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Processo n.º 274/10
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA
NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A fls. 1090 destes autos foi proferida a decisão sumária n.º 201/2010 com o seguinte teor:
Nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, decide-se:
1. A. pretende recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), do acórdão proferido no Supremo Tribunal de Justiça em 9 de Fevereiro de 2010. Convidado, nos termos do n.º 5 do artigo 75-A da citada LTC, a «identificar a norma que o tribunal recorrido terá desaplicado com fundamento em inconstitucionalidade ou ilegalidade qualificada», esclareceu o seguinte: [...]
2. Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade. Torna-se, por isso, essencial, como condição de admissibilidade deste recurso, que o tribunal recorrido haja, na sua decisão, desaplicado uma norma infraconstitucional em virtude de essa norma se mostrar desconforme com a Constituição.
Acontece que, conforme claramente se retira do esclarecimento prestado pelo próprio recorrente, o Supremo Tribunal de Justiça não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade, razão pela qual não pode o recorrente pretender interpor o recurso previsto na citada alínea.
Esta constatação conduz a que o Tribunal não possa conhecer do presente recurso. Decide-se, em consequência, não admitir o recurso.[...]
2. Inconformado, o recorrente A. reclama para a conferência, nos seguintes termos:
[...] a não admissão do presente recurso resulta de dois equívocos:
O primeiro equívoco é da responsabilidade do advogado do recorrente, e consiste num lapso (erro material) que, salvo o devido respeito e melhor opinião, deveria ter sido oficiosamente corrigido pelo Exmº Senhor Juiz Conselheiro Relator, porque tanto do requerimento de interposição do recurso como dos esclarecimentos prestados na sequência do convite para o aperfeiçoar, resulta inequivocamente que o objecto do recurso consiste na aplicação de normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, e não na recusa de aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade, ou seja, o recurso tem como fundamento processual a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do tribunal Constitucional e não a norma da alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo, como por lapso se indicou. Esta última afirmação resulta claramente do teor duas peças processuais que se referiram, ou seja, a súmula da motivação do recurso constante do requerimento e do seu aperfeiçoamento demonstra que aquilo que o recorrente pretendeu foi fundamentar o recurso na alínea b), e que, por lapso, e só por lapso, é que referiu a norma da alínea a) do n.º 1.º do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro.
O segundo equívoco – com todo o respeito, que é muito, e é sincero – é da responsabilidade do Exmº Senhor Juiz Conselheiro Relator, e consiste no facto desta tão ilustre personalidade, em vez utilizar a motivação sumária dos fundamentos do recurso (que compreendeu, como resulta do antepenúltimo parágrafo da decisão em apreço) para corrigir o efectivo lapso de escrita do recorrente, usou-a para rejeitar o recurso.
O nosso estado de direito, por imperativo constitucional, não é um estado de direito formal. A dignidade da pessoa humana, fundamento primeiro de toda a nossa ordem jurídica, não admite decisões que não considerem os factos e as suas circunstâncias, ou seja, não admite decisões que não considerem a vida, tal como ela é efectivamente, e o que efectivamente resulta das peças processuais que serviram para rejeitar o recurso é que houve um lapso na indicação da alínea que contem a norma que permite o recurso.
É por esta razão que a decisão de que se reclama se funda exclusivamente num erro material do advogado recorrente, erro este que é admitido pela própria decisão reclamada, o que faz com que não existam razões para que o recurso seja rejeitado. Se assim não for, é própria existência do Estado de Direito Democrático que estará em causa, tanto porque o lapso é desculpável como porque, no caso em apreço, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora e do Supremo Tribunal de Justiça violam efectiva e gravemente normas e princípios estruturantes do nosso estado de direito, nomeadamente as normas e os princípios relativos à separação e divisão de poderes.
Efectivamente,
Do processo e das decisões proferidas pelo Tribunal Judicial de Lagos, pelo Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça, resulta, à evidencia, que:
O Governo da República, no uso dos seus poderes de governar, por concessão, atribuiu ao recorrente o direito de construir um restaurante (apoio de praia) em terrenos pertencentes ao domínio público marítimo.
Esta concessão e a natureza pública dos terrenos são factos inquestionáveis, e estão a vista de todos os que têm acesso ao processo.
O Tribunal da Relação de Évora, ignorando os actos administrativos do Governo, ignorando a delimitação oficiosa do terreno da recorrida com o terreno do domínio público homologada em 1993 pelo Exmº Senhor Chefe do Estado Maior da Armada, que agiu com poderes que lhe delegaram os Exmos Senhores Ministros da Defesa Nacional e da Justiça, publicada em Diário da República (folhas 373 do processo), ordenou a entrega deste terreno do domínio público à autora, e, com esta decisão, dispôs dos terrenos do Estado, revogou expressamente o alvará de concessão atribuído ao recorrente e revogou ainda o acto administrativo que delimitou os terrenos em 1993. Tudo isto com fundamento no facto de o restaurante do recorrente ser “irrelevante para o bem comum que se pretendeu considerar” com a constituição da servidão administrativa sobre o terreno.
O Supremo Tribunal de Justiça adoptou esta mesma posição e manteve o Acórdão do Tribunal da Relação.
Com todo o respeito por outras opiniões, parece ao ora reclamante que estes factos consubstanciam uma ingerência dos tribunais comuns em matéria da exclusiva competência do Governo, e, por isso mesmo, parece não haver dúvidas de que se está perante um caso em que as normas e os princípios constitucionais relativos à separação e divisão dos poderes foram claramente violadas, do mesmo modo que também foram violadas neste caso as normas constitucionais relativas à distribuição da competência pelas diversas ordens de tribunais, porque, se algo existe contra os actos administrativos do Governo, só os tribunais administrativos o podem dizer. Nestes dois acórdãos também se critica o Governo por ter ajuizado mal a forma como prossegue o interesse público, por neles se julgar que o apoio de praia do recorrente é irrelevante para a prossecução do interesse público (!) e também se dispõe do património do Estado, por neles se ordenar que o ora recorrente entregue a um particular um terreno que recebeu do Estado e que pertence ao domínio público marítimo.
Foi por estas razões que a Exma Senhora Juiz do Tribunal de Lagos, interpretando sabiamente o princípio da separação de poderes e extraindo as consequências lógicas do acto que delimitou o domínio público do domínio privado em 1993, as consequências das servidões que resultam directamente das normas do artigo 84.º da Constituição da República, as consequências que resultam das normas que regulavam esta matéria em 1993 (artigos 2.º, 3.º e 5.º do D. L. 468/71, de 5 de Novembro) e as consequências das normas que a regulam nos dias de hoje (artigos 10.º e 21.º do DL 54/2005, de 15 de Novembro), entendeu que o Estado, através do poder Executivo, pode dispor do seu direito de gozo sobre o domínio público como bem entender e que os tribunais comuns não podem interferir nessa disposição
E é por estas mesmas razões que não se compreende, nem se pode aceitar, a ingerência do Tribunal da Relação de Évora e a ingerência do Supremo Tribunal de Justiça na área da do poder reservada ao Executivo.
Por tudo isto, parece que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, à imagem do que sucede com o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, critica e corrige o Executivo por causa do modo como usa os terrenos do domínio público, ordena a entrega efectiva do terreno do domínio público a um particular, e, com tudo isto, revoga o acto administrativo que em 1993 delimitou o domínio público do domínio privado e o acto administrativo que permitiu a construção e o uso do apoio de praia em terrenos do domínio público marítimo.
Tudo o que se afirmou (e que também foi referido nas peças processuais que o Exmo Senhor Juiz Conselheiro Relator usou para rejeitar o recurso) demonstra que o recurso foi efectiva e substancialmente interposto com fundamento na aplicação de normas inconstitucionais e não na desaplicação de normas com fundamenta em inconstitucionalidade. E por esta razão que a indicação da alínea a) em vez da alínea b) do n.º 1.º do artigo 70.º da Lei 2 8/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro, se deveu a lapso de escrita, que no nosso Estado de Direito não pode ter como consequência a rejeição do recurso.
Termos em que o recurso deve ser admitido, para que em sede de alegações, os vícios dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora e do Supremo Tribunal de Justiça sejam esmiuçados, de modo a que, neste caso, possa ser reposta a nossa ordem constitucional, o que só sucederá com revogação da concreta norma de decisão que emerge destes dois Acórdãos.
3. A recorrida B., S.A. respondeu à reclamação, dizendo:
1. O Recorrente fundamenta a sua reclamação sustentando, em síntese, que apenas por lapso indicou no requerimento de recurso a alínea a) em vez da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82.
2. Considera o Recorrente que o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator em vez de rejeitar o recurso interposto deveria isso sim ter corrigido o “efectivo lapso de escrita do recorrente”.
3. Salvo o devido respeito, cremos ser evidente que não assiste razão ao Recorrente.
3.1. A desejada prevalência da “substância” sobre a “forma”, explica e justifica o despacho convite de aperfeiçoamento;
3.2 Mas em caso algum permite a violação da Lei Processual.
4. Nos termos do artigo 75º-A da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, “O recurso para o Tribunal Constitucional, interpõe-se por meio de requerimento, no qual se indique a alínea do n.º 1 do artigo 70.º, ao abrigo do qual o recurso é interposto e a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretenda que o Tribunal aprecie”.
4.1. Ora in casu o Recorrente só em sede de reclamação vem invocar que o recurso afinal é interposto com base na alínea b) do artigo 70º.
5. À Recorrente não assiste pois o direito de obter nova decisão quanto à admissibilidade do recurso, com o fundamento agora invocado.
5.1. Sublinha-se ainda que mesmo na reclamação ora apresentada, a recorrente não indica quais as normas pretensamente inconstitucionais, cuja inconstitucionalidade suscitou durante o processo.
Pelo exposto deverá indeferir-se a pretensão formulada, mantendo-se a decisão reclamada.
4. Tal como se deixou expresso na decisão sumária ora em reclamação, o recorrente interpôs o presente recurso ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), norma que permite o recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais 'que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade'; posteriormente convidado, ao abrigo do n.º 5 do artigo 75-A da LTC, a 'identificar a norma que o tribunal recorrido terá desaplicado com fundamento em inconstitucionalidade ou ilegalidade qualificada', o recorrente não pediu a rectificação do tipo de recurso interposto, pois nada alegou quanto a um eventual erro de escrita que porventura tivesse alterado o seu propósito recursivo. Ora, perante esta actividade processual, seria totalmente irregular que, a título oficioso e à revelia da reafirmada vontade do interessado, o Tribunal alterasse o âmbito da pretensão formulada.
5. Aliás, a verdade é que o recurso nunca poderia prosseguir mesmo que fosse admitido ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, como agora pretende o recorrente.
Com efeito, nenhum dos requisitos impostos ao cabimento desse recurso se verificam, no caso; não foi oportunamente suscitada, perante o tribunal comum, qualquer questão de inconstitucionalidade de natureza normativa, não se invoca a aplicação, a título de ratio decidendi da decisão recorrida, de norma constitucionalmente desconforme, e o objecto do recurso não se cinge a normas jurídicas alegadamente inconstitucionais. Com efeito, a invocação do artigo 66º do Código de Processo Civil como sendo a norma que integra o objecto do recurso não disfarça a pretensão, subjacente às considerações expressas pelo reclamante quanto a uma eventual violação da ordem constitucional provocada pela pretensa 'ingerência dos tribunais comuns em matéria da exclusiva competência do Governo', de fundamentar o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC em vício de que enferma o próprio aresto recorrido e não a norma, ou normas, que este aplica como razão determinante da solução jurídica da causa.
Em suma, o recurso nunca poderia prosseguir, mesmo que interposto ao abrigo da referida alínea.
6. Em face do exposto, decide-se indeferir a reclamação, confirmando, nestes termos, a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 18 de Junho de 2010
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão