Imprimir acórdão
Processo n.º 176/10
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso do acórdão proferido pela Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em 02 de Novembro de 2009 (fls. 1076 a 1093), posteriormente complementado pelo acórdão proferido pela mesma Secção e Tribunal, em 29 de Janeiro de 2010 (fls. 1108 e 1109), que indeferiu requerimento de arguição de nulidades e de invocação de inconstitucionalidades.
2. Verificando que o recorrente não indicou nenhum dos elementos exigidos pelo artigo 75º-A da LTC, a Relatora proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento, em 17 de Março de 2010 fls. 1119). Respondendo a tal convite, veio o recorrente esclarecer que pretendia interpor recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º, da LTC, com vista à apreciação da inconstitucionalidade das seguintes interpretações normativas:
i) “da norma contida no Art. 72°-n°2, alínea c) do Código Penal na interpretação - acolhida no douto Acórdão em apreço, ao confirmar o Acórdão recorrido — de que a não demonstração de “falta de arrependimento” na posição assumida em audiência pelo Arguido é de valorar como agravante e coadjuvante do sentido da Decisão condenatória, que puniu o Arguido/Recorrente”;
ii) “da norma contida no Artigo 72°-n°2, alínea d) do Código Penal, de que se fez aplicação no douto Acórdão em apreço, na interpretação aí acolhida de que decorridos quase 8(oito) anos desde o início do processo (em 2001) tal não pode/deve ser valorado como correspondendo a “Muito Tempo”, para os fins de atenuante especial da pena”;
iii) “da norma contida no Art. 50°-n°1 do Código Penal na redacção introduzida pela Lei N°59/2007, de 04 de Setembro (que operou a última revisão no Cód. Penal), na interpretação acolhida de que tendo o Arguido/Recorrente completado já 70 anos de idade e não tendo antecedentes criminais não é de decretar a suspensão da execução da pena (de 4 anos de prisão efectiva)” (fls. 1121).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
3. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 1114), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum ou alguns desses pressupostos não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
4. O Tribunal Constitucional funciona como órgão de recurso, em matéria de fiscalização da constitucionalidade, só lhe cabendo o controlo da constitucionalidade de normas jurídicas (artigo 277º, n.º 1, da CRP) que tenham sido alvo de aplicação efectiva por parte dos tribunais recorridos e que tenham constituído a razão determinante da decisão jurisdicional em causa (artigo 79º-C da LTC). Significa isto que cabe aos recorrentes especificar qual a norma jurídica (ou a respectiva interpretação normativa) foi efectivamente aplicada pelo tribunal recorrido, elegendo-a como objecto do recurso de constitucionalidade. Sempre que tal norma (ou interpretação normativa) não corresponda àquela efectivamente aplicada pelo tribunal recorrido, mais não resta do que negar a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso interposto. O mesmo sucede se a questão de inconstitucionalidade nem sequer incidir sobre uma norma jurídica ou uma interpretação normativa, mas antes se limitar a manifestar a discordância do recorrente quanto ao juízo subsuntivo do tribunal a quo.
Começando pela primeira interpretação normativa, o recorrente entende que a mesma teria sido aplicada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, por força da adesão à fundamentação mais amplamente expressa pelo tribunal colectivo formado para efeitos de julgamento do Proc. n.º 29/01.1TACBC, que correu termos na Secção Única do Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto. E, em boa verdade, tal adesão pode ser comprovada nos autos quando a decisão remetida afirma expressamente que “porém, a pena nada tem de exagerado” (fls. 1090) e que “no mais, remete-se para as considerações feitas no acórdão recorrido quanto à medida da pena, as quais, como se disse, não foram objecto de impugnação” (fls. 1091). Assim, apesar de a decisão recorrida nunca ter aplicado – pelo menos, directamente – a norma extraída da alínea c) do n.º 2 do artigo 72º do Código Penal, imporia verificar-se se o teria feito, indirectamente, por via da remissão para o acórdão de primeira instância.
Sucede, porém, que o acórdão condenatório proferido pelo tribunal colectivo formado para efeitos de julgamento do Proc. n.º 29/01.1TACBC, que correu termos na Secção Única do Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, nunca aplicou efectivamente a “norma contida no Art. 72°-n°2, alínea c) do Código Penal na interpretação (…) de que a não demonstração de “falta de arrependimento” na posição assumida em audiência pelo Arguido é de valorar como agravante e coadjuvante do sentido da Decisão condenatória, que puniu o Arguido/Recorrente”.
Desde logo, a decisão de primeira instância limitou-se a ponderar os diversos elementos legalmente fixados para efeitos de determinação da pena (cfr. artigo 71º, n.º 2, do CP), designadamente, a “conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime” [cfr. idem, alínea e), com sublinhado nosso]. Para tal, a decisão de primeira instância teve em conta:
“- a conduta posterior aos factos, visto que negou a prática dos factos e desculpou-se de forma torpe, imputando, mesmo, a autoria da carta – em que tenta marcar novo encontro, sugere a fuga de ambos, ameaça, usa linguagem libidinosa – ao pai da ofendida, não revelando o menor arrependimento” (fls. 964-verso).
Como se afigura evidente, aquela decisão não aplicou – de modo algum – a alínea c) do n.º 2 do artigo 72º do CP, até porque aquele preceito pressuporia a atenuação especial da pena que, manifestamente, não foi decidida pela primeira instância. Não pode, portanto, o recorrente pretender que a ponderação da sua conduta posterior à prática do crime pressupõe a aplicação de uma norma especificamente destinada a atenuar a pena, quando, na realidade, o que o tribunal de primeira instância fez foi apreciar todas as circunstâncias necessárias à determinação da medida concreta da pena. É que a conduta dos agentes, posterior à prática de um crime, constitui sempre factor de ponderação da pena, mesmo que não justifique a atenuação especial da pena. Só por isso, resulta evidente que a decisão recorrida – por remissão – não aplicou a primeira das referidas interpretações normativas reputadas de inconstitucionais.
5. Quanto à segunda interpretação normativa, afigura-se igualmente inequívoco que a decisão recorrida não aplicou a norma extraída da alínea d) do n.º 2 do artigo 72º do CP de forma tal que oito anos não fosse qualificável como “muito tempo”. Pelo contrário, a decisão recorrida aceita que oito anos pode ser qualificado como “muito tempo”, mas que, para efeitos de atenuação especial de pena, seria ainda exigível que esse decurso de tempo revelasse uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou necessidade da pena (cfr. n.º 1 do artigo 72º do CP), o que se comprova pela leitura do seguinte extracto:
«Por outro lado, verificados os pressupostos legais, a concessão da atenuação especial é um dever a que o tribunal não se pode subtrair. Mas impõe-se um uso demorado deste instituto, devendo o aplicador da lei ter em especial atenção o estreito condicionalismo exigido pelo nº 1 do art. 72. É que não basta que haja circunstâncias que diminuam a ilicitude do facto ou a culpa do agente ou a necessidade da pena, sendo necessário que esta diminuição seja “acentuada”.
(…)
Neste contexto, o «muito tempo» que justifica o recurso à atenuação especial é aquele que já se aproxima do termo do prazo de prescrição do procedimento criminal.
(…)
Acresce que para os efeitos da al. d) do nº 2 do art. 72 do Cod. Penal, “não bastaria ter o crime sido cometido há muito tempo e haver o delinquente mantido boa conduta. É fundamental que isso tenha mexido profundamente no facto ou no agente; que, por exemplo, o alvoroço social se tenha esfumado ou a personalidade do agente se tenha modificado para muito melhor” – acs. do STJ de 8-5-91 e 13-1-94» (fls. 1089 e 1090).
Daqui resulta não corresponder à verdade a afirmação de que a decisão recorrida considerou que oito anos não equivaleria a «muito tempo». O que foi considerado foi que mesmo decorrido «muito tempo» seria necessário que tal passagem de tempo reflectisse uma acentuada diminuição da necessidade da pena, designadamente, por força de uma modificação substancial da personalidade do agente reflectida na sua vivência diária. O que, segundo a decisão recorrida – que não cabe a este Tribunal sindicar –, não ocorreu.
Como tal, por não ter sido efectivamente aplicada pela decisão recorrida, também não pode o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso, quanto à segunda interpretação normativa, por força do artigo 79º-C da LTC.
6. Por último, quanto à inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 50º do Código Penal, interpretado alegadamente no sentido de que “tendo o Arguido/Recorrente completado já 70 anos de idade e não tendo antecedentes criminais não é de decretar a suspensão da execução da pena (de 4 anos de prisão efectiva)”, importa, desde já, notar que o modo como o recorrente configura esta questão não permite dela conhecer porque não se trata de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa. Pelo contrário, o recorrente limita-se a manifestar a sua discordância quanto à subsunção dos factos – v.g., idade e antecedentes criminais do recorrente – a uma determinada previsão legal. Ora, como já atrás se referiu, o Tribunal Constitucional não detém poderes para sindicar tais juízos subsuntivos, mas apenas para controlar a constitucionalidade de normas jurídicas, pelo que também não deve conhecer desta última questão.
III – DECISÃO
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se não conceder provimento ao recuso interposto.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.»
2. Inconformado com a referida decisão, o recorrente veio apresentar a seguinte reclamação:
«I)
Salvaguardado o devido respeito, não se partilha do entendimento sufragado na douta Decisão Sumária em apreço, na tripla vertente que comporta, considerando-se antes que se verificam os pressupostos ou requisitos para o conhecimento por esse Alto Tribunal do recurso interposto.
II)
No que tange aos pontos nºs 2, 3 e 4 do Requerimento de interposição de recurso, ressalvado o devido respeito, as questões de (in)constitucionalidade normativa foram suscitadas no Requerimento de Arguição de Nulidade de Fls..., por, aquelas questões (de constitucionalidade) apenas terem surgido com a prolação do(s) douto(s) Acórdão(s) em apreço.
E, afigura-se que o foram de forma processualmente adequada.
Daí que, não poderá, agora, o Recorrente/Reclamante ser prejudicado com o não conhecimento do objecto do presente recurso.
III)
No que tange — especificamente - ao ponto n°4 do Requerimento de interposição de recurso, ressalvado o devido respeito, afigura-se que a questão de inconstitucionalidade normativa do Art. 50°—n° 1 do Código Penal na redacção introduzida pela Lei N°59/2007, de 04 de Setembro (que operou a última revisão no Cód. Penal), na interpretação acolhida de que tendo o Arguido/Recorrente completado já 70 anos de idade e não tendo antecedentes criminais não é de decretar a suspensão da execução da pena (de 4 anos de prisão efectiva) foi suscitada previamente perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida de forma processualmente adequada.
É que, a Decisão condenatória não podia ignorar a idade do Arguido/Reclamante na fixação da medida da pena e na aplicação em concreto da pena.
Esse conhecimento da idade do ora Reclamante consta expressamente dos autos.
E está necessariamente subjacente intrínseco à própria Decisão condenatória.
Trata-se - de resto - de um caso excepcional e anómalo em que o Recorrente não dispôs processualmente da oportunidade de levantar a questão de constitucionalidade e era de todo imprevisível a aplicação da norma ou a interpretação que lhe foi dada, pelo que a questão de constitucionalidade pode nesse caso ainda ser suscitada no próprio Requerimento de Interposição de Recurso.
Afigura-se — ressalvado o devido respeito — que não é no Requerimento de Interposição de Recurso mas sim nas Alegações de recurso - a produzir no próprio Tribunal Constitucional que o Recorrente terá de “explicar” com algum desenvolvimento e fazer a demonstração da verificação da(s) inconstitucionalide(s) previamente suscitada(s).
De resto, é jurisprudência pacífica desse Alto Tribunal, que:
“Os critérios jurisprudenciais (referentes ao ónus de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo) não hão-de ser tomados rigidamente de jeito a não permitir o recurso quando ao interessado se depare uma decisão relativamente à qual não seria razoável exigir uma prognose de um conteúdo e de um despacho inesperados, anómalos ou excepcionais. Como igualmente, quando não houve oportunidade processual de suscitar a questão anteriormente, tem lugar a flexibi1izaçio dos descritos critérios em benefício do direito de recurso (...) acórdãos nºs 188/93 e 60/95, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 24, págs. 495 e segs., 30. págs. 445 e segs., respectivamente).
Com efeito, não era razoável - antes da prolação do(s) douto(s) Acórdão(s) em apreço - exigir ao Recorrente/Reclamante a “prognose” ou previsão de uma Decisão de conteúdo “inesperado, anómalo ou excepcional”.
O que teve determinante efeito no sentido da decisão contida naqueles Acórdão(s) da Relação de Guimarães.
Daí que, se devam ter como adequadamente suscitadas, pelo Recorrente, as correspondentes questões de (in)constitucionalidade.
Desse modo, deverá considerar-se que a prévia suscitação das questões de constitucionalidade foram feitas de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Termos em que, deverá ser atendida a presente Reclamação e, em consequência ser decidido conhecer do objecto do recurso (art. 78º-A citado).» (fls. 1132 a 1134)
3. Após notificação, o Ministério Público apresentou a seguinte resposta:
«1º
Pela Decisão Sumária de fls. 1124 a 1129, não se tomou conhecimento do recurso com base na seguinte fundamentação:
- quanto às normas do artigo 72.º, n.º 2, alínea c) e 72.º, n.º 2, alínea d), ambas do Código Penal, porque a decisão recorrida não as havia aplicado na interpretação que o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
- quanto à norma do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, porque não vinha enunciada nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa.
2º
Na reclamação agora apresentada, o reclamante, limita-se a dizer que se verificam os pressupostos ou requisitos para o conhecimento do recurso, em relação a todas as normas porque quanto à inconstitucionalidade apenas tinha sido suscitada, de forma adequada, na arguição de nulidade dos Acórdãos, porque elas apenas tinham surgido com a prolacção desses acórdãos.
3.º
Ora, como decorre do que anteriormente dissemos (n.º 1) o que levou ao não conhecimento do recurso, não foi o incumprimento por parte do recorrente, do ónus da suscitação prévia e adequada da questão da inconstitucionalidade, que, efectivamente, constitui um dos requisitos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC.
4.º
Efectivamente, esse requisito de admissibilidade nem sequer é referido na Decisão Sumária, sendo certo que sobre a fundamentação efectivamente seguida, ela não vem impugnada, nada se dizendo, aliás.
5.º
Tanto bastaria para que a reclamação fosse indeferida.
6.º
Acrescentamos, no entanto, que pelas razões constantes da Decisão Sumária, nos parece evidente a inverificação dos pressupostos do recurso.» (fls. 1136 e 1138)
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. É por demais evidente que o reclamante não tem razão, na medida em que sustenta a sua discordância com a decisão sumária num fundamento que não foi sequer mencionado por esta última. Toda a argumentação da reclamação gira em torno da demonstração de que as questões de inconstitucionalidade normativa foram suscitadas de modo processualmente adequado, quando os fundamentos da recusa de conhecimento do objecto do recurso foram outros. A saber, a falta de aplicação efectiva da interpretação normativa extraída das alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 72º do Código Penal e a inexistência de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa quanto ao artigo 50º, n.º 1, do Código Penal.
Não tendo estes fundamentos sido impugnados, mais não resta do que indeferir a presente reclamação.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 12 de Maio de 2010
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão