabilidade de bens
penhorados em execução fiscal, o Tribunal Constitucional julgou-a
inconstitucional por violação da garantia do direito do credor à satisfação do
seu crédito conjugada com o princípio da proporcionalidade (v. acórdão n.º
494/94, já atrás referido). Importa observar que a norma em causa não
determinava, só por si, a impossibilidade de satisfação do crédito do credor
comum, apenas aumentava o risco de o mesmo ver o seu crédito satisfeito. Dito de
outro modo, o sacrifício imposto pelo legislador atingia a posição
jusfundamental apenas numa zona sensivelmente próxima dos seus limites externos.
Simplesmente, o Tribunal entendeu que, do mesmo modo, a vantagem que a norma em
causa trazia para a realização do interesse público de celeridade do processo de
execução fiscal e de garantia de cobrança das dívidas através do foro fiscal com
prevalência total sobre a de quaisquer créditos comuns era de tal modo
irrelevante, que não podia servir para justificar um regime que fazia impender
sobre o credor comum o risco de ver totalmente frustrada a possibilidade de
satisfação do seu crédito. A ponderação é efectuada, portanto, através do
confronto entre a intensidade do sacrifício imposto à posição jusfundamental e a
necessidade e vantagem para o interesse público resultante desse mesmo
sacrifício.
Também a norma sub judicio, ou seja a dispensa do dever de audição prévia dos
credores reclamantes com garantia real, não compromete, só por si, o direito de
satisfação do crédito. Com efeito, a execução não deixa de prosseguir e a venda
não deixa de ser realizada, podendo, aliás, os credores reclamantes com garantia
real preceder o próprio Estado na satisfação do seu crédito, consoante a
graduação verificada. Pode, assim, afirmar-se que, tal como no caso que vimos de
analisar, o direito do credor à satisfação do seu crédito é aqui atingido com
pouca intensidade. Também aqui a norma apenas vem aumentar o risco de
insatisfação do crédito do credor reclamante com garantia real.
De modo a analisar em que se traduz, rigorosamente, esse aumento do risco,
importa começar por fazer uma distinção entre a audição prévia dos credores
reclamantes com garantia real para efeitos de escolha da modalidade de venda e a
sua audição para efeitos de determinação do valor base do bem para a venda. No
que respeita à escolha da modalidade de venda, não se verifica, num primeiro
momento, qualquer aumento do risco de insatisfação do crédito dos credores
reclamantes com garantia real imputável à não-realização da audição prévia. Com
efeito, resulta do facto de o artigo 248.º do CPPT estabelecer, como regime
regra, a venda por meio de propostas em carta fechada, que não é conferida à
Administração Fiscal qualquer discricionariedade na escolha da modalidade de
venda, revelando-se, portanto, para esse efeito, desprovida de qualquer efeito
útil a eventual audição prévia dos credores reclamantes com garantia real. Porém
– e como já se viu supra, ponto 8 – decorre do regime legal (al. a) do n.º 1 do
artigo 252.º do CPPT) que sempre que se vir frustrada a venda por propostas em
carta fechada por no dia designado para a abertura de propostas se verificar a
inexistência de proponentes ou a existência apenas de propostas de valor
inferior ao valor base anunciado, a venda há-de efectuar-se por outra das
modalidades previstas no CPC, cabendo a escolha à Administração Fiscal. Tal
significa que, nessa hipótese, a audição prévia dos credores reclamantes com
garantia real não é de todo inconsequente. No que respeita à determinação do
valor base do bem para a venda, a lei, na versão anterior à alteração
introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, atribui ao órgão da
execução fiscal competência para fixar o valor base para a venda (al. a) do n.º
1 do artigo 250.º), o que significa que a eventual audição prévia dos credores
reclamantes com garantia real não é, também aqui, desprovida de utilidade.
Conclui-se, portanto, que o aumento do risco de insatisfação do crédito dos
credores reclamantes com garantia real decorre do facto de não serem ouvidos
tanto para efeitos da escolha da modalidade de venda como para efeitos da
determinação do valor base do bem para a venda.
Simplesmente, não basta a conclusão, segundo a qual se verifica in casu um
aumento do risco de insatisfação do crédito, para com isso se dar por verificada
a inconstitucionalidade, por cumprimento insuficiente ou deficitário dos deveres
de prestação normativa que impendem sobre o legislador ordinário nos termos, já
analisados, do princípio decorrente do artigo 2.º da CRP. Como se afirmou
anteriormente, o direito do credor à satisfação do seu crédito há-de ser
confrontado com a necessidade da dispensa, em execução fiscal, da audição prévia
de credores reclamantes com garantia real para efeitos de escolha da modalidade
de venda e de fixação do preço base, por apenas desse modo se lograr a cobrança
de impostos para a prossecução do interesse público.
Importa, assim, analisar se, e em que medida, é efectivamente necessária para a
realização do interesse público de cobrança coerciva de impostos, a dispensa da
audição prévia dos credores reclamantes com garantia real.
Ora, não se vê como é que tal dispensa pode pôr em causa a realização do
interesse público. Mesmo considerando eventuais incidentes de reclamação que
possam vir a ocorrer ao abrigo do disposto no artigo 276.º do CPPT, resulta da
circunstância de, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º do mesmo Código, o
tribunal só conhecer de reclamações após a realização da venda – justamente por,
de outro modo, a subida imediata da reclamação poder afectar a desejada
celeridade do processo de execução fiscal –, que a dispensa de audição prévia
dos credores reclamantes com garantia real não pode, objectivamente, ser
considerada uma medida necessária, de forma tal que a sua ausência comprometa
inelutavelmente os fins pertinentes de interesse colectivo.
Tanto basta para que se conclua a norma sub judicio não assegura uma ponderação
razoável entre a posição jusfundamental que deve acautelar e o valor
constitucional (de realização do interesse público) que com tal posição
conflitua.
A tudo isto acresce que, para a ponderação a efectuar, não pode deixar de
relevar o facto de a audição prévia dos credores reclamantes com garantia real
poder vir a compensar o eventual prejuízo que dela resulte em termos de
celeridade processual. Com efeito, uma formação mais informada da decisão
administrativa sobre a escolha da modalidade de venda e sobre o valor base do
bem para a venda – informação essa resultante da contribuição oferecida, em
audição prévia, pelos credores reclamantes com garantia real – pode redundar num
ganho geral do interesse público. Assim, e independentemente da questão da
celeridade do processo de execução fiscal, importa assinalar que, em abstracto,
longe de existir um conflito entre o interesse público e o interesse dos
credores reclamantes, poderá existir uma convergência de interesses consistente
em realizar a venda do bem de modo a garantir a satisfação dos seus créditos.
Conclui-se assim que, in casu, o legislador que conformou as normas pertinentes
do CPPT não conferiu, às posições jurídicas tuteladas, a protecção eficiente que
poderia ter conferido; e fê-lo por razões de interesse público que, uma vez
ponderadas, se mostram, na sua relação com os outros bens e valores
constitucionalmente tutelados, claramente sobreavaliadas.
Tanto basta, por isso, para que se considere, à luz da metodologia atrás
definida, que se não cumpriu aqui o imperativo constitucional de proibição do
deficit ou da insuficiência, decorrente do artigo 2.º da CRP.
III
Decisão
14. Pelo exposto, e com estes fundamentos, decide-se
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 2.º da CRP, a
norma que resulta das disposições conjugadas da alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º
e n.º 3 do artigo 252.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e dos
artigos 201.º, 904.º e alínea c), do n.º 1 do artigo 909.º do Código de Processo
Civil, quando interpretada “no sentido de dispensar a audição dos credores
providos com garantia real nas fases de venda ordenada pelos Serviços de
Finanças e, fundamentalmente, quando é ordenada a venda por negociação
particular e feita a adjudicação consequente”;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e revogar a decisão
recorrida para ser reformada de acordo com o juízo de constitucionalidade agora
formulado.
Sem custas.
Lisboa, 28 de Abril de 2010
Maria Lúcia Amaral (com declaração)
Carlos Fernandes Cadilha
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Entendeu o Colégio que, neste caso, a decisão de inconstitucionalidade se
deveria fundar, exclusivamente, na lesão do princípio do Estado de direito,
consagrado no artigo 2.º da CRP.
Discordei desta orientação.
Considerei – e foi nesse sentido que, como relatora, elaborei o projecto de
fundamentação que, quanto a este ponto, não obteve vencimento – que se
encontrava primacialmente no n.º 1 do artigo 62.º da CRP o parâmetro
constitucional que, no caso, fora violado.
Partindo do princípio segundo o qual o direito do credor à satisfação do seu
crédito se inclui ainda no âmbito de protecção da norma constitucional relativa
à tutela da propriedade ou do património privado, conclui que os deveres de
organização e de procedimento, impendentes sobre o legislador ordinário que,
nesta situação, se mostravam deficitária ou insuficientemente cumpridos,
decorriam antes do mais de posições jusfundamentais tuteladas (nos termos
definidos pelo ponto 11 do Acórdão) no nº 1 do artigo 62.º da CRP.
É certo que a sede última dos deveres do legislador de instituir procedimentos
justos e adequados à realização do Direito e à garantia do exercício efectivo
dos direitos se encontra no princípio do Estado de direito, consagrado no artigo
2º da CRP. E certo é, também, que deste mesmo princípio decorre, em última
análise, o imperativo constitucional da proibição da insuficiência ou do deficit
de protecção. No entanto, tal não significa, a meu ver, que o princípio do
artigo 2º possua, nesta situação, um alcance prescritivo tal que lhe permita ser
o parâmetro único fundador do juízo de inconstitucionalidade. Entendo antes que
ele é apenas o auxiliar hermenêutico que permite ao juiz constitucional censurar
a decisão do legislador com fundamento em cumprimento insuficiente de deveres de
“protecção” que decorrem, antes do mais, do disposto no nº 1 do artigo 62.º da
CRP.
Maria Lúcia Amaral