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Processo n.º 826/20083.ª SecçãoRelatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
IRelatório
1. A. propôs no Tribunal Judicial de Almodôvar acção com processo ordinário
contra o Estado Português, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a indemnização
de € 200 000,00 por danos não patrimoniais por ela sofridos pelo facto de ter
sido sujeita a medida de coacção de prisão preventiva, entre 31.07.2004 e
26.09.2005, em processo em que foi arguida e em que, por decisão do tribunal
colectivo do círculo de Beja, foi absolvida.
Foi proferido saneador-sentença, no qual a Exma. Juíza julgou a acção
improcedente e absolveu o demandado do pedido.
Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação
de Évora que o julgou improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Ainda inconformada, a autora interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal
de Justiça, suscitando, na parte que releva para o presente recurso de
constitucionalidade, as seguintes questões:
a) Inconstitucionalidade da interpretação das normas dos artigos 202.º e
204.º do CPP, tal como acolhida nos despachos judiciais proferidos em 2005 no
pretérito processo crime, que mantiveram a prisão preventiva da ora recorrente,
diferentemente do outro co-arguido, por violação dos artigos 13.º e 32.º, n.º 2
da Constituição (Conclusões 26 e 27, a fls. 1135/6);
b) Inconstitucionalidade da interpretação da norma do artigo 225.º do CPP,
quando entendida que a avaliação dos pressupostos de facto da aplicação da
prisão preventiva não pode reportar-se à análise da existência ou não de fortes
indícios no momento em que essa decisão foi proferida, por violação dos artigos
22.º, 27.º, n.º 3, alínea b) e 5 da Constituição (Conclusão 32 a fls. 1137);
c) Inconstitucionalidade da interpretação da norma da alínea c) do n.º 1 do
artigo 225.º do CPP, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto,
quando restringida à prolação de sentenças absolutórias que comprovem a
inocência do arguido (de que não foi o autor, ou, sendo-o, agiu
justificadamente), por violação do artigo 32.º, n.º 2 da Constituição (Conclusão
38, a fls. 1139);
d) Inconstitucionalidade da exigência legal de condicionar a indemnização à
verificação de erro grosseiro, por violação dos artigos 22.º e 27.º, n.º 5 da
Constituição em conjugação com o artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos
do Homem.
O Supremo Tribunal de Justiça, julgando o recurso improcedente, negou a revista.
2. Dessa decisão veio A. interpor o presente recurso de
constitucionalidade.Através dele pretende a recorrente a apreciação das
seguintes questões:
a) inconstitucionalidade da interpretação da norma do artigo 225.º do
Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto, no sentido de que a sua aplicação no tempo se rege pelo disposto no
artigo 12.º do Código Civil, por violação dos artigos 18.º e 27.º, n.º 5 da
Constituição;
b) inconstitucionalidade da norma do artigo 225.º do Código de Processo
Penal, na redacção anteriormente vigente, em conjugação com as normas do artigo
202.º do mesmo Código, no sentido de que uma medida de coacção de prisão
preventiva decretada com inexistência de fortes indícios configura uma
ilegalidade e não erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que
dependia a sua aplicação, e de que a inexistência de fortes indícios tem de ser
manifesta, por violação dos artigos 27.º, n.º 5 e 32.º, n.º 2 da Constituição;
c) inconstitucionalidade da interpretação das normas dos artigos 202.º e
204.º, tal como acolhida nos despachos judiciais, proferidos em 2005 no
pretérito processo crime, que mantiveram a prisão preventiva da ora recorrente,
diferentemente do outro co-arguido, por violação do artigo 13.º da Constituição;
d) inconstitucionalidade da norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º
do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto, no sentido de restringir o seu âmbito de aplicação aos casos em que
existe uma sentença absolutória que comprove a inocência do arguido, por
violação do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º da
Constituição;
e) inconstitucionalidade da interpretação do disposto no artigo 5.º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do artigo 225.º do Código de Processo
Penal, no sentido de fazer depender a indemnização à verificação de erro
grosseiro, só podendo ser devida indemnização ao abrigo do disposto no n.º 5 do
artigo 27.º da Constituição, excluindo-se a possibilidade de indemnização nos
termos do artigo 22.º da Lei Fundamental, quando a pessoa sujeita a prisão
preventiva venha a ser absolvida, excluindo-se os casos de erro grosseiro.
Já no Tribunal Constitucional, a relatora proferiu o seguinte despacho:
Para alegações, com a advertência de não poder o Tribunal conhecer das seguintes
questões colocadas no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade.1ª Da questão relativa à interpretação da norma contida no
artigo 225º do CPP, na redacção dada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, “no
sentido de que a aplicação desta norma se rege pelo disposto no artigo 12º do
Código Civil”, por violação do disposto nos artigos 18º e 27º, nº 5, da CRP
(pontos 6 a 11 do requerimento do recurso). A questão de constitucionalidade não
foi suscitada durante o processo, pelo que, nos termos do artigo 280º, nº 1,
alínea b) da Constituição [e do artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal
Constitucional] dela não pode conhecer o Tribunal;2ª Da questão relativa à
constitucionalidade da norma contida no artigo 225º do CPP, na redacção
anteriormente vigente, em conjugação com as normas do artigo 202º do CPP, na
interpretação segundo a qual “uma medida de coacção de prisão preventiva
decretada com inexistência de fortes indícios configura uma ilegalidade e não
erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a sua
aplicação, e de que a inexistência de fortes indícios tem que ser manifesta”,
por violação do disposto nos artigos 27º, nº 5 e 32º, nº 2, da CRP (pontos 12 a
15 do requerimento de interposição do recurso). A “norma”, assim interpretada,
não foi aplicada enquanto razão de decidir pela sentença recorrida, pelo que
qualquer decisão que sobre ela viesse o Tribunal a proferir sempre se mostraria
inútil;3ª Da questão relativa à constitucionalidade da norma contida nos
artigos 202º e 204º do CPP, na interpretação que lhe foi dada “nos despachos de
15.04.05, de 22.04.05 e 13.07.05, pois que tendo os dois co-arguidos sido
sujeitos a prisão preventiva com base nos mesmos pressupostos para a aplicação
desta medida, o recorrente manteve-se em prisão preventiva, enquanto o
co-arguido somente ficou sujeito a TIR”, por violação do disposto no artigo 13º
da CRP (ponto 16 a 19 do requerimento). Dado inexistir, no sistema
jurídico-constitucional português o chamado “recurso de amparo” – recurso
relativo à inconstitucionalidade de decisões judiciais, em si mesmas tomadas,
por lesão de certos direitos fundamentais – não pode o Tribunal conhecer desta
questão, já que os seus poderes cognitivos se limitam ao controlo de
constitucionalidade de normas (artigo 277º, nº 1, da Constituição);4ª Da
questão relativa à constitucionalidade da norma contida na alínea c) do nº 1 do
artigo 225º do CPP, na redacção dada pela Lei nº 48/2007, na interpretação
segundo a qual tal norma deve ser restringida, nos seus estritos termos, aos
casos de sentenças absolutórias que comprovem a inocência do arguido, por
violação dos artigos 27º, nº 5, e 32º, nº 2, da Constituição (pontos 20 a 23 do
requerimento). Também aqui não aplicou a sentença recorrida tal norma, pelo que
os fundamentos do não conhecimento, por parte do Tribunal, da questão de
constitucionalidade que é colocada são os invocados supra, a propósito da 2ª
questão.Resta, pois, a questão de constitucionalidade colocada nos pontos 24 e
25 do requerimento de interposição do recurso. Nos termos do artigo 79º da Lei
do Tribunal Constitucional, determino que sejam, quanto a esta questão,
produzidas no Tribunal as alegações de recurso.
Assim notificada, veio a recorrente apresentar as suas alegações apenas quanto à
questão colocada nos dois últimos pontos atrás mencionados, de acordo, portanto,
com a delimitação do objecto do recurso fixada no despacho da Relatora. A
questão de constitucionalidade ficou por isso circunscrita ao problema de saber
se será ou não conforme com a lei Fundamental a norma constante do n.º 2 do
artigo 225.º do Código de Processo Penal, na medida em que faz depender o
direito a indemnização por prisão preventiva injustificada da ocorrência de erro
grosseiro na apreciação, pelo juiz, dos pressupostos de facto de que depende a
decretação da medida de coacção.Sustentou a recorrida a inconstitucionalidade da
exclusão da indemnização em casos como os dos autos – em que a pessoa sujeita a
prisão preventiva é, a final, absolvida –, desde logo pelo valor conferido pela
Constituição ao direito à liberdade. Sendo a prisão preventiva a medida de
coacção que mais gravosamente restringe esse mesmo direito – e sendo essa
restrição expressamente autorizada pela Constituição nos termos do n.º 3 do
artigo 27.º –, deveria, no entender da recorrente, o legislador ordinário fazer
concordar praticamente a intensidade da medida restritiva autorizada, e o
sacrifício da liberdade por ela imposta, com os valores constitucionais
justificativos da restrição – a saber, “a função de garante da vida em sociedade
que incumbe ao Estado no exercício da acção da justiça penal”. Ora, o regime
contido no artigo 225.º do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei
n.º 59/98, de 25 de Agosto (e na leitura que dele fora feita pela decisão
recorrida), ao restringir o dever de indemnizar do Estado aos casos de prisão
ilegal ou de prisão injustificada por erro grosseiro na apreciação dos
respectivos pressupostos de facto, não chegaria a realizar a referida
concordância prática entre o sacrifício da liberdade e os interesses e valores
constitucionais que legitimariam tal sacrifício, na medida em que faria com que
a pessoa injustificadamente sujeita a medida de coacção que viesse a ser
absolvida suportasse inteiramente, e sem nenhuma comparticipação da comunidade,
os danos decorrentes da privação da liberdade. Um tal desequilíbrio nos custos
da repartição do sacrifício [da liberdade] seria, ainda segundo a recorrente,
quer contrário ao disposto no n.º 5 do artigo 27.º da CRP, quer contrário ao
disposto no seu artigo 22.º, já que deste último preceito, directamente
aplicável, decorreria o direito de cada um à indemnização por danos causados por
actos lícitos da função jurisdicional de que resultasse a violação de direitos,
liberdades e garantias. Finalmente, invocou ainda a recorrente a Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, sustentando que o regime restritivo do artigo
225.º do Código de Processo Penal contradiria igualmente o disposto no seu
artigo 5.º.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
contra-alegou, determinando-se pela improcedência do recurso: a norma constante
do n.º 2 do artigo 225.º do CPP, na redacção emergente da Lei n.º 59/98, de 25
de Agosto, ao estabelecer que só existe direito de indemnização no caso de
prisão preventiva injustificada por erro grosseiro na avaliação dos respectivos
pressupostos de facto – não atribuindo tal direito ao arguido que a suportou
como mero corolário ou decorrência de uma ulterior absolvição na fase de
julgamento (como decorrência do funcionamento do princípio in dubio pro reo) –
não violaria o artigo 27.º, n.º 5 da Constituição, o artigo 5.º da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, nem qualquer outra norma ou princípio
constitucional.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
IIFundamentos
3. Delimitação do objecto do recurso e questão de constitucionalidade
3.1. De acordo com a redacção aplicável ao presente caso, e dada pela Lei nº
59/98, de 25 de Agosto, dispõe o artigo 225.º do Código de Processo Penal:
1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode
requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a
privação da liberdade.2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver
sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se
injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que
dependia. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, com dolo ou negligência
para aquele erro.
O regime de indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada, aqui
previsto (e que veio a ser objecto de algumas alterações, agora de consideração
desnecessária, com a entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), pode
ser caracterizado como segue.A lei faz depender a atribuição de uma indemnização
a quem tenha estado sujeito a prisão preventiva de um de dois requisitos: ou da
sua manifesta ilegalidade ou da existência de erro grosseiro na apreciação dos
pressupostos de facto que determinaram a sua aplicação.Os dois requisitos
articulam-se entre si através de uma relação de subsidiariedade. A regra é a da
constituição do dever de indemnizar do Estado em casos de prisão preventiva
manifestamente ilegal, nos termos do n.º 1 do artigo 225.º. Fora dos casos de
manifesta ilegalidade, prevê o n.º 2 do mesmo artigo o direito a indemnização
por prisão preventiva legal, fazendo no entanto depender a constituição de tal
direito da existência de erro grosseiro na apreciação, pelo juiz, dos
pressupostos de facto que determinaram a aplicação da medida de coacção.Da
articulação entre o disposto no n.º 1 e o disposto no n.º 2 do artigo 225.º
decorre o seguinte: a apreciação de qualquer requisito de que a lei faça
depender a possibilidade de aplicação da prisão preventiva deve ser efectuada ao
abrigo do princípio-regra, consignado no n.º 1. Por exemplo, constituindo a
exigência de “fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de
prisão de máximo superior a 5 anos” um pressuposto de decretação desta medida de
coacção (artigo 202.º do CPP), a sua inexistência configura uma ilegalidade, a
ser apreciada à luz do n.º 1 do artigo 225.º, ilegalidade essa que, ademais, se
exige que seja manifesta.Já todas as situações de privação de liberdade
indemnizáveis nos termos do n.º 2 do artigo 225.º do CPP pressupõem a legalidade
da prisão preventiva. Assim, perante uma situação de sujeição a prisão
preventiva legal, cabe ao autor da acção demonstrar a existência de erro
grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto que determinaram a sua
aplicação, sendo que o juízo, embora formulado em tempo posterior, se faz sempre
em função do momento e das circunstâncias em que foi proferida a decisão, ou
seja, tendo por base os factos, elementos e circunstâncias ocorridos na ocasião
em que a prisão preventiva foi decretada ou mantida.
3.2. No caso concreto está apenas em juízo o disposto no n.º 2 do artigo 225.º.
Com efeito, decorre do despacho da relatora e das alegações apresentadas pela
recorrente que o objecto do recurso se circunscreve à apreciação da questão de
constitucionalidade da norma constante desse mesmo n.º 2, quando interpretada no
sentido de se não considerar injustificada, e, portanto, constitutiva de
indemnização estadual, a prisão preventiva aplicada a um arguido que vem a ser
absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo. Foi, na verdade deste
modo e com este sentido que o Tribunal a quo interpretou e aplicou ao caso sub
judicio o sistema infraconstitucional contido no artigo 225º. Atente-se nos
seguintes excertos:
[…] o facto de o arguido sujeito a prisão preventiva legalmente decretada vir a
ser posteriormente absolvido em julgamento, por não provados os factos que lhe
eram imputados, e colocado em liberdade, é, por si só, insusceptível de revelar
a existência de erro grosseiro por parte de quem decretou a aludida medida de
coacção, e, por isso, não implica, só por si, a possibilidade de indemnização
nos termos do art. 225º n.º 2 do CPP (fls. 1222).
E ainda:
[…] no acórdão penal absolutório não ficou provado que a ora recorrente não
tenha sido autora dos crimes por que foi acusada.[…] O que se escreveu no dito
acórdão foi que não resulta dos factos provados que os arguidos, ou qualquer
deles, tenham ateado fogo ou provocado incêndio; não se escreveu que dos factos
provados resulta que os arguidos, ou qualquer deles, não ateou fogo nem provocou
incêndio – e só esta conclusão significaria a comprovação da efectiva inocência
da ora recorrente (fls. 1224).
Sendo assim as coisas, o que se discute no presente caso é a questão de saber se
se conforma com a Lei Fundamental aquele segmento normativo contido no preceito
do Código de Processo Penal que, não se satisfazendo com o juízo absolutório,
faz depender o direito a indemnização por sujeição a prisão preventiva de
ulterior prova, a produzir pelo arguido na correspondente acção de
responsabilidade civil contra o Estado.Dito de outro modo, suscita-se a questão
de saber se viola ou não a Constituição a norma constante do n.º 2 do artigo
225.º do CPP, interpretada no sentido de se não considerar injustificada, e,
portanto, constitutiva de obrigação estadual de indemnizar, a prisão preventiva
aplicada a um arguido que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in
dubio pro reo.Como se viu, defende a recorrente a tese da inconstitucionalidade,
sustentando-se para tanto, fundamentalmente, em três argumentos: no direito à
liberdade e no âmbito de protecção da norma constitucional que o consagra
(artigo 27.º da CRP); no instituto da responsabilidade civil extracontratual do
Estado, tal como é recortado constitucionalmente (artigo 22.º da CRP); nas
obrigações internacionais do Estado português, assumidas por força da recepção,
no direito interno, das normas inscritas na Convenção Europeia dos Direitos do
Homem (artigo 5.º da Convenção).Cada um destes argumentos será analisado
separadamente.Antes, porém, uma nota deve ser salientada.
3.3. A questão de constitucionalidade que constitui objecto do presente recurso
já foi objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional. No Acórdão n.º
12/2005, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal não julgou
inconstitucional a norma contida no n.º 2 do artigo 225.º do CPP “na parte em
que faz depender a indemnização por ‘prisão preventiva que, não sendo ilegal,
venha a revelar-se injustificada’ da existência de um erro grosseiro na
apreciação dos pressupostos de facto de que dependia”.Na fundamentação desta
decisão – que é inspirada tanto pelo que se havia já dito no Acórdão n.º 160/95,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt, quanto na argumentação aduzida no
Acórdão n.º 90/84, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º vol.,
1984, pág. 267 – o Tribunal percorre um caminho argumentativo marcado por três
passos essenciais.Antes do mais, estabelece um firme distinguo entre duas
questões: por um lado, a questão de constitucionalidade, propriamente dita, e,
por outro, a questão de saber qual será o melhor Direito, ou a solução
legislativa “mais justa” para o caso sob juízo. Em passo claro, contido no n.º
11 dos fundamentos, o Tribunal salienta que lhe não cabe decidir quanto à
segunda questão. Escolher o mais conveniente ou mais justo regime de
responsabilidade civil do Estado por detenção ou prisão preventiva injustificada
é – diz – tarefa do poder legislativo e não tarefa do Tribunal Constitucional;
por isso, circunscreve o problema que o ocupa à questão de constitucionalidade
“propriamente dita”, ou seja, à questão de saber se a Constituição impõe que, na
configuração legal desse regime de responsabilidade, sejam tidos em conta os
danos resultantes de prisão preventiva cuja falta de justificação só se venha a
revelar ex post – desse modo abrangendo os casos em que sobre o arguido, preso
preventivamente, venha a final a recair juízo absolutório.Em segundo lugar, e
depois de assim circunscrever a questão que o ocupa, o Tribunal afasta, enquanto
parâmetros válidos para o seu julgamento, tanto o contido no artigo 22.º da CRP
quanto o contido no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Quanto ao primeiro, salienta-se, tanto a sua não invocação por parte do
recorrente, quanto o facto de no mencionado artigo 22.º se proteger, em geral,
um instituto (o da responsabilidade civil extracontratual do Estado) que tem
especial concretização, quanto ao caso dos autos, no n.º 5 do artigo 27.º.
Quanto ao segundo – o decorrente da Convenção Europeia – segue-se de perto a
fundamentação, já expendida a propósito da norma contida no n.º 1 do artigo
225.º do CPP, no Acórdão n.º 160/95: dispondo o n.º 5 do artigo 5.º da Convenção
que tem direito a indemnização “[q]ualquer pessoa vítima de prisão ou detenção
em condições contrárias às disposições deste artigo”, em nada a disposição
acrescentaria face à já contida no artigo 27.º, nº 5, da Constituição, pelo que
não teria qualquer utilidade a apreciação, no caso, da eventual desconformidade
entre a norma de direito interno e a norma da aludida Convenção. Por tudo isto,
o Tribunal elege como exclusivo parâmetro de controlo o disposto nesse mesmo n.º
5 do artigo 27.º da CRP.Finalmente, em terceiro e último passo, o Tribunal
conclui – convocando para tanto o Acórdão n.º 90/84 – que, encontrando-se sob
reserva de lei o direito à indemnização aí previsto [no n.º 5 do artigo 27.º],
deteria o legislador, quanto à conformação do seu exercício, uma larga margem de
liberdade, só limitada pela proibição de aniquilamento do conteúdo essencial do
direito, limitação essa que apenas deferiria ao Tribunal a possibilidade de
controlos de evidência. Como, no caso, não seria evidente tal aniquilamento,
decide-se a final que a norma sob juízo não merece qualquer censura
constitucional.
Não se discute, agora, a bondade desta argumentação. Contudo, deve notar-se que,
no presente caso, a recorrente invoca argumentos novos quanto à necessária
aplicação, como parâmetro de julgamento, do disposto no artigo 22.º da CRP,
afirmando, como já se viu, que dele decorre um direito à indemnização por danos
causados por actos lícitos da função jurisdicional que impliquem violação de
direitos, liberdades e garantias (como se verá adiante, esta alegação, que não
poderá deixar de ser respondida, contém em si própria alguma medida de
contradição).Por outro lado, importa também sublinhar que, quanto ao direito à
liberdade e à segurança protegido pelo artigo 27.º da CRP – e conforme também
alega, neste caso, a recorrente –, não pode o “parâmetro” aplicável reduzir-se
ao disposto, textualmente, no n.º 5 do mesmo preceito. O argumento segundo o
qual o legislador constituinte se terá referido aqui a um dever estadual de
indemnizar apenas em casos de falta de justificação formal da privação da
liberdade (“[a] privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei
constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado (…)” não resolve, só por si,
a questão de saber se as faltas de justificação material dessa privação não
devem, também, ser compensadas por toda a comunidade política. Assim tomado, em
estreita leitura textual, o disposto no n.º 5 do artigo 27.º seria finalmente
inaplicável à norma sob juízo, que, pressupondo a legalidade da prisão
preventiva, jamais poderia violar uma norma constitucional que exclusivamente
dissesse respeito a situações de detenção ou prisão ilegais ou
inconstitucionais. Ter-se-ia assim que concluir que o problema posto no presente
recurso se situaria pura e simplesmente fora do âmbito de protecção do referido
n.º 5, que só valeria, quando muito, para vincular a determinação legislativa do
conteúdo e limites da prisão preventiva ilegal, nos termos do disposto na alínea
c) do n.º 3 do artigo 27.º.
O problema que se põe é, pois, outro. Em causa está a questão de saber se a
tutela constitucional da matéria se esgota nas situações que, literalmente, o
n.º 5 do artigo 27.º, prevê, questão essa que só poderá ficar resolvida se se
evitar a leitura isolada daquela disposição. Antes do mais, há que ter em linha
de conta que a norma se insere, sistematicamente, no preceito constitucional que
tutela a liberdade e a segurança, o que não pode deixar de ser relevante para a
determinação da natureza, conteúdo e alcance do direito à indemnização que o n.º
5 prevê.
4. Do artigo 27.º da CRP
4.1. Dispõe o n.º 1 do artigo 27.º da CRP que “[t]odos têm direito à liberdade
e à segurança” e o n.º 2 que “[n]inguém pode ser total ou parcialmente privado
da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela
prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de
medida de segurança”, vindo o n.º 3 admitir, excepcionalmente, a privação da
liberdade nas situações aí expressamente previstas.Deixando de lado o disposto
no n.º 4, que não vem ao caso, confere o n.º 5 do mesmo artigo, como já se viu,
um específico direito de indemnização a todo aquele que for privado da sua
liberdade contra o disposto na Constituição e na lei. Referindo-se o preceito,
na sua letra, a situações de privação ilegal ou inconstitucional da liberdade, a
sua última parte (situações de privação contra constitutionem) reportar-se-á
desde logo àqueles casos em que a afectação do direito tenha ocorrido fora dos
casos tipicamente definidos no n.º 3. Não sendo essa a situação dos autos (em
que, como já vimos, não está em causa, nem uma “privação da liberdade”, neste
sentido, inconstitucional, nem tão pouco uma prisão preventiva ilegal), a
previsão do n.º 5 só terá aqui sentido útil se, mais do que a letra, se indagar
do “espírito” do preceito. Tal obriga a que se tenha em conta que o específico
direito de indemnização que aí se consagra é corolário do direito à liberdade,
que o artigo 27.º, no seu todo, visa proteger.
4.2. Como o direito à liberdade detém a estrutura típica dos chamados direitos
de defesa (direitos, liberdades e garantias, na denominação da CRP), todas as
restrições que a lei ordinária venha, quanto a ele, a estabelecer, devem
obedecer aos limites fixados, desde logo, no n.º 2 do artigo 18.º: as restrições
têm que ser expressamente previstas na Constituição e limitar-se ao necessário
para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.A
sujeição a prisão preventiva é – como qualquer outra medida privativa da
liberdade – uma restrição do direito que o artigo 27.º protege.
Independentemente da questão de saber qual será o sentido que, em geral, deva
hoje ser conferido à primeira frase do n.º 2 do artigo 18.º (sobre o assunto, v.
Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente
Autorizadas pela Constituição, Coimbra, 2003), não restam dúvidas que esta
restrição goza de autorização constitucional expressa, constante da alínea b) do
n.º 3 do artigo 27.º da CRP. Por outro lado, a sua existência revela-se
necessária para a salvaguarda de outros valores constitucionalmente protegidos,
como os da eficácia da justiça penal, da segurança, e, fundamentalmente, da
própria liberdade individual dos demais membros da comunidade.Assim, o risco que
todo o indivíduo corre de, verificados certos pressupostos legais, se ver
sujeito a prisão preventiva é – e a tradição contratualista tem-no salientado
bem – consequência, ou “contrapartida”, de uma dupla necessidade: da necessidade
de proteger a liberdade dos outros; da necessidade de salvaguardar bens
comunitários de segurança e de eficácia do sistema penal.Resta saber – e essa é
a especial questão que nos ocupa – por conta de quem deve correr esse risco,
caso se venha ex post a concluir, por juízo absolutório, que, numa dada situação
concreta, a prisão preventiva se não justificava. Deve ainda o risco correr por
conta do indivíduo, que assim suporta toda a carga do sacrifício que lhe foi
imposto, ou deve ele correr por conta da comunidade, sendo repartido (enquanto
dever estadual de indemnizar) por todos os seus membros, na medida do benefício
que do sacrifício individual retiraram-Entende a recorrente que a Constituição
portuguesa impõe que o risco corra, nestes casos, por toda a comunidade. Com
efeito, ao sustentar que é inconstitucional a norma constante do disposto no n.º
2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de
se não considerar injustificada prisão preventiva aplicada a um arguido que vem
a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo, a recorrente está
a apresentar ao Tribunal uma dupla alegação: primeira, a de que é excessiva – e
por isso mesmo contrária à Lei Fundamental – a restrição contida naquele
segmento normativo, que, não se satisfazendo com o juízo absolutório, faz
depender o direito à indemnização de ulterior prova, a produzir na
correspondente acção de responsabilidade civil contra o Estado, de ocorrência de
erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto que determinaram a
imposição da medida de coacção; segunda, a de que é dever do legislador estender
a indemnização também àquelas situações em que haja, ex post, juízo absolutório
sobre arguido sujeito a prisão preventiva. Assim sendo, e nesta medida, pretende
essencialmente a recorrente demonstrar que a CRP impõe que o risco de prisões
preventivas materialmente injustificadas corra por conta de toda a comunidade,
ao invés de ser suportado, apenas, pelos indivíduos que a elas estiveram
sujeitos.As duas afirmações que vão contidas nesta dupla alegação não detêm no
entanto o mesmo estatuto lógico. A resposta dada à primeira prejudica a resposta
que se vier a dar à segunda.Com efeito, só será possível sustentar que existe,
face à Constituição, um dever do legislador de prever indemnização para os casos
em que se venha a emitir, ex post, juízo absolutório sobre arguido sujeito a
prisão preventiva se se tiver primeiro confirmado a natureza excessiva, e por
isso mesmo inconstitucional, da restrição contida na norma do n.º 2 do artigo
225.º do Código de Processo Penal, que só considera materialmente injustificada,
e por isso mesmo constitutiva do dever estadual de indemnizar, a prisão que
tiver sido decretada com erro grosseiro na avaliação dos respectivos
pressupostos de facto.Importa por isso, antes do mais, resolver a questão:
introduz uma restrição excessiva, ou não proporcionada, do direito à liberdade,
lesiva do disposto na parte final do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, a norma
contida no n.º 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal, que, não se
satisfazendo com o juízo absolutório, faz depender o direito a indemnização por
prisão preventiva materialmente injustificada da prova, a produzir na acção de
responsabilidade civil contra o Estado, de ocorrência de erro grosseiro na
apreciação pressupostos de facto que determinaram a imposição da medida de
coacção-
4.3. O bem jurídico protegido pelo direito consagrado no artigo 27.º da
Constituição ocupa, no sistema de bens jusfundamentalmente tutelados, um
inquestionável lugar de relevo. A protecção da liberdade é contígua dos
princípios do Estado de direito e da dignidade da pessoa humana; por isso, a
norma constitucional que a consagra não pode deixar de impor ao legislador
especiais deveres de protecção, desde logo através da emissão de normas que
impeçam que a liberdade de cada um seja lesada, por acto da comunidade erguida
em Estado ou por acto individual de qualquer dos seus membros. A injunção
contida no n.º 5 do artigo 27.º da CRP, segundo a qual a privação da liberdade
contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado em dever de
indemnizar (nos termos que a lei estabelecer), integra um desses deveres de
protecção, impendentes sobre o legislador ordinário, e cujo cumprimento é
exigido pelo particular relevo que o bem jusfundamentalmente tutelado
assume.Perante este relevo – e perante a natureza dos prejuízos decorrentes de
prisão preventiva injustificada – poder-se-ia à primeira vista pensar que a
restrição da indemnização, em casos de prisão preventiva legal, às situações de
ocorrência de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto que
determinaram a aplicação da medida de coacção, não seria, de acordo com o
princípio da proibição do excesso, nem necessária nem proporcional (em sentido
estrito) face aos valores e interesses constitucionais que justificam a
restrição.Sendo estes valores a protecção da segurança, das liberdades dos
outros e da eficácia da justiça penal, dir-se-ia que a repartição solidária do
sacrifício por via da atribuição de uma indemnização ao indivíduo que esteve
sujeito a prisão preventiva que se viesse a revelar, ex post, materialmente
injustificada, em nada afectaria a prossecução dos valores constitucionais
justificativos da restrição, pelo que seria desde logo desnecessária a
suportação, em exclusivo, pelo arguido, do prejuízo decorrente de privação da
liberdade fora das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 225.º do
CPP.Ainda que assim se não entendesse, dir-se-ia que seria desproporcionada, em
sentido estrito, a suportação em exclusivo do sacrifício fora dessas
circunstâncias: dado o benefício que daí tinham retirado os demais membros da
comunidade jurídica, haveria que repor o equilíbrio, através, por exemplo, de
compensação financeira a suportar pelo Estado.Tal conclusão seria, porém,
apressada.É que a apreciação da questão de saber se a repartição solidária do
sacrifício afecta ou não a eficácia do sistema criminal, ou a segurança e,
fundamentalmente, a liberdade individual dos demais membros da comunidade
implica, dada a estrutura multipolar das relações jurídicas envolvidas, arbitrar
um verdadeiro conflito de liberdades, algo que o Tribunal Constitucional não
está em condições de efectuar.Dito de outra maneira, o controlo sobre o modo
como o legislador ordinário cumpriu os seus deveres de protecção de bens
jurídicos tutelados constitucionalmente, ainda que com restrição de direitos,
liberdades e garantias individuais, não pode ter como consequência ser o poder
judicial a proceder a avaliações sobre factos, a efectuar ponderações entre bens
e a formular juízos de prognose que integram, na sua essência, a função
legislativa do Estado.Fazê-lo equivaleria a substituir um equilíbrio sistémico,
intrinsecamente complexo e politicamente sensível, estabelecido pelo legislador
ordinário, por um novo equilíbrio a estabelecer pelo próprio Tribunal
Constitucional.Determinar se apenas através de um regime de suportação em
exclusivo do sacrifício consistente em sujeitar um indivíduo inocente a privação
da liberdade se assegura a eficácia do sistema criminal e, portanto, a protecção
da liberdade individual dos demais membros da comunidade, está à margem dos
poderes de apreciação do Tribunal.
Impõe-se aqui articular com maior desenvolvimento as razões por que assim é,
pois, de outra maneira, poderia argumentar-se que o exercício de poderes de
controlo por parte do Tribunal Constitucional estaria sempre prejudicado,
porquanto qualquer juízo de inconstitucionalidade normativa afecta ou é
susceptível de afectar sensíveis equilíbrios sistémicos estabelecidos a nível
legislativo.Importa, desde já, assinalar que o equilíbrio que está aqui em causa
não tem tanto que ver com a questão de saber se a introdução de um mecanismo de
responsabilização solidária por sujeição a prisão preventiva através da
atribuição de uma indemnização em casos de absolvição iria ou não condicionar a
aplicação da prisão preventiva por parte de magistrados, receando-se que, de
repente, a comunidade se visse confrontada com uma situação de deficit de
aplicação dessa medida de coacção.Tal cenário não se põe por, formalmente, o
sujeito responsável ser o próprio Estado e não, naturalmente, o magistrado
judicial (questão diferente é saber se, ainda assim, não será admissível
sustentar que o magistrado judicial teria um incentivo em retrair-se por forma a
não sobrecarregar financeiramente o Estado).Ainda que assim fosse, isto é, ainda
que a introdução de um mecanismo de responsabilização solidária por sujeição a
prisão preventiva através da atribuição de uma indemnização em casos de
absolvição viesse condicionar a aplicação da prisão preventiva por parte de
magistrados judiciais, sempre se poderia argumentar que tal consequência ou
efeito, longe de ser negativa ou perverso, seriam, antes pelo contrário,
vantajosos, pois viriam afectar os incentivos dos agentes de modo a tornar o
sistema processual penal mais eficiente, sendo os custos de eventuais
ineficiências que ocorressem suportados solidariamente pela comunidade (sendo
esse custo calculado já não em função do montante a atribuir a título de
indemnização a indivíduo privado da sua liberdade mas antes em função de uma
situação de deficit de prisão preventiva), ao passo que, face ao regime legal
vigente, os custos de eventuais ineficiências são suportados em exclusivo pelo
indivíduo.O Tribunal Constitucional não tem agora que tomar posição sobre se,
perante esse cenário, i. é, perante um cenário em que existisse, sem margem para
dúvida, um nexo de causalidade entre a introdução de um regime de
responsabilização solidária e uma situação de deficit de prisão preventiva,
estaria ou não em condições de intervir com fundamento em inconstitucionalidade
por excesso de restrição.É que, ao contrário do que, numa primeira apreciação,
se seria levado a pensar, paira uma incerteza sobre se a introdução de um regime
de responsabilização solidária inevitavelmente conduz a uma situação de deficit
de prisão preventiva.Com efeito, não é desrazoável admitir-se a hipótese de o
cenário ser o oposto, i. é de a introdução de um mecanismo de responsabilização
solidária por sujeição a prisão preventiva através da atribuição de uma
indemnização em casos de absolvição vir agilizar a aplicação da prisão
preventiva por parte de magistrados judiciais.Sabendo que a sujeição de um
indivíduo a prisão preventiva, em caso de posterior absolvição, daria sempre
lugar à atribuição de uma indemnização, o magistrado judicial poderia,
consciente ou inconscientemente, sentir-se menos compelido a moderar o recurso a
essa medida de coacção comparativamente com o que sucede face ao regime
actualmente em vigor, verificando-se, inclusive, um aumento do número de prisões
preventivas decretadas e, portanto, uma afectação mais intensa da própria
liberdade individual do arguido.
Não interessa saber se tal cenário é certo, provável, ou apenas hipotisável. A
mera incerteza basta para que o Tribunal Constitucional não possa senão deferir
perante o juízo formulado pelo legislador, gozando este último de ampla
liberdade de conformação relativamente ao próprio juízo quanto à necessidade do
regime contido no n.º 2 do artigo 225.º do CPP.
Assim, deve concluir-se que, face ao disposto no artigo 27.º da CRP – e face à
leitura sistémica do regime contido no seu n.º 5 –, não é inconstitucional a
norma constante do n.º 2 do artigo 225.º do CPP, quando interpretada no sentido
de se não considerar injustificada prisão preventiva aplicada a um arguido que
vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo.
Resta saber se se pode manter a conclusão face aos restantes parâmetros de
controlo que são invocados pela recorrente.
5. Do artigo 22.º da CRP e da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos
do Homem e das Liberdades Fundamentais
5.1. Como já se viu, alega ainda a recorrente que é inconstitucional a norma
sob juízo face ao disposto no artigo 22.º da CRP. A tese que, a este propósito,
é sustentada nas alegações resume-se fundamentalmente ao seguinte.Do artigo 22.º
da CRP decorre um dever de indemnizar do Estado por todos os actos da função
judicial de que resulte violação de direitos, liberdades e garantias ou prejuízo
para outrem; da prisão preventiva de arguido que venha a ser posteriormente
absolvido resulta a violação do direito, liberdade e garantia consagrado no
artigo 27.º da CRP; assim, e nos termos do artigo 22.º, tal deve ser sempre
indemnizável pelo Estado, ainda que a prisão não seja ilegal, porquanto a
responsabilidade a que se refere o artigo 22.º engloba, também, os actos lícitos
da função judicial. Como este dever de indemnizar do Estado, assim recortado,
tem como correlato um direito – o direito à indemnização –, e como este direito
é directamente aplicável, nos termos conjugados dos artigos 17.º e 18.º, n.º 1,
da CRP, daqui se segue que a Constituição impõe que o custo de uma prisão
preventiva a que se siga juízo absolutório do arguido seja sempre repartido por
toda a comunidade política, através de compensação a prestar pelo Estado. Assim,
é inconstitucional a norma contida no n.º 2 do artigo 225.º do CPP, que, não se
satisfazendo com o juízo absolutório, faz depender o direito a indemnização da
ocorrência de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto que
determinaram a aplicação da medida de coacção.Que dizer desta tese, deste modo
enunciada-Em primeiro lugar, deve notar-se que, se do regime disposto no n.º 2
do artigo 225.º do CPP resultasse violação de um direito, liberdade e garantia,
o acto da função judicial que aplicasse tal regime (ou seja, que decretasse
prisão preventiva consabidamente não geradora de indemnização, não obstante
juízo absolutório posterior do arguido) não poderia ser qualificado como acto
lícito do Estado. A ilicitude é a contrariedade ao Direito. Uma medida lesiva de
um direito fundamental é, seguramente, um quid ilícito. A tese segundo a qual
haveria aqui dever estadual, por impor o artigo 22.º da Constituição a
existência de responsabilidade civil extracontratual do Estado em todos os actos
lícitos da função judicial de que resultasse violação de um direito, liberdade e
garantia, contém em si mesma, portanto, alguma contradição lógica. A isto
acresce que, como se concluiu no ponto anterior, a norma constante do n.º 2 do
artigo 225.º do CPP, por conter uma restrição não inconstitucional do direito à
liberdade, não lesa afinal nenhum direito, liberdade e garantia.Em segundo
lugar, deve notar-se que, como o Tribunal sempre tem dito (veja-se, por exemplo,
o Acórdão n.º 12/2005, § 14), o artigo 22.º consagra antes do mais uma garantia
de instituto. A Constituição recebe e protege aí o instituto infraconstitucional
da responsabilidade civil extracontratual do Estado, impedindo dessa forma que o
legislador ordinário o aniquile ou desfigure, nos seus traços essenciais. É
certo que, nesses traços essenciais, se pode incluir uma injunção de previsão
dos pressupostos da responsabilidade pública por actos prejudiciais da função
judicial; no entanto, tal não exonera o legislador do cumprimento da específica
tarefa de conformação que é a sua. É à lei que cabe determinar em que casos deve
o Estado responder civilmente por prejuízos causados às pessoas por actos da
função judicial, determinando os seus pressupostos e a medida da indemnização. A
tese segundo a qual decorreria, in casu, e da simples redacção do artigo 22.º da
CRP, um direito à indemnização directamente aplicável, análogo a um direito,
liberdade e garantia nos termos conjugados dos artigos 17.º e 18.º, n.º 1,
primeira parte – o que seria bastante para fundamentar a inconstitucionalidade
das condições “restritivas” do dever público de indemnizar fixadas no n.º 2 do
artigo 225.º do CPP – não colhe, portanto, atenta a natureza de garantia
institucional que detém a previsão, na Lei Fundamental, do regime da
responsabilidade civil extracontratual do Estado.Face a este parâmetro, não
merece portanto censura a norma sob juízo.
5.2. Como o não merece face ao disposto no n.º 5 do artigo 5.º da Convenção
Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais,
acompanhando-se, quanto a este ponto, a fundamentação já constante dos Acórdãos
ns.º 12/2005 e 160/95. Neste domínio, a norma da Convenção nada acrescenta face
ao disposto no artigo 27.º da Constituição portuguesa; assim sendo, o juízo que
se fez quanto à inexistência de qualquer desconformidade do regime contido no
n.º 2 do artigo 225.º do CPP face ao parâmetro contido no artigo 27.º da CRP é
extensivo, pela própria natureza das coisas, às normas pertinentes da Convenção
Europeia.
IIIDecisão
Assim, pelo exposto e com estes fundamentos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 225.º do
Código de Processo Penal, interpretada no sentido de se não considerar
injustificada prisão preventiva aplicada a um arguido que vem a ser absolvido
com fundamento no princípio in dubio pro reo;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso;
c) Condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Maio de 2010Maria Lúcia AmaralCarlos Fernandes CadilhaAna Maria
Guerra MartinsVítor Gomes (vencido conforme declaração anexa)Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a inconstitucionalidade, por violação do n.º 5 do artigo 27.º
e 18.º, n.º 2 da Constituição, da interpretação normativa do n.º 2 do artigo
225.º do CPP apreciada no presente recurso, a mais das razões invocadas nas
declarações de voto apostas pelos Conselheiros Fernanda Palma e Mário Torres ao
acórdão n.º 12/2005 e a que adiro, nas suas linhas essenciais comuns, pelo
seguinte: Importa salientar que a interpretação normativa aplicada
não consiste em negar o direito a indemnização ao arguido sujeito a prisão
preventiva que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo
mas, de modo mais absoluto, em negá-la ao arguido absolvido cuja inocência não
fique provada. A seguinte passagem, aliás transcrita no presente acórdão, é
elucidativa do entendimento professado pela decisão recorrida: “[…] no acórdão
penal absolutório não ficou provado que a ora recorrente não tenha sido autora
dos crimes por que foi acusada. […] O que se escreveu no dito acórdão foi que
não resulta dos factos provados que os arguidos, ou qualquer deles, tenham
ateado fogo ou provocado incêndio; não se escreveu que dos factos provados
resulta que os arguidos, ou qualquer deles, não ateou fogo nem provocou incêndio
– e só esta conclusão significaria a comprovação da efectiva inocência da ora
recorrente (fls. 1224)”. Esta oneração do arguido com a prova de que “está limpo
de toda a suspeição' colide com o sentido último do n.º 2 do artigo 32.º da
Constituição (cf. ac. Sekanina do TEDH). O princípio da presunção de inocência é
incompatível com o entendimento de que, terminado o procedimento criminal pela
absolvição do arguido por não ter a acusação logrado a prova dos factos que lhe
imputava, sobre o mesmo possa continuar a recair o labéu da suspeita até que
prove positivamente a sua inocência. Terminado o procedimento por absolvição,
para efeitos directamente decorrentes da existência desse procedimento, como é a
indemnização por prisão preventiva que no seu decurso tenha sido imposta ao
arguido, não pode haver duas categorias de absolvidos, os que o foram pelo
funcionamento do princípio in dubio pro reo e os restantes. Não
sofre dúvidas que a sujeição a prisão preventiva é uma restrição à garantia de
não privação da liberdade senão em consequência de sentença judicial
condenatória pela prática de acto punido com pena de prisão ou de aplicação
judicial de medida de segurança ( n.º 2 do art.º 32.º da CRP), justificada para
salvaguarda de outros valores constitucionalmente protegidos, como os da
eficácia da justiça penal, da segurança e da própria liberdade individual dos
demais membros da comunidade. É em nome destes valores comunitários que a
Constituição permite que, ao arguido, presuntivamente inocente, se imponha o
sacrifício da liberdade individual, antes de convencido por sentença judicial
condenatória. Como também é exacto que o direito à indemnização que no n.º 5 se
estabelece é corolário do direito à liberdade que o artigo 27.º no seu todo visa
proteger e que deve ser compreendido nesse quadro e não mediante uma
interpretação literal isolada. De modo que a fundamental questão que se coloca,
di-lo bem o acórdão, é a de saber por conta de quem deve correr o risco, caso
venha ex post a concluir-se, por um juízo absolutório, que a prisão preventiva,
formal e substancialmente conforme ao direito no momento em que foi decretada,
afinal se não justificava. Isto é, que o sacrifício da liberdade, lícito no
momento em que foi imposto, se revelou materialmente injustificado.
Numa interpretação valorativamente coerente da Constituição, à luz do princípio
geral de ressarcibilidade dos encargos e danos que ultrapassem a álea geral e
sejam geradores de uma desigualdade perante os encargos públicos, não existe
razão válida para que a indemnização por privação injustificada da liberdade
fique condicionada à existência de erro grosseiro na imposição desta. Nem sequer
à existência de erro censurável no momento da aplicação. Esta restrição não
existe no caso de danos causados a outros direitos fundamentais por actos
lícitos do poder público, designadamente pelo sacrifício do direito de
propriedade, como sucede na requisição ou expropriação por utilidade pública
(artigo 62.º, n.º 2, da CRP). Não se vê em salvaguarda de que valores haveria a
Constituição de tolerá-la perante o sacrifício (materialmente) injustificado da
liberdade. Seria incongruente admitir o dever de indemnizar do Estado sempre que
um acto do poder público afecte licitamente, para prossecução do interesse
público, os interesses patrimoniais do cidadão, deixando desprotegida a lesão,
lícita mas não menos gravosa, de um valor elementar como o da liberdade pessoal,
ao sujeitar o ressarcimento dos danos decorrentes da prisão preventiva à prova
de erro do aplicador do direito avaliável por referência à realidade processual
no momento em que a decretou (Cfr. Maria Paula Ribeiro de Faria, Jurisprudência
Constitucional, n.º 5, em anotação ao Acórdão do TC n.º 12/2005 e Gomes
Canotilho, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3804, pág. 83, em
anotação ao acórdão do STA de 9/10/1990). A imposição da medida de
coacção tem justificação nos valores constitucionalmente tutelados que o acórdão
refere. Mas fazer recair o risco de a sua imposição vir a revelar-se
objectivamente desnecessária, exclusivamente, sobre o indivíduo a ela sujeito,
afigura-se uma restrição desproporcionada do direito à liberdade individual,
porque, a meu ver, não passa o teste da necessidade. Com efeito, a prossecução
dos valores que constitucionalmente justificam a restrição da liberdade
autorizada pela alínea b) do n.º 2 do artigo 27.º da Constituição alcança-se com
a decretação judicial da medida de coacção, de acordo com o regime legal e os
pressupostos de facto que à data da sua imposição o processo revelava. E nisso
se esgota. Não justifica que, em nome deles (ou dessa autorização constitucional
para restringir), continue, depois da absolvição por falta de provas, a
sacrificar-se o indivíduo que foi sujeito à medida de coacção, privando-o do
ressarcimento dos prejuízos dessa prisão preventiva que a evolução do processo
revelou ser materialmente injustificada, em vez de repartir o seu custo por toda
a comunidade em benefício de quem foi decretada. Pelo menos é excessivo
(proporcionalidade em sentido estrito) que seja o arguido a suportar as gravosas
consequências de uma decisão que, em nome de interesses opostos aos seus, teve
de ser tomada perante prova indiciária que vem a revelar-se insubsistente,
quando para esse sentido da decisão não tenha ele dado causa determinante, por
qualquer comportamento processual doloso ou negligente. Interpreto,
pois, o n.º 5 do artigo 27.º da Constituição como não restringindo o direito a
indemnização pela prisão preventiva feita “contra a Constituição e na lei” às
hipóteses de ilicitude da imposição da medida. A prisão preventiva lícita, mas
que vem a revelar-se materialmente injustificada, não deixa de constituir uma
lesão do direito de liberdade individual. A conformidade à lei e a correcção de
apreciação dos pressupostos de facto no momento da imposição da medida de
coacção é o bastante para a privação da liberdade, mas não explica a privação da
compensação pelo sacrifício. O legislador pode conformar o direito à
indemnização, de acordo com a ampla liberdade que a parte final do preceito lhe
outorgou (v.gr., limitação ou sistema de determinação dos danos atendíveis,
prazos, mecanismos processuais), mas não pode eliminar o seu núcleo essencial.
Se bem leio, o acórdão não se afasta muito desta base de compreensão
do problema. Conclui, porém, que a solução que exclui a indemnização por danos
decorrentes de prisão preventiva imposta a arguidos que acabam por ser
absolvidos em julgamento, por não se provarem os factos de que estavam acusados,
escapa aos poderes de apreciação do Tribunal, por tal controlo ser susceptível
de afectar os equilíbrios sistémicos que a Constituição terá deixado à ampla
liberdade de conformação do legislador. O facto de o ordenamento admitir a
indemnização em tais circunstâncias seria um dado que os juízes teriam em
consideração no momento de aplicar a medida de coacção. E com prognóstico
incerto, tanto podendo conduzir a um deficit como a um excesso de uso da prisão
preventiva. A mera incerteza quanto ao resultado da existência de solução
diferente daquela que se aprecia bastaria para que o Tribunal não possa censurar
a opção legislativa. Em último termo, diz o acórdão, poderia verificar-se um
aumento do número de prisões preventivas decretadas e, portanto, uma afectação
mais intensa da própria liberdade individual do arguido. Não
acompanho esta ponderação, cujo resultado ilude, a meu ver, o problema que o
acórdão bem enuncia. Os custos de eventuais ineficiências do sistema não podem,
quando está em causa um bem jusfundamental cuja protecção é contígua aos
princípios do Estado de direito e da dignidade humana, recair em exclusivo sobre
o indivíduo a quem é imposto o sacrifício desse mesmo bem. O objectivo da 'justa
medida' na imposição da prisão preventiva, sem deficit e sem excesso de
utilização, alcança-se pelo estabelecimento de pressupostos legais rigorosos,
por adequados mecanismos de controlo das decisões tomadas neste âmbito, pela
selecção e preparação criteriosa dos magistrados e medidas processuais e
organizativas semelhantes. Não atribuir indemnização pelo sacrifício aos
indivíduos particularmente atingidos por prisão preventiva que o desfecho do
processo venha a revelar materialmente injustificada por receio de que isso
possa induzir os juízes a um uso mais frequente da prisão preventiva, é adoptar
um meio que, à luz dos princípios do Estado de direito, tem de ser considerado,
se não inadequado, pelo menos manifestamente excessivo para esse mesmo fim da
tutela da liberdade. Efectivamente, não pode dizer-se que há risco de “uma
afectação mais intensa da própria liberdade individual do arguido' se o sistema
reconhecer indemnização aos arguidos absolvidos por não se ter provado a
acusação. Para o indivíduo a quem a medida tenha sido aplicada a afectação da
liberdade é real, já não é um risco. À inevitável privação da liberdade soma-se
a suportação individual dos respectivos efeitos lesivos. Ora, proteger a
hipotética liberdade de uma categoria (todos os arguidos) mediante a não
compensação pública do sacrifício da liberdade do arguido efectiva e
concretamente atingido pela prisão preventiva que a posteriori vem a revelar-se
injustificada, é solução que me parece desproporcionada e repelida pelo
princípio do Estado de direito. Vítor Gomes
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20100185.html ]